quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A fé


"Meu Deus,

(...) Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar."

Clarice Lispector, in 'Um sopro de Vida: Pulsações'.

Um dia, já há muito tempo, eu ainda era a outra Jamila. Naquela época, eu ainda passava por batalhas mais difíceis do que quaisquer que eu posso imaginar de passar por agora ou adiante, mesmo sabendo que o mundo não é fácil e que absolutamente tudo está no campo do realizável, mesmo o que não me pareça plausível.

Nesse dia, eu lembro bem de estar me sentindo melhor e já por um tempo. Eu já havia até dado testemunhos públicos da minha "cura", do meu bem-estar. Eu era uma bomba de esperança e de fé. Sentia-me eufórica. Afinal, havia passado, ao meu ver, pelos momentos mais terríveis da minha vida.

Foi quando tudo veio de novo, como viria de novo por muitas vezes mais, de uma vez, me deixando sem defesa.

Eu estava só em casa. Dada a minha melhora, meus pais e meu irmão já podiam me deixar só em casa mais tranquilamente. Eu estava só, assistindo televisão na sala, bem, muito bem. Quando veio de novo. Nesta época, ninguém tinha celular, sequer havia telefone fixo na minha casa. Perplexa e já em completo desespero, recorri à única coisa que eu poderia recorrer: a Deus, com o D ainda maiúsculo.

Praticamente me arrastando, fui ao quarto dos meus pais e me ajoelhei na beira da cama deles. Chorando como eu nunca me lembro de ter chorado na minha vida, eu pedi a Deus, com todas as minhas forças, com toda a minha fé, com todo o meu espírito, pra que aquela sensação ruim se demovesse, que eu nunca mais sentisse ela, que eu me curasse, porque, por tudo o que há no mundo, aquilo era demais pra eu carregar. Eu era só uma criança. Eu era só uma menina. Chorei minha alma pra fora naquele dia. Pedi, implorei, despedaçada, ferida, desesperada, pra que Deus me curasse. Crendo como nunca mais cri, lembrei que na Bíblia havia escrito que: "Tudo o que pedires em oração, crendo, recebereis". Eu cri. Como eu cri.

Chorei tanto e tão alto que a vizinha acudiu à porta. Perguntou se estava tudo bem, lá da janela. Eu gritei respondendo que sim. Aquele era o momento-chave. Era o meu momento com o Sagrado. Eu não poderia cortar aquela catarse, aquela expiação.

Após aquele tempo que durou um infinito, eu fiquei cansada. Botei tanta coisa pra fora, que realmente me senti mais calma. Não tinha sequer forças pra continuar a ter uma crise. Dormi por mais ou menos duas horas. Eram umas dez da noite e minha família já estava toda em casa. Ainda dormindo, senti os primeiros sintomas: o coração bateu novamente mais forte, os pensamentos desalinharam, a respiração era rápida e dura. Com um grito, meus pais correram em minha direção e o tormento durou novamente a noite inteira, enveredando pelo dia, transformando o meu sentir numa experiência excruciante de dores lancinantes na minha alma, que não me deixavam mais em paz.

A única coisa que eu escutei após esta oração foi o silêncio. E, então, algo se quebrou dentro de mim. Este algo foi a fé que eu nutri - ou melhor, fui levada a nutrir -, durante toda a minha vida, desde a minha mais tenra infância, até àquele momento. Foi neste dia que eu entendi que estava só. Que só havia eu pra sentir o que eu havia de sentir. Só eu poderia levar minha alma ferida no meu corpo fraco. Que ninguém mais, por mais que quisesse, poderia carregar meu fardo por mim.

Ciente de minha nova posição no mundo, comecei a trabalhar pra ter o controle dessa situação. E foi aí que a melhora veio e a vida foi se estabelecendo e voltando aos trilhos. Meus caminhos foram abertos, mas vi, dia após dia, minha fé se deteriorando. Eu, mesmo me sentindo culpada, vi que não havia nada que eu podia fazer. Deus só começou com maiúsculo nesta frase pra não contrariar a Língua Portuguesa, pois já não conseguia, como até hoje não consigo, ver mais sentido em sua existência, como também não na de qualquer outra força metafísica ou cosmológica.

Lutei contra isso. Afinal, o que está arraigado demora a se soltar, mas acho que soltou totalmente, de uns anos pra cá. Passei a enxergar a vida de outra maneira e já não me culpo mais por isso. Lembro de ter dito isto pela primeira vez, com o coração batendo loucamente, a um professor amigo dos tempos da Pedagogia, ainda lá na terrinha. Abri meu coração a ele, que demonstrou ser uma pessoa tolerante, que não iria me julgar, como eu sei que seria pelos outros, por mais meus amigos que fossem. Ele foi gentil e me escutou, mas também gentilmente me interpelou a voltar a ser quem eu era antes. Infelizmente, eu estava em um ponto sem retorno. Impossível ser quem eu era antes depois do que vivi.

Desde então, inúmeras interpelações, de inúmeras formas, me surgem, de tempos em tempos. Depois de uma fase onde eu era extrema crítica e intolerante, passei a respeitar as pessoas, as suas visões. Não importa muito no que eu acredito ou deixo de acreditar. Se alguém me diz que sente, vê, ouve, fala com coisas das quais eu não enxergo, eu não vou pô-la em dúvida. Pra mim, no entanto, nada acontece mais.

Chega a ser engraçado quando escuto de pessoas que, apesar de me conhecerem e saberem de todo o meu histórico, dizem: "Quando o bicho pegar pra ti, tu volta". Será se elas não sabem que o bicho já pegou? De qualquer forma, chega a ser violento o modo como alguns não me aceitam, apesar de eu oferecer nada mais do que meu apoio a quaisquer tipos de pensamentos ou condutas, desde que respeitem princípios éticos dos quais não posso transigir.

Mais uma vez, vivo estes momentos. Pessoas que eu sei que querem verdadeiramente o meu bem, chegam a mim com caminhos que eu, de todo coração, respeito e considero bons, mas que não são os meus. Talvez um dia sejam, quem há de saber? Apesar desta consciência, sei que a Vida é um moinho que roda em diferentes direções. Instável e complexa como a corrente de um rio, segue o seu curso, e eu, água que sou, flutuo por entre as pedras e por baixo das pontes, vou ao mar, viro chuva e volto a cair. Seguro, como sei que posso, nas coisas boas que o tempo me presenteia e significo minha existência de forma racional, mas válida, boa e significativa. Agarro nas mãos do tempo e rezo, pecando contra os novos princípios estabelecidos, para todas as forças presentes, mas bem visíveis. Dentre elas, a maior é o amor.