quinta-feira, 8 de abril de 2010

Conheceu-se

A cada dia, uma lembrança nova surgia. Ela não imaginou que seu nome não era o que lhe haviam dito. Levantou, pisou os pés descalços no chão frio e uma voz que ela não sabia de onde avisava-a pra que se calçasse. "Pisar no chão com o corpo quente deixa a boca torta!", ouviu.
Uma sensação de familiaridade a tocou e ela sentou no colchão sem capa que tinham dado a ela. Andressa olhou em volta e não reconheceu o seu passado dentro daquele quarto recém rebocado. Pensou que poderia ser tudo um sonho. Olhar pra trás e ver que tudo não passou de um sonho é realmente um sonho, às vezes.
De repente, como que num passe de mágica, o coração voltou a fazer o que teimava há 7 anos. Bater descompassadamente enquanto um frio intenso subia pela sua espinha. Era o retorno do desespero. A garota deitou-se de novo e não pediu ajuda pra ninguém. Aquela seria a última vez na vida em que sentiria aquilo. Seria a última vez que esperava passar, sabendo que voltaria. Isso era a única coisa que ela ainda sabia das velhas reminiscências.
Andou até a cozinha, pegou uma faquinha de mesa, ainda suja de margarina. Lavou-a, mesmo entendendo que não havia sentido em se preocupar com a higiene naquele momento, mas seu instinto nunca deixou que fosse tão porquinha.
Com ódio e com uma profunda tristeza, decidiu apulanhar o seu coração, para que parasse à força. Olhou primeiro pra todos os lados e não havia ninguém daquela família que a acolhera, quando acordou numa avenida movimentada em noite de temporal, suja, com a testa sangrando e trêmula.
Apenas nesse momento, quando a decisão foi tomada, ela fechou os olhos e como sabia que o que a esperava era o descanso eterno, não tesou os músculos, mas relaxou-os inadvertidamente. Foi aí que sentiu que toda ela era agora serena e que o coração parava de bater agressivamente, e passava a bater como numa tarde dormida em uma rede na varanda da casa, com o céu azul e com um vento tranquilo.
A partir daí, abriu os olhos suavemente, tomou consciência de que a vida ainda era possível mesmo assim. Tentou ver onde teve início a sensação ruim e lembrou: quando estava andando à cavalo, na fazenda de um senhor de cabelos brancos. E lembrou que o senhor de cabelos brancos se chamava Augusto e era muito gentil. E lembrou que Augusto tinha um filho chamado Alberto que era muito valente. E lembrou que Alberto criava uma menina muito feliz chamada Manoela e logo se viu num espelho.
Já o coração retornava às batidas fortes, que não eram certeza de morte, mas sim uma profunda certeza de vida. Formigava o seu corpo esbelto dos pés à cabeça, sabendo que agora tinha mais uma razão pra viver e viu também, que mesmo que não tivesse descoberto que ainda tinha essa razão pra viver, ainda assim viveria, pois ao ser humano só cabe viver.
Forçou-se a encontrar a saída. A cozinha já estava cheia de luz, o sol já tinha raiado. Pegou o telefone e digitou aqueles oito números que vieram à cabeça. Uma voz feminina amargurada respondeu e ela já tinha ouvido aquela voz. "Peraí, é a mesma que me disse pra calçar os chinelos!"
Sim, era sua mãe que também se forçava a viver desde que Manoela sumiu no mundo pra nunca mais.

O nunca é sempre demais. O amor e o desejo de viver também. No final das contas, nós é que escolhemos qual das opções queremos pra nós. Se a vida, nos momentos maus, parece nada mais que um punhado de sofrimentos, ela ainda costuma ser maravilhosa e imprevisível. Ainda vale a pena tentar.

Tem amores



Também não deixa de ser uma falta do que fazer. Mas uma falta do que fazer muito digna!