sábado, 3 de agosto de 2013

Há quanto tempo, né?
Tanta coisa que já mudou. Eu nem sei por onde começar e nem sei se devo.
O fato é: eu só estou escrevendo por que algo importante aconteceu. Novamente. E, na verdade, o que está me fazendo sentir coisas nesse momento não foi o que realmente aconteceu (como nunca o é), mas o que eu estou sentindo sobre o fato. Hoje, faleceu alguém que eu odiava bastante. Bastante mesmo. Como eu nunca odiei e nunca serei capaz de odiar a mais alguém na minha vida, espero.
Talvez, pra isso, seja mister explicar algumas coisas: em um dia como esse, há três anos atrás, no começo de agosto, eu estava pra viver um dos piores dias da minha vida. 2010 foi o ano que eu me mudei pra Teresina e o ano que eu comecei a viver mais as coisas que eu sempre soube que poderia, não fossem as amarras que eu mesma me enredava sempre na minha cidade. Dava desculpas à mim mesma por não estar fazendo as coisas que eu queria, por não estar vivendo as experiências que eu queria e sabia que já era tempo de viver. Por vontade, não pelos outros. Ponto.
Vim pra Teresina atrás de um sonho, atrás de um ideal. Mas não só atrás disso: também vim pra Teresina atrás de uma nova vida. Vi essa cidade como um recomeço, uma nova chance, algo melhor. Melhor do que as horas agoniantes que havia vivido a adolescência quase toda, ou a melhor parte dela, ao explodir a grande bomba que ficou estilhaçando minha vida por muito tempo, desde os meus dezesseis anos, aquela que eu não posso deixar de falar nunca: a porra da síndrome do pânico.
E chega a moça serelepe, contente, mas morta de medo. Na cidade onde não tinha um amigo sequer, um conhecido que a valhesse, foi contar com um velho amigo que poderia levar pra onde quisesse: o diário que mantinha desde 2008. Nele, resvalava todas as minhas emoções, todos os meus ódios, meus acontecimentos, minhas iras, meus amores, minhas paixões, minhas taras, meus xingamentos, minhas bênçãos. TUDO. Se há algo de que me orgulho, mesmo depois do que tudo aconteceu, foi o fato de eu ter conseguido ao máximo não filtrar os meus pensamentos - lógico, sempre nos limites da escrita e da rapidez com que a minha mão era capaz de escrever. Nunca pensei em fazer uma versão digital (e mais segura) desse diário. Pra mim era imprescindível o papel pautado em branco e uma caneta com tinta. Eu queria minha letra. Eu queria minha subjetividade riscada ali, eu queria à mim, no que possível fosse da minha totalidade. Tentei.
Consegui até Agosto de 2010.

Na van que me trazia da minha cidade pra cá, mamãe perguntou ao motorista se ele conhecia algum lugar onde nós duas pudéssemos ficar, pelo menos durante a primeira noite que eu passasse aqui. Ele nos indicou uma pensão que ficava perto de onde eu estudo e que, segundo ele, eram de gentes muito boas. Pessoas evangélicas (não vou escrever qualquer juízo de valor sobre isso, pelo menos, não agora), muito respeitáveis e rígidas nas normas, porque não podia ser da "bagunça", claro. Claro.
Nessa época, conheci pessoas maravilhosas. Os amigos que eu fiz lá, apesar de que raramente eu mantenho qualquer contato, ainda me pego pensando no quanto foram essenciais naqueles meses chorados e novos em que eu saí da minha terra, depois de 19 anos morando por lá. Todos estávamos na mesma situação e era natural que todos nos ajudássemos. Obviamente, fui também viver as coisas que eu pretendia viver e que a mim não seriam mais vedadas pela pessoa que mais me impedia, sempre: eu mesma. Saí pra festas, bebi, fiquei bêbada, vomitei, beijei, dancei que me acabei. Mas também fiz amigos, estudei como nunca tinha estudado na minha vida, passei em todas as disciplinas, contornei crises. Enfim... Vivi. E não tinha perdido a minha responsabilidade, meu tino, como muita gente na minha família julgava que eu o faria.

E registrava diariamente nos meus cadernos numerados o que me acontecia, porque sabia que o tempo ia passar e a minha memória nunca foi nada confiável. E pra conseguir também. Sabia que, em qualquer momento que fosse da minha vida, aquelas páginas não me deixariam decepcionadas. Não me deixariam de ouvir. Seriam pacientes com as minhas lamúrias de saudades, minhas paixonites do primeiro período de faculdade, com o mesmo velho amor encarniçado de anos, com as minhas raivas, com qualquer Jamila que ali se apresentasse. Eu trabalhava minhas emoções nele. Eu me resolvia. Tudo na mais plena confiança de que só eu tinha acesso, porque todo mundo sabe que a presença de um observador diminui a espontâneidade de qualquer experimento.

Pois bem. Em Agosto de 2010, eu fui aviltada de uma forma que nunca tinha me acontecido antes. O casal velhinho e respeitável da pensão, estava nada mais nada menos do que lendo o meu diário. Lendo os segredos e as histórias que não pertenciam à mais ninguém, senão a mim. Acharam que, por superiores donos da pensão que eram, poderiam pegar os escritos das pessoas que moravam lá e ler. Isso mesmo: leram. Leram todos os meus segredos e confissões, daquelas que você não conta pro melhor amigo. Invadiram uma esfera muito maior que eu jamais havia deixado ninguém entrar: o profundo do meu íntimo, clandestinamente, sem qualquer permissão e sem qualquer conhecimento. O tempo foi passando e eu fui percebendo que aquelas pessoas que haviam me acolhido tão bem outrora, estavam me tratando deliberadamente mal. Inclusive a própria empregada da casa, que se fazia de minha amiga, conversava comigo como que pra confirmar coisas que eu havia escrito no diário. E a coisa foi chegando a um ponto tão insuportável, que a dona de lá me chamou pra conversar e falou coisas que eu nunca poderia imaginar que ela saberia, porque não tinha como, por outro meio. Basicamente, ela me acusou de várias coisas, me fez várias chantagens veladas, como a de que eu teria que sair de lá. Mal sabia ela que era a coisa que eu mais desejava na minha vida, naqueles momentos. Saí da tal conversa, liguei pra minha mãe e disse tudo o que havia me dito. Sem compressões e sem alívios pra mim, por mais que eu tivesse contando a minha versão. Fui embora de novo pra minha cidade. Voltei com a minha mãe, pra que ela dissesse absolutamente tudo que havia dito pra mim na cara dela, nada mais justo. Fui à Universidade e quando voltei com o coração pesadíssimo pelo resultado da conversa, encontro, atônita, minha mãe me dizendo que ela se recusou a falar qualquer coisa a meu respeito e disse que era pra deixar tudo pra lá. Hoje sei que foi o puro remorso pelo que estavam fazendo comigo. Só que por aí não parou. Começaram a me tratar bem por um tempo, mas eu descobri que estavam falando mal de mim pra MÃE da galera que chegava lá, que já morava comigo. Qual não foi a minha surpresa quando eu tive que mudar de quarto, sendo que eu me dava super bem com as duas outras meninas com quem eu dividia o quarto? Ainda mais sob a ridícula desculpa de que era pra que "as evangélicas ficassem em um quarto e as que não eram, em outro, pra não ter problema". Eu poderia contestar, mas não fiz pra não arrumar mais confusão. Mas eu juro que o dia que eu pensei que eu fosse morrer de ódio foi o dia que eu descobri que o real motivo foi que a mãe de uma das meninas que morava no quarto comigo, ao ouvir o quão "louca" eu era, temia pelo futuro da sua filha ao lado de tão má companhia, olha! E hoje eu me lembro o tanto de vezes em que acolhi a sua filha chorando morta de desesperada por não conseguir passar no vestibular, ou dava conselhos pra que estudasse mais, dentre outras coisas.

Minha vista rodou, escureceu. Eu acho que a minha pressão deve ter baixado nessa hora. O estresse tava alto demais. Pra evitar escândalos, calei toda a raiva que eu tinha dentro, respirei com muita vontade e entrei pro quarto novo, com as novas companheiras e escrevi todo o ódio que havia naquele momento na minha alma. Escrevi todos os xingamentos novos e antigos e creio que ainda inventei alguns. E disso não me arrependo. Da minha esfera íntima, quem tinha o domínio era eu, só quem poderia ter acesso também era eu. E ainda fiz isso pra não evitar mais problemas com aquele povo. Porque não tinha pra onde ir, porque não podia ser expulsa e ter que ligar desesperada pra um "recém-amigo" pra que me desse abrigo à noite, porque não podia ligar pra minha mãe chorando dizendo que tinha esculhambado um povo que me humilhou só porque não concordavam com o modo de viver que eu havia escolhido pra mim. Uma pessoa adulta, com cérebro, que estava tomando decisões. Quem eram eles ou quem era qualquer pessoa pra me falar alguma coisa? Alguém por ali pagava minhas contas, por acaso? E muito além disso: o que eu fazia ou deixava de fazer fora daquele ambiente, não era problema de absolutamente NINGUÉM.

No outro dia, tendo tomado café da manhã com pão e ódio, segui pra minha jornada diária que era das 8 às 18, na Universidade. Eis que no meio da tarde, o meu celular toca de um número desconhecido, mas tava no silencioso e eu não atendi. Tocou várias vezes e todas as chamadas ficaram perdidas. Cheguei lá na pensão, jantei. Tudo muito normalmente, tirando o fato de eu não aguentar nem olhar na cara desse pessoal. Fui pro meu quarto pegar um dinheiro pra ir ao shopping que fica perto de lá, quando sou abordada pela filha deles. Uma mulher que eu julgava ter mais de 30 anos e que morava lá também, ou que, pelo menos, passava uma boa parte do tempo. Me abordou da maneira mais violenta o possível e eu sem entender o porquê daquilo. Quando eu vi algo em suas mãos que fez o meu mundo desmoronar à minha volta: a XEROX do meu diário. Isso mesmo, amiguinhos. Nada mais, nada menos que várias páginas xerocadas do meu diário. Figurando, claro, as ofensas íntimas que eu havia escrito no dia anterior. Porque, logicamente, foram lá dar a lidinha do dia e acharam o que tavam merecendo ouvir. Tivemos uma briga corporal, mesmo com a minha força já perdida, mas mesmo assim eu não consegui recuperar o meu diário. Comecei a gritar e a chorar ao mesmo tempo. A visão ficou embaçada e ela seguia me gritando coisas e mais coisas dizendo coisas como: "Você tem que pedir perdão pra Deus", "Eu vou te processar", dentre outras coisas que o melhor pra minha sanidade não lembrar. E eu gritava e gritava, perguntando porque eles tinham feito aquilo. E tentava reaver meu diário, mas ela não me dava. Fragilizada que eu tava, mal conseguia me manter em pé.

Me empurrou de volta ao quarto que eu estava, com a porta em frente ao que tudo aconteceu. Atirou-me lá dentro e disse, sarcástica: "Olha, não vai dar uma crise não, viu?". Cambaleante, fui tomar um banho. Tirei toda minha roupa e fui pra debaixo do chuveiro. Vomitei todo o meu jantar recém comido (cara, eu podia ter morrido nessa porra, sei lá) e desmaiei em cima dele. Depois de um tempo, acordei e consegui pegar meu celular pra pedir ajuda. Liguei pro pessoal de lá, meus amigos. Uma delas me procurou no quarto e me limpou e me vestiu, também já passando mal pelo susto. Foi quando todo mundo apareceu, depois que ela gritou pela casa pedindo ajuda.

Todos vieram, inclusive quem tinha me causado aquilo. Fui levada pra cama já em crise, sem conseguir enxergar quase nada do mundo, com o meu cérebro totalmente alucinado, com toda aquela sensação escrota que essa merda de doença pode causar numa pessoa. Todas. Todas elas. Pelo menos, todas as que se manifestavam em mim, que botavam pra fuder mesmo com qualquer perspectiva de juízo. Nessa hora, eles ME PERDOARAM, acredita? ME PERDOARAM. Perdoaram pelo quê, meu Deus? Quem fez o mal pra quem? Na cabeça desse povo moralista, que só respeita quem anda na linha que eles traçam pra moças, pras pessoas, pra quem quer que seja, EU tinha errado. Eu tinha errado porque fui colocar a MINHA raiva em um lugar de fala que era só MEU. Do meu mais íntimo. Fora que eu nem falei que à tarde, antes de eu chegar, eles ligaram tocando o terror pra minha mãe, dizendo que iam me expulsar de lá e LERAM minhas confissões e segredos pra ela, como se já não bastasse tudo o que eu já tinha sofrido até então.

Talvez foi a crise mais longa da minha vida. Não dá nem pra colocar tudo, mas o cara pegou um óleo lá e me ungiu, me EXORCIZANDO, tá ligado? Tipo, o cara tava falando que era pro coisa-ruim sair de mim, galerinha do barulho. Meu celular tinha sumido (depois eu descobri que meu pai tinha ligado e que quem atendeu foi a filha deles e disse que EU ESTAVA MUITO BEM, OBRIGADA). Certamente estavam com medo de pra quem eu poderia ligar, quem eu poderia acionar. Mas eles nem precisavam ter ficado preocupados. Eu estava submersa em tanta agonia e sofrimento que até a possibilidade de defesa me foi tirada.

E foi, na minha vida, a maior maldade que pessoas já me fizeram. No outro dia, um amigo foi lá me buscar e eu tive que ser levada ao hospital pra tomar soro. E nunca mais pisei daquele lugar. Saí de lá com a roupa do corpo pra nunca mais voltar, graças a Deus. Alguém tem noção do quanto isso me doeu? Do quanto isso me abalou? Na própria fé que eu tinha das pessoas... Fui pra minha cidade sem saber como eu ia ter coragem de voltar de novo e ficar sem minha família... Alguém tem noção do quanto eu sofri com minha vó me dizendo coisas como se eu mesma tivesse provocado essa situação, como se fosse, de algum modo, legítimo que eles lessem mesmo algo que à eles não pertencia? O quanto eu sofri com a minha mãe realmente achando que eu que estava errada nessa história toda, no final das contas? Quando a moral cristã falou mais alto e eu tive que ouvir de gente que me ama e que eu amo, que eu não deveria ter escrito nada daquilo... Ou que eu deveria ter tomado mais cuidado com o meu diário... Como se fosse possível em um lugar onde não se tinha a menor privacidade e se pagava muito caro por isso.

Tudo doeu e ainda dói. E eu não pude buscar justiça, porque não tive o apoio da família. Quem mais quereria um escândalo, não é mesmo? E também não tinha estruturas físicas e principalmente psicológicas pra passar por isso sozinha. Quantas noites chorei na minha cama por tudo o que isso representou, meu Deus? Quanto de ódio não foi despertado? Eu nunca pensei que pudesse sentir essas sensações ruins que eu senti em relação ao que quer que fosse, imagine à um ser humano. Imagine à um grupo de seres humanos. Nunca pensei, mas eu senti.

Soube, através de um grupo onde fui "jogada" por um outro ex-pensionista, que o cara tava doente, muito doente mesmo. E que hoje, prestes a completar 3 anos daquela desgraça, morreu.

Velho, eu não tô nem aí.