Nos tempos da meninice, onde as meninas podiam andar de calcinha na rua e os meninos curavam suas feridas da bola jogando terra em cima das unhas esfoladas, alguém me perguntou algo que me ficou: se eu já tinha visto o nascer do sol. Eu tinha uns 8 anos e não, não me lembrava de, em qualquer tempo da minha vida, ter visto o nascer do sol. Como sempre vivi admirada pelo espetáculo que era o se-pôr dele, imaginei que o movimento contrário merecia a homenagem.
Nós morávamos numa casa de uma avenida movimentada em Bacabal. À noite, o ir e vir dos carros e motos nos deixavam entristecidos, já que não poderíamos brincar do que a gente queria na rua, que era o nosso lugar. Era pé-na-linha-guerriô, baleada, tacobol, esconde-esconde, pega-pega e mais outras brincadeiras que sequer existiam fora do nosso círculo de amizade. A gente conseguia brincar na larga calçada da dona Jandira, que tinha ódio daqueles gritos na porta de sua casa, mas dona Jandira era boazinha, até o dia que alguém jogou uma pedra sem querer que amassou o portão de alumínio recém adquirido. Havia outra velha que tinha olho de vidro e cara de má. Ela furava as nossas bolas quando íamos, naquela ruma de meninos brincar no enorme quintal da casa alugada que eu vivia. A gente colocou nela o carinhoso apelido de "mocoronga". E a gente era assim: depois que pegava no dente com uma coisa, era pra sempre. A maior confusão da rua, com direito a costas esquentadas por cipós, foi o dia que a gente respingou lama no olho de véia. Pobrezinha da bichinha. Pobrezinha nada!
Não me lembro como, nem quando, nem onde. Mas alguém chegou pra mim com essa conversa do nascer do sol. Eu era criança, mas sempre curti um papo com uma galera mais velha. Deve ter sido um deles que veio bagunçar minha cabecinha com aquela piração. Eu descobri que o sol nascia lá pras cinco e meia da manhã. Não tinha esse negócio de celular e o nosso despertador pra ir pra escola sempre foi nossa mãe. Então, não tinha jeito! Eu teria que fazer serão a noite toda pra poder ver o nascer do sol. Fiquei tão ansiosa que não conseguia nem cochilar. E se as pálpebras me traíam, acordava num espasmo, como quem cai em sonho.
Quatro e pouco da manhã, eu vi no relógio. Minha casa, como nas muitas seguintes que morei, era como são as casas no interior. A porta que se abre pra rua, já dá na sala. Sem área, sem garagem, sem portão com controle. Todo mundo sentava nas suas portas à noite pra ver a vida passar e as ruas eram lugares seguros pra nós, que éramos jovens. Com toda a inocência que só uma criança de 8 anos pode ter, abri a porta com a chave que estava naturalmente pendurada na fechadura, e fiquei sentada no batente. Era madrugada e fazia um pouco de frio, mas ok. Várias gentes passaram. Passou um bêbado do outro lado da rua e gritou alguma coisa pra mim. Eu não gritei de volta, já que minha operação era clandestina. Passaram muitas pessoas de carro, outras de moto, outras de bicicleta. Alguns buzinavam, espantados com a minha presença ali. Passou outro homem. Esse parou e ficou conversando comigo. Devia estar bêbado, mas não tanto. Falou: "Menina, o quê que tu tá fazendo aí sozinha uma hora dessa?". Eu respondi: "Eu tô esperando o sol". Ele disse que era perigoso pra mim, eu disse que não tava com medo. Eu não tava com um pingo de medo. Nunca que passou pela minha cabeça que eu poderia esperar o sol do mesmo jeito no quintal.
O mundo começou a clarear, por fim. E cada vez mais a luz se punha intensa, a ponto de me incomodar. Eu olhava pro céu e nada. Nada de sol. Nada de espetáculo. Já iam acordar, já iam me flagrar. Era quase hora de ir pra escola e a luz já era intensa, mas nada do raio que o parta desse sol. Não sabia de um pequeno detalhe:
O sol só nascia do lado de lá da minha casa.