terça-feira, 24 de maio de 2016

A luz

"Tengo mucho que escribir, y poco papel
Mi honestidad es color transparente
Me puedes ver por dentro con solo mirarme de frente"

(Adentro. Calle 13)

Eu quis não me manifestar tanto sobre o dia. Eu quis deixar o meu coração guardado, mas não deu. Sem que ninguém pudesse ver, eu chorei na frente do computador desta redação, que não está vazia. Todos estão sempre tão concentrados, que nada notaram. Melhor assim. Hoje era um dia que eu disse pra mim mesma que iria convocar meu Buda e ficar bem. Buscar minha paz. Vestir a Vida e viver mais um dia, como se ele não fosse tão marcante quanto o é, de fato. Um ano, gente. Um ano. Uma volta inteira que o planeta deu ao redor do sol.

Eu não sei... É meio impossível não se deixar carregar por um sentimento não deliberável, que foi a tristeza que bateu. Sabe, eu estou bem. Acordei com "Por una cabeza" na cabeça (rs), sem qualquer explicação razoável. Nem lembro qual a última vez que eu escutei essa. Estava sendo mais um começo, de mais um dia. Aí, por um sussurro desses no ouvido da alma, lembrei. Não sou de chorar, mas chorei que me acabei antes de me arrumar.

Aí veio "Oração ao tempo", do Caetano. Veio o pensamento da inexorabilidade dele, que eu acabei compartilhando. Por mais que eu saiba que não será "possível reunirmo-nos num outro nível de vínculo", eu estou em paz. E não teria mesmo como evitar qualquer reavivamento de emoções adormecidas, se vivo num mundo hiperconectado. Como vou segurar choros e risos, se estão postando fotos dela desde o começo do dia?

E ela é linda... Meu Deus, como essa mulher era linda. Às vezes eu ficava muito besta de olhar pra Lulu e pensar: "Caralho, como assim? Essa gata é mesmo a gata mais gata circulando no mêi das gata das gata de Bacabal". E dizia isso pra velha, que se acabava de rir. Aliás, qual era a conversa nossa em que a gente NÃO se acabava de rir, né? Todos sabiam que era a prioridade absoluta pra mim, em Bacabal.

Lááá pra outra era de 2008, era uma época em que eu ainda não tinha ainda passado no vestibular. Estava melhorando de todo o turbilhão. Já mantendo-me estável por períodos longos. As crises tavam lá, mas eu já tinha internalizado o mantra do "vai passar". Eu já dormia com Lulu desde que uma de minhas primas se casou, desde os 14 anos, com poucos hiatos de intervalo. No supracitado 2008, eu lembro bem de ter começado meu diário e acordar todos os dias às 5 da manhã pra desligar o ar-condicionado no palitinho, com o olho fechado mesmo, e voltar a dormir até 11 horas. Tinha dia que aquela égua me acordava esfregando um PAU, isso mesmo: um P - A - U nas minhas ------> nádegas. Pra ver como o gene da fulerage é algo herdado mesmo. Era um pedaço de pau que ela usava pra segurar um pano que cobria a janela no lugar, naquela época.

A véia já tinha operado do coração. Tinha que fazer exercícios. Foi quando achamos que era melhor caminhar na Praça do Bom Pastor todas as manhãs. Juro, a mulher pendia tanto que parecia um pinguim ao caminhar. Nessa época, alguns bebês da família nasceram. Toda rolinha que ela via sentada na rua, dizia: "Ó o Tamuel! Ô neném bêta!". Aí ficavam as duas rindo dessas besteiras. Todo santo dia, era pra ela que eu contava os meus sonhos ainda fresquinhos. "Menina, tu ao meno ora antes de dormir? É por isso que tu fica sonhando besteira!". Nem lembro, Lulu... Eu acho que eu ainda tinha minhas conversinhas com deus. De todos os segredos, esse seria o mais bem guardado: eu não te contaria que não estamos mais, eu e ele. 

Um dia, um homem, o mais aleatório possível, passou pela gente na nossa caminhada. Ele virou pra mim e soltou: "Você vai viver muito por causa disso". Só falou isso e foi-se embora. Tomara, cara. Lulu passou o dia inteiro bestinha por causa disso. Ela sabia que era porque o cara tava me vendo ali, com ela, cuidando, sendo a bengala daquele pinguinzinho bonito.

A luz. 

Era um ser forrado de luz. Lucila. Do latim, podre de chique. Luminosa. Esse nome que tá aqui tatuado no pulso direito. A mais-que-perfeita escolha pra conjugar o verbo amar, substantivado num nome.

Muito bonito o meu amor. Muito linda. Muito perfeita. Muitas saudades. A tristeza é pela falta, mas meu coração está descansado. Eu sei que ela tinha mesmo que ir e que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Você foi, Lulu, mas você não vai nunca. Minha descendência saberá de ti. A descendência da minha descendência saberá de ti. Quem se aproximar de mim, saberá de ti.

"Saberás que não te amo e que te amo
Posto que de dois modos é a vida
A palavra é uma asa do silêncio
O fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te
Para recomeçar o infinito
E para não deixar de amar-te nunca:
Por isso não te amo, todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
Em minhas mãos, a chave da fortuna
E um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
E por isso te amo quando te amo"

(Neruda, Pablo. Poema XLIV. In: Cem Sonetos de Amor)