sábado, 4 de abril de 2015

Compay, Zaz, Juanica, Chan Chan e o Violão

Compay Segundo sentou na cama. Não conseguiu dormir por mais um segundo sequer. Sonhou com Juanica, com Chan Chan. Estavam numa praia, cada qual com sua enorme peneira na mão, sacudindo montes de areias que pegavam. Era o trabalho de refinar a areia pra construir a casa que faria da vida deles um paraíso. Juanica se remexia pra balançar a peneira devagar. Estava suada. Vestia uma saia ordinária, uma blusa de tecido frágil, surrada, que deixava os bicos dos seios circunscritos, mesmo debaixo do sutiã. Tinha um chapéu de palha enorme na cabeça e uma chinela rasteira, ambos feitos por ela mesma. Chan Chan olhou. Juanica não parava de remexer daquela forma. Os seios moviam pra lá e pra cá delicadamente. Era uma dança inconsciente o que fazia Juanica. Chan Chan sentiu um esmorecimento, uma fraqueza conhecida, uma súbita vontade de morrer. Juanica, inocente, falava sobre a vida na casa nova. Tudo muito bem feito, dos móveis bons, de tudo arrumado, sem parar de se remexer. Estava quente. Juanica estava quente. Chan Chan sentia o calor de Juanica começar a cozinhar seus sentidos. Lembrou de outras horas quentes, suadas, movimentadas. Uma agonia lhe subiu pelas pernas, uma mão invisível o acariciou. Soltou a peneira e resfolegante, tocou Juanica nas ancas. Juanica percebeu o olhar de Chan Chan, parou de se remexer. Jogou a sua peneira no chão. Deixou o trabalho pra depois...


Compay acordou. Quatro notas tocavam na sua cabeça. Ainda podia sentir a agonia de Chan Chan. Podia sentir o calor de Juanica. Sentado, pegou o lápis, o papel e copiou tudo o que viu.

***

Zaz tinha um violão quando era mais moça. Era lindo. Não era um violão de marca. Foi ficando velho e isso, estranhamente, fazia com que as notas saíssem mais fluídas. Zaz cresceu. A moça ficou grande, começou a cantar, a ganhar algum dinheiro. O violão ficou pra trás. Zaz mudou-se pra Paris e, à pedido de sua mãe, levou o violão antigo consigo. Com aquele olhar nostálgico que se dá pras coisas queridas, porém inúteis, deu um breve suspiro e guardou o violão velho num espaço vazio do pequeno guarda-roupa. Como não existe coisa mais triste que um instrumento que não é tocado, o violão chorou. Devia ser o calor ou o frio expandindo ou encolhendo a madeira, mas o certo é que o violão chorou. Um chorado triste, um pedido de resgate. Zaz ouviu o choro e abriu o guarda-roupa imediatamente. Sorriu pro velho companheiro. Assim que o colocou entre os braços e seios, tocou as cordas desafinadas de tanto tempo e soube que ali havia uma música triste. O violão voltou à vida, mesmo de madeira velha, mesmo de cordas desafinadas, mesmo de canções tristes que estavam guardadas em si, só esperando por Zaz.


sexta-feira, 3 de abril de 2015

Não consegui colocar um título

Há dois dias que eu estou em Bacabal. Isso sempre me alegra o coração. É bom vir pra cá, abraçar quem me é querido e me dedicar, sem culpa, à nobre arte da desocupação. Só que sempre que eu venho pra cá, talvez pelo próprio ócio, uma onda de pensamentos bem mais urgentes me invadem. Desde ontem, um pensamento tá fixo na cabeça e hoje, por conta de duas mortes precoces - mas fora do meu círculo íntimo -, se agravou: o pensamento do quanto deve ser difícil ser mãe ou pai de alguém. Enfim, ter a responsabilidade de amar e proteger a outro ser humano, mesmo que ele não tenha sido gerado por si. Coisas acontecendo o tempo todo nesse mundo que me dá cada vez menos esperanças, me dão bastante medo de ter essa responsabilidade, ainda que tudo seja um plano dado quase como certo na minha vida, num futuro a longo prazo.

Pensei no quanto deve ter sido difícil pra minha mãe. Ela não tinha nada pra "dar certo", sabe? Meus avós maternos moravam no interior de um interior, no Maranhão. Pelo pouco de detalhes que sei da vida deles, não tinham más condições até minha avó adoecer e meu vô ter que vender quase tudo que tinha pra arcar com as despesas de um tratamento infrutífero. Acabou que ficaram bem pobres. Sem chance de um estudo mínimo de qualidade, minha mãe foi mandada pra ter o mesmo destino de tantas jovens, até hoje, pelo meu Estado. Teve que morar na casa de alguém que tivesse alguma condição na cidade grande, pra cuidar da casa e dos filhos da patroa, sem receber nada e estar sujeita à toda a sorte de humilhações que se pode ter ideia. Destino esse que, infelizmente, na minha própria casa, anos e anos depois, com eu e meu irmão ainda pequenos, fizemos repetir à outra jovem, saída do mesmo lugar que saiu minha mãe, com a mesma tarefa. Não esqueço disso, jamais. E é uma das coisas que sinto que, se tivesse condições, quereria compensar e pedir perdão.

De toda a maneira, o início de minha mãe foi bem mais complicado do que o meu. Nunca precisei trabalhar por um prato de comida e sempre tive, à duras penas, acesso à educação formal em umas das melhores escolas particulares daqui. Tive apertos, dificuldades, mas nada que realmente tivesse impedido o meu pleno desenvolvimento intelectual e físico. Mas eu estou "perdendo o ponto".

Quando eu nasci, as coisas ainda não estavam, digamos, plenas. Minha mãe tinha a minha idade e já era mãe de um menino de um ano e meio. Meu pai era ainda quem sustentava a casa, confiado que o comércio do mercado central da cidade, onde praticamente todos os meus tios paternos trabalharam, nunca iria decair como decaiu. Não sei em que ano, minha mãe entrou pra Universidade e começou a estudar pra ser professora. Conseguiu. Eu me lembro nitidamente de ir ao seu baile, aos seis anos, com o cabelinho chanel e banguela. E de ser uma espécie de "dama de honra", ao entrar na missa de ação de graças, carregando uma cesta de anéis da pedra azul que iam ser benzidos pelo padre. Depois da minha própria experiência na Universidade, o meu respeito pra com as mulheres que tinham jornadas de trabalho duplas ou triplas e filhos pra cuidar e que se formaram, aumentou consideravelmente. E o respeito E solidariedade pras que não conseguiram, também.

Tudo começou a partir daí. Minha mãe passou em concurso e a ganhar mais que o meu pai. Com mais condições, passou a sustentar a casa, o que, desconfio, foi um golpe terrível à equivocada crença de meu pai de que era "papel do homem" fazê-lo. Eu era pequena e lembro pouco, mas o casamento já estava caindo aos pedaços à época. Pra resguardar uma história que não é só minha, só posso dizer que, nessa parte, tudo mudou... Pra pior. E muito sofrimento isso me custou.

Quando adoeci, foi que vi nos olhos dos meus pais, o quanto era difícil ser o que eles eram pra mim. Passei a depender quase que inteiramente deles, até pra algumas tarefas básicas. Minha coragem era minha, mas não seria nada se eu não tivesse com quem contar. E não tivesse a mais absoluta certeza que, acontecesse o que acontecesse, eles estariam ali, comigo, não desistindo de mim. Que eles queriam absorver todas as dores que eu sentia pra eles. Que eles morreriam pra não me ver definhar.

Esse amor é o que eu procuro me lembrar, quando as coisas caminham pra rumos indesejados. É o perdão, sempre tabu na minha casa, pedido por minha mãe, depois de uma longa conversa sobre as conclusões que tirei sobre o que me causava aquilo tudo, é que eu evoco quando a irracionalidade bate à porta.

Depois de cinco anos morando fora, tudo mudou. O que era complicado e difícil entre nós, ficou discutível, debatível. As paredes da minha casa ainda têm as marcas dos meus pés, porque não foi pouco que eu tive que colocar o pé nelas pra que a realidade fosse outra. O que era impossível se tornou possível. Surgiu cumplicidade entre eu e a minha mãe. Surgiu a possibilidade de conversar entre adultos com o meu pai. Surgiu o diálogo, forçado pela saudade que finalmente fazia com que perguntássemos sobre os nossos dias e que pudéssemos dizer "eu te amo" sem constrangimentos, no final dos telefonemas. Surgiu aceitação, mesmo sem a completa compreensão do que se passava comigo. Surgiu o respeito pela minha individualidade, pelos meus sonhos e pelas minhas opiniões, bastante tóxicas pra mentalidade deles, eu sei. Mas os caminhos foram abertos e eu pretendo seguir por eles. Nada é ideal, já se sabe. Somos imperfeitos demais. Mas eu não perco a esperança de que, pelo menos no que eu posso interferir, podemos mudar ainda mais.

Hoje, quando duas tragédias mencionadas no começo desse texto vieram à tona, quando jovens vida se foram, deixando um rastro terrível de dor nos pais, foi que me veio a certeza mais que absoluta de que eu quero me manter nesse mundo por muito tempo ainda. "Cuando álguien se va/ El que se queda/ Sufre más", você está certa, Shakira. Por amor aos meus pais, é que eles precisam viver menos do que eu e meu irmão. E por amor a mim e a ele, é que precisamos que essa separação só seja daqui a muuuuuito, muuuuuuito tempo.