terça-feira, 25 de setembro de 2018

A dor e a fé

Há muito tempo eu não escrevo.

Deixei doer tudo o que havia de doer bem calada, como que pra deixar acalmar o lanho de tantos dias maus, de tanta maldade solta, de tanta miséria escorrendo das mãos e das bocas das pessoas, se acalmar no meu coração, que já não aguenta mais de tanto que pesa.

Todos nós já sabíamos que seria ruim, mas eu não imaginava que seria tão horrível. Em meu coração, os vislumbres de esperança querem amainar, por mais que eu me chame de volta à razão e saiba que eu não estou só nesse lamaçal monstruoso.

Logo eu, que já me imaginei mais forte que tudo, que já pensei que já havia sentido toda a minha cota de dor da vida, olho para o lado e vejo o chão se quebrando debaixo dos meus pés. Com um medo que não sei descrever, tenho sonhos horríveis com um futuro tenebroso, em que não só eu, como os meus, mesmo os que hoje apoiam o fascismo, são alvejados e caem mortos aos meus pés, enquanto eu não posso fazer nada, apenas ver.

Escrevo hoje, talvez, pelo único motivo de ainda poder. Não sei até quando poderemos. Mas nós lutaremos. O meu medo, hoje, transformo em força pra tentar. Transformo em coragem para não deixar vacilar. Transformo em esperança por dias melhores. Transformo em fé - até fé - que a nossa vida seguirá, e seguirá bem.

Força!


quarta-feira, 30 de maio de 2018

O calor

Pode ser que seja o dia de hoje, pode ser que seja esse momento assustador, podem ter sido os sonhos distópicos que eu tive quando me recusava a acordar e deixava o tempo passar lentamente pela manhã. Não sei. Só sei que não me deixa a sensação de que a minha vida está se esvaindo, cada dia mais, pelas minhas mãos. Pode ser que seja a tamanha e drástica mudança e todas as preocupações periódicas sobre o que é possível. Pode ser que seja a pressa pra que o tempo me salve mais uma vez, sem que ele se manifeste. Está em silêncio. Pode ser que sejam muitas as causas, eu ainda estou descobrindo. Só sei que já não me frui a alegria de vida que eu sempre ostentei. Nem minha leveza diante das adversidades, nem minhas certezas de que o futuro há de ser melhor. Pelo contrário: eu só me assusto cada dia mais.

É difícil reconhecer que, muito provável, os teus fantasmas agora já sejam outros. A angústia se torna ainda mais crescente quando eu me percebo só, no sentido bastante literal da palavra. E apesar de saber que esta solidão é parcial e aplacada pelo demais amor de um companheiro leal, ela ainda é maior do que uma só pessoa poderia nutrir. Ela se quebra com os muitos bálsamos que entendi ter nessa vida: sejam as pessoas, sejam os lugares, sejam os hábitos. Meu coração sempre precisou de refúgios e era tão mais fácil acessá-los... Agora meus refúgios estão tão longe de mim! E muito me assusta que até os meus mais antigos prazeres já não me atiçam mais a alma, já não lhe coçam por fazê-los, já não me assanham o espírito pra que aconteçam, como sempre foi, apesar do colossal esforço.

Há muito mais de solidão nesse meu admirável mundo novo, que todo mundo acha bem melhor do que eu. Que todo mundo acha bem melhor, inclusive, do que ele realmente é.

Talvez seja parte do doloroso processo de sair, mais uma das muitas vezes que a vida me exigiu, de tudo o que me era confortável. Talvez esteja realmente sendo mais difícil dessa vez. Talvez seja o fator cultural bem mais crucial do que jamais foi, quando eu nunca estava suficientemente longe pra não considerar que aquilo também era meu, que aquilo também era eu, que também fazia parte da minha identidade e forma de ser. Sinto que perdi uma estabilidade calcada em muitos anos de árdua batalha, em que tudo que me era familiar ficou irremediavelmente no passado. Aquele caminho de todos os dias pra pegar o ônibus, aquele apartamento pequeno que mal me continha, aquelas paredes que sabiam mais da minha vida do que eu, como se fossem uma grande pasta de arquivo que sabia pra qual lado da parede eu sempre dormia, quais notas de meus sussurros eram de dor e quais eram de prazer. Tudo mudou e eu já estou quase sem reconhecer meu rosto, mesmo depois de tão menos sol que sempre fez de minha pele mais velha do que ela é.

E pra que nada se esvaia sem uma dose (mesmo artificial) de esperança, pra que as palavras lidas consigam me ajudar mais do que o que me ajuda minhas forças: tudo o que eu desejo da vida é que eu consiga, de novo e pra sempre - tantas vezes forem necessárias - conseguir encontrar o caminho da minha paz. E que ele sempre seja reconhecível como o calor.

terça-feira, 15 de maio de 2018

O contrassenso

Já não escrevo mais.

A voz interna que fala pra mim o que escrever parece que resolveu descansar um pouco, depois de tantos escritos, de tantas tentativas, de tantas ideias soltas cujas palavras sequer chegaram à capitular. Aquela ânsia tão premente, tão presente, tão sofrida, de me desmanchar em palavras se amainou. O coração, tão feliz, jura agora não ter mais motivos pra falar. E falar o quê? Se já não há nele dores de partidas, nem chegadas ansiadas: há só o oceano tranquilo de um amor sereno.

Ainda assim, ainda não seria o suficiente pra justificar o fato de não escrever mais. Seriam as paredes de madeira da casa pequena que moramos, ou o sol frio que faz nos cantos do sul do mundo? Não sei. Mas, se não sinto que preciso escrever, então algo parou de coçar na superfície da minha alma. Se nem ao menos a voz que fala dentro me dita os textos que se escrevem sozinhos, o que terá adormecido em mim?

Se a minha própria essência não me carrega pelos mares da minha própria imaginação, então, quem sou eu? Eu me pergunto qual foi o momento de ruptura desse hábito que sempre me trouxe paz. Se foi a água salobra do sertão ventilado. Se foi a água gelada da metrópole fria. Se são os sonhos que me completam, me chamando de volta pra um passado que jamais será novamente. O que será?

Termino este texto - ele mesmo um completo contrassenso - em que escrevo o não escrever, na tentativa de acender uma chama que sempre foi assustadoramente acesa, pra que eu ainda possa me resolver em infindáveis textos. E pra que, principalmente, não deixe mais escapar esta enorme quantidade de vida que vem, e sempre há de vir, por aí.