quarta-feira, 30 de março de 2016

O luto

Está chegando abril. Em maio, fará um ano sem meu amor.

Nesse ano vivido sem a pessoa que foi o meu maior refúgio no mundo, eu teimo em ser feliz, sabe? E olha que não foi pouca água derramada, nem foi pouca a tristeza das circunstâncias, da falta, da não-despedida. Eu senti muito um impacto de não estar lá. Isso doeu bastante, mas não mais que a própria perda, que seria inevitável mesmo se tudo tivesse acontecido como eu imaginei, como já vinha prevendo desde que passamos aquela noite de mãos dadas. Era notório que o crepúsculo se aproximava.

Talvez por já não ter a presença dela diariamente há muito tempo, eu me mergulhei por um tempo na boa e velha negação. Fiz o mesmo com outros lutos. Vestia a vida e ia, não como se não tivesse acontecido, mas como se não tivesse acontecido tanto. Encontrei a medida pra tentar continuar minha e vida e aguentar o peso de estar mais só, mas qual não foi essa solidão, hein?

Nos sonhos, ela sempre vinha. Ela ainda continua vindo, na verdade. O último que eu tive com ela, eu tinha a louquíssima missão de ajudar, nada mais, nada menos, um Faraó ressuscitado a encarar os dias de hoje. Aí, por ter ajudado o cabra, ele me "presenteou" com uns minutinhos com ela. Louco. Em uma das tantas casas alugadas que eu morei em Bacabal, traziam-na do corredor. Ela vinha caminhando, ladeada por duas pessoas que a seguravam até a cadeira que a esperava na pequena sala. O lugar se enchia de gente e eu arrastava uma cadeira e ficava sentada frente a frente com ela, que estava muito, muito velhinha como nem o era, com os cabelos todos branquinhos que só se vendo.

Ela olhava pra mim... Era bastante óbvio o quanto ela estava feliz por me ver. Era um sorriso tão bonito, tão faceiro, tão dela. Ela não dizia nada. Eu entendia que ela não podia. Mas eu podia.

Eu afastava meu corpo mais pra frente e dava aquele abraço profundo. Passava a mão nos cabelos dela e dizia: "Lulu, eu te amo muito. Muito!". E era só isso que eu conseguia dizer. E olhava pro rosto dela, afagava e só sabia repetir isso. Aquele abraço que ela me deu foi a única forma dela me dizer o mesmo. Que bom que os meus sonhos com ela são assim. Meu cérebro tem horas que me ajuda, compensando o que não pôde se resolver na realidade.

Quando eu paro pra pensar na Lulu, eu sinto tristeza, ainda. Eu não nego a vontade de chorar, nem as lágrimas que ainda descem. Mas eu muito mais rio do que choro. A tristeza vem mais quando eu lembro do que aconteceu, do baque, do susto, de pensar que tudo estava bem, mas na hora não estava, e que o que tinha acontecido, dessa vez, era incorrigível. Ai, um absurdo. Eu passei dias com um grito seco na garganta, que não saía de jeito nenhum. Uma pressão no peito que não achava jeito. Até que fui caminhar e numa área bastante deserta perto da minha casa e gritei. Gritei mesmo, pra caralho, deixei sair. Ajoelhei no chão e chorei até a última gota de lágrima que ainda tinha restado. Acho que o meu coração suspirou um pouco.

Nas caminhadas de hoje, de vez em quando eu lembro dela. Falo dela, como sempre falei, pros colegas de trabalho, nas redes sociais, nos escritos, e são sempre coisas boas que vêm à boca. E eu entendi que a memória dela é cada vez mais viva, mais buscada, mais feliz. Que, mesmo que ainda lacrimeje, eu sorrirei muito mais. Que o amor que a gente sentia, essa conexão inexplicável das nossas almas, não morreu. Tudinho tá bem dentro aqui. Meu amor, meu tanto amor, é minha raiz e eu vou carregar essa mulher, essa tão amada mulher, como um privilégio, até o dia da minha própria morte.

Tudo bem que você foi, sabe, Lulu? Você tinha que ir mesmo, eu sei. Eu tô aqui pra lembrar de você.

domingo, 27 de março de 2016

O tempo certo

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

(Carlos Drummond de Andrade. Trecho da poesia "Ao amor antigo")


Uma vez, uma prima minha me contou uma história, que eu já sabia, mas não sabia tanto. A adolescência dela foi pelos anos 90, enquanto eu ainda andava nos cueiros pra lá e pra cá, lá na terrinha. A época era toda diferente. A vida, na verdade, era bem diferente do que costuma ser hoje. Dos rapazes da rua, um era bastante interessado nela desde sempre, desde que todos nós podemos nos lembrar. Ela seguia numa resistência que só uma moça criada no interior sabe engendrar. O rapaz avançava, ela retrocedia, o rapaz dava em cima, ela cortava, o rapaz queria, acabou que no final, ela ficou querendo também. Eles deveriam ter, sei lá, uns 15 ou 16 anos na época. Começaram a namorar daqueles namoros bonitinhos de adolescentes. Nada do que não fosse solenemente permitido, é claro.

Numa viagem de moças da capital pra terrinha, eis que o rapaz cresceu o olho pra uma. Era bonita, charmosa, tinha aquele ar metropolitano, aquela coisa diferente. Ele não resistiu e, se o espírito não me engana, deram lá seus beijinhos. Minha prima soube. Com o orgulho próprio que corre o sangue de todos da minha família, soçobrou a fúria daquela paixão adolescente e disse adeus pra nunca mais ao rapaz genuinamente arrependido. Não houve protesto, panelaço, apitaço, greve de fome, cartazes levantados, não houve Deus e não houve diabo que a fizesse perdoar.

Os ânimos se acalmaram. Ainda eram vizinhos, afinal. Ainda tinham muitas coisas em comum. Ainda havia amor, no final das contas. Mas aquela chama, aquela coisinha que ela carregava, foi apagada com terra. Não era por falta de tentativa. Era por falta. E por mais que ela procurasse dentro de si, esquadrinhasse cada um dos muitos compartimentos do seu coração, ainda assim, não achava o que pudesse reacender o que quer que fosse. E assim tudo continuou, pro desespero do rapaz.

Anos e anos e mais anos depois, ela me conta a história. Entre risos, verdadeiramente sem rancores ou nostalgias. E me disse, quando eu ainda morava na terrinha, que mesmo com tantos anos e com tantas voltas do mundo, o rapaz ainda carregava uma esperança, mesmo que muda. E eu senti uma tristeza muito profunda por ele, porque vi que era além de orgulho o que havia ali. Era o tempo que tinha passado. Era ela que havia curado.

Desde então, eu estou convencida de que as coisas têm um tempo. Não falo de nada metafísico, cósmico, essas coisas. Não acredito que haja alguma interferência. Mas acredito piamente que coisas que deixam de acontecer no tempo que elas têm pra acontecerem, se perdem. Quando falo nisso, claro, não me baseio nessa única história. Eu me baseio em todas as minhas experiências. Vi fogueiras recíprocas serem apagadas gradualmente pelos impedimentos. Vi conexões que se perderam porque não houve coragem pra se enfrentar o medo. Vi que coisas muito lindas não aconteceram porque os indivíduos nela deixaram o tempo passar, para além da salvação.

Sou nova ainda. Apesar de já ter visto e vivido muitas coisas, tenho a plena consciência de que não vi tudo. Tenho raiva das histórias em que eu me meto, das semelhanças, das confusões. Desta vez, sinto que é pra mim que o tempo está prestes a passar. Posso visualizar, mesmo que ao horizonte e um pouco distante, isto passando. Indo embora. Saindo pela janela, como eu implorei para todos os deuses que eu conheço e nem acredito, para que assim o fizessem. Eu trabalhei pra isso. Eu sabia que era necessário, desde quando soube, desde quando as palavras foram registradas naquela telinha, comigo naquele bar, há quase um ano. Quantas vezes eu não peguei o celular pra as ler novamente? Pra me convencer, por a+b, que se pode fazer tudo o que há no mundo, menos deliberar sobre os sentimentos. Se nem os próprios, imagine os alheios.

E que estranho ver o tal do tempo passar. Que estranho saber que, daqui a pouco, a não ser que ocorra um cataclisma, eu também vou procurar aqui, esquadrinhar os meus quartos, e não vou achar. No momento, é uma mistura muito forte de melancolia e sensação de dever cumprido. Como se eu pudesse me orgulhar por ter feito o que eu pude, que eu trilhei o meu caminho, que eu sabia que seria possível me despedir sem rancores, nem mágoas, nem arrependimentos, de um sentimento meu que já não me servia mais. Que estranho saber que, mesmo assim, o amor permanecerá. Que tampouco ele será o mesmo. Não vai carregar mais aquele fado da urgência, não terá mais oportunidades de doer. E será tão, mas tão leve...

Tenho a certeza de que, em algum momento, algo vai acontecer, sabe? O inesperado é meu amigo e a minha vida é uma coletânea de eventos improváveis. E sei, do fundo do meu coração, que quem tiver a coragem de se deixar ser amado por mim.... Ah... Esse vai conhecer a felicidade.

Estou certa em minhas previsões?

Que o clichê dos clichês responda essa por mim: só o tempo, aquele tempo, dirá.