quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Os meninos sujos

A pobreza me assusta. Nem sempre foi assim.

Eu ainda me lembro da primeira vez que me dei conta da pobreza. A escola que eu estudava mudou todos os livros didáticos e tivemos um livro de História mais atual. Eu devia estar na 4ª ou 5ª série do Ensino Fundamental, quando abrimos bem na página que tinha uma figura onde dois meninos negros estavam sentados no chão, sujos, com instrumentos nas mãos. Qual não foi a surpresa quando vi a seguinte legenda na foto: "Meninos quebram coco-babaçu em Bacabal, no Maranhão". Foi chocante. A pobreza sempre esteve ali, perto de mim, mas nunca ela tinha sido apontada dessa forma. Sempre caíamos nos clichês de achar que a miséria só existia na África. Um continente inteiro convertido em uma massa amorfa de gente que só tinha direito ao destino de passar fome e morrer de Aids. O malfadada única história. A versão de fora. Os missionários vinham dos países da África subsaariana  pra minha igreja e atiçavam a minha imaginação de como era viver com o nada. O terrível era lá, só lá.

Aquela fotografia me marcou. Mesmo não sabendo de conceitos que só fui internalizar anos mais tarde, comecei a pensar sobre a naturalização da pobreza. Sobre como tinham as pessoas que nasceram sem sorte e as que nasceram com sorte. Pra quem eu era naquela época, pensar isso era um grande coisa. Minha educação foi religiosa do começo ao fim e os contrapontos que eu tinha, eram de uma exploração glutona da literatura, que eu conseguia arranjar nas bibliotecas da vida. Aquela cabeça de criança viajava demais.

Vieram as histórias e as descobertas: a atividade de quebrar o coco era perigosa, afinal. Inúmeros acidentes já aconteceram, de pessoas que ficaram cegas porque uma lasca escapou ou por terem se cortado com os instrumentos rústicos de trabalho. O sol castigava. Os pulmões saíam maltratados. O couro ficava grosso. As mãos, repletas de calos. Aí fiquei sabendo que o vizinho da Lulu, mais velho do que ela, tinha ficado cego por conta de uma lasca que tinha atingido um de seus olhos. O outro olho ficou cego por causa de outra desgraças dessas, que já não lembro mais.

Desde então, a pobreza me doeu. Por que eu entendi que era pura e simplesmente uma questão de sorte, como disse antes. Que eu poderia estar facilmente no lugar daquela menina desgrenhada que, como fazem em Bacabal, saía da periferia caminhando pelos bairros da cidade, com um saco plástico, pra quem pudesse, colocasse um pouquinho de arroz ou qualquer outro mantimento não perecível. Foi nessa época que uma menina apareceu lá em casa e sem ninguém perceber, peguei um vestido meu e dei pra menina. Ela ficou sem acreditar. Peguei uma surra por causa disso.

E vem uma bile na minha boca, toda vez que algum imbecil tenta relacionar a pobreza com simplicidade. Ser simples é uma coisa. Ser pobre é outra, completamente diferente e horrível. Os caras querem porque querem transformar pobreza num valor, porra! Me diz que merda de simplicidade é essa de viver de preocupação em preocupação, sem saber como vai pagar as contas, sem saber como vai colocar comida na boca dos filhos? "Ahhh, mas a vida simples do homem do campo, sem preocupações mais que a colheita...". O caralho. O caralho. Quando isso? O quê que isso tem de simples? Metade desse planeta tem menos pra viver do que necessita e tem muita gente por aí enfiando a mão, literalmente, na merda pra sobreviver. Automatização de uma rotina também não quer dizer simplicidade.

E eu fico pensando o quanto nós, seres superiores da classe média pra frente, achamos que os nossos problemas são maiores dos que os dos quem vivem com menos que a gente. Só nós temos problemas existenciais. Só nós procuramos o sentido da vida. Só nós sabemos o que é certo. Só nós entendemos o significado das palavras rebuscadas. Nós não somos simples. Os nossos problemas não são simples. Os deles são. Eles são simples. Eles não têm aquela complexidade humana marota e ishperta que nós temos.

Antes de ontem conversei com uma senhora, em um interior do Piauí. Uma lavradora. Se tem uma coisa que ainda me anima nesse Jornalismo, é essa ponta da cadeia. Ela me contando que acorda cedo, de madrugada ainda, pra regar as plantas da horta pequena que tem. Que quando sai de lá, tá com o juízo o tempo todo "na minha hortinha". O sustento. Vieram todos esses pensamentos comparatórios. Não tive pena daquela mulher. Apesar da rotina dura, não sugeriu em nenhum momento que passava necessidade. Claro que ela estava maltratada pelo sol, claro que a rotina era dura. Mas, por acaso, a minha rotina também não é automatizada? Não estou o tempo todo preocupada com meu trabalho, mesmo que não queira? Não estou também eu com as mãos calejadas? Ela me disse que era feliz e eu acredito. Ninguém melhor pra dizer o que é do que a própria pessoa.

Não, não estou cometendo o crime de comparar diretamente a minha atividade com a dela. A minha situação é, obviamente, bem mais privilegiada, mas por uma série de outros motivos que vão muito além do meu esforço pessoal. Conversar com ela me lembrou que esse lance de simplicidade que o pessoal insiste em associar à pobreza é uma bobajada sem fim. Absolutamente NADA do que nós conversamos me deu qualquer indício pra intuir se aquela mulher vive uma vida simples ou não. Por mais que nós tenhamos conversado amigavelmente por um tempo e ela tenha me contado parte da sua rotina, eu tenho a total consciência de que não a conheço.

Se a pobreza não é boa nem simples, o estigma também não. O ceromano não vive sem rotular, identificar, eu sei. Superar as identidades... Sei lá. Seria uma superação de algo que eu nem posso definir. Porra, mas ficar nessa de pobre burro-bonzinho-vida-simples-e-boa-que-ah-se-eu-tivesse???? Vai tomar no olho do cu.

Com areia.