Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.
Trecho da Oração de São Jorge.
Mesmo quando eu vivia em outro momento da minha vida, em que os medos eram grandes, lembro de ter me arrepiado lendo a oração de São Jorge pela primeira vez. Era absurdamente semelhante a uma oração que a minha vó fazia antes de dormir, que minha memória só consegue remontar alguns trechos. Era algo mais ou menos assim: "Me livre do laço do passarinheiro, da peste perniciosa, do homem sanguinário..." e continuava com um série de outras coisas perigosas. Era uma oração concisa, objetiva e forte, assim como a de São Jorge. A semelhança era absurda.
A oração de São Jorge sempre me faz lembrar outra oração testemunhada em um dia bonito. Alguns amigos recém conhecidos, meu amor e eu estávamos na beira do rio Parnaíba, em uma parte da periferia de Teresina em que ainda era possível o banho sem qualquer transtorno. Era uma tarde agradável e calorosa, com um céu anoitecendo.
Estávamos todos sentados em algumas pedras enormes que haviam na beira do rio, observando o movimento. Um homem que não estava no nosso grupo pescava alguma coisa. Eu ali, vivendo aquele momento novo, com aquelas pessoas novas e bem diferentes do que eu já tinha tido contato. Entre nós, um simpático homem de meia idade. Um cara excepcional. que tinha a poesia na fala, na vida. De repente, ele nadou mais ao fundo do rio, emergiu em um salto e se pôs de pé e declamou uma oração da alma, também extremamente parecida com a de São Jorge. Falou sobre seu orixá, seu guia, bateu com força o peito se entregando e pedindo a proteção divina. Aquele momento foi tão hipnotizante e tão marcante, que foi impossível resistir. Ali, na minha frente, mais um desses momentos inexplicáveis. Mais uma daquelas coisas que não se passa, se testemunha.
A fé e eu temos conversado nos últimos tempos. Nada como era antes, nada com amarras, nada com regras. O amor, por si só, seria uma espécie de fé? Não sei.
Eu, por minha vez, acredito no amor como força. Como qualquer sentimento absurdo, é tangível, é manifestável e os seus efeitos são vistos a olhos nus. Se a fé está no amor, ponto pra ela. Hoje, a oração de São Jorge tantas vezes compartilhada nesses momentos de incerteza e medo, me emocionou mais uma vez, por me lembrar que a vida é resiliente, que mesmo sendo ela própria absurda, está. Ou melhor: é. A vida é. E pra continuar em frente, me aproprio dos versos e faço também deles uma espécie de oração:
La muerte nunca nos venció
Porque todo lo que vive
Es porque alguna vez nasció.
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