terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O antídoto



Engraçado como são as coisas. O lugar que me deixa mais em paz em Teresina foi justamente o que aconteceu o assalto. Eu sei que essas coisas acontecem em qualquer lugar e que, enfim... A gente não tinha como prever, mesmo sabendo que a vida é perigosa. Não foi violento como poderia ser, mas ainda assim tem uma coisinha me incomodando bastante. Eu consegui dormir depois de um bom tempo recitando, na minha cabeça, as frases que eu não posso me esquecer jamais: “Não vou deixar meu medo me dominar” e “Não vou deixar meu ódio me dominar”. Talvez esses dois sejam os sentimentos mais danosos pra mim, desde sempre. O medo é o pior, eu acho. Os dois são extremamente ruins, porque me tiram coisas das quais eu não posso viver sem. O medo me paralisa, o ódio me cega. Ação e visão são imprescindíveis e eu não vou me abster delas.

Ontem, quando eu e meu irmão fomos dormir num apartamento emprestado de um amigo, já que não tínhamos como abrir o meu, o sono e o cansaço já tinham chegado, mas quando eu fechava os olhos, as únicas coisas que vinham na minha cabeça eram pensamentos absurdos. Era eu imaginando vários outros desfechos pro episódio, mas não um que coisas piores aconteciam comigo, mas com os ladrões. Eu imaginava que tinha algum tipo de conhecimento enorme em artes marciais ou então que tinha alguma arma que pudesse fazer deles picadinho. Sim, isso mesmo. Eu imaginava que fatiava os caras com uma espada, tão facilmente como se corta uma banana, como se carne, ossos, órgãos, não fossem nada. A cólera me fazia palpitar o coração como um louco e dizer coisas enquanto tentava apagar. Estava cega. A única coisa que eu queria era ter ferido os dois assaltantes. Eu já havia sentido isso antes, por outras pessoas, que me fizeram um mal muito maior e muito mais durável do que o minuto que durou o assalto. 

Parece que veio essa parte sombria de mim novamente. Não me orgulho disso, não gosto disso, não acho isso legal. E mesmo pra alguém como eu, que teve que enfrentar vários desafios pra enganar a própria cabeça e sair da merda, ainda continua difícil desviar os pensamentos pra algo menos nocivo pra mim mesma. Não vou deixar meu medo me dominar. É o quarto assalto que eu sofro aqui em Teresina. Os prejuízos aconteceram, mas tudo pode ser recuperado. Da primeira vez, assim que cheguei na cidade, não conseguiram roubar nada, mas eu quebrei o pé, porque me assustei e corri. Tinha um declive na calçada e eu caí com tudo no chão. Não consegui me levantar. Olhei pra cima, o assaltante estava praticamente em cima de mim, pronto pra fazer qualquer coisa de muito mal e, dessa vez, eu não tinha como correr. Quando eu já me preparava pra, no mínimo, uma bofetada, ele saiu correndo. Quando eu olhei pra minha frente, entendi o porquê: na segunda pensão onde morei, todos os rapazes saíram pra jantar fora, de uma vez. Eles me viram e ainda tentaram pegar o cara, mas ele já tinha montado na moto e saído. Levaram-me pra dentro da pensão e eu achei que aquilo tinha sido só uma torção leve, que se colocasse bastante gelo, logo desincharia. No outro dia, pela manhã, tive que ir ao médico. Não era perto, mas eu não tinha dinheiro algum e fui caminhando por um caminho que eu tampouco conhecia. Não me lembro de ter me sentido mais desgraçada da minha sorte do que nesse dia. Eu tinha plano de saúde e o médico mandou colocar o gesso. Voltei caminhando, com o gesso ainda molhado, pelo mesmo caminho que eu fiz, sem muleta, sem nada. Parando a cada cinco minutos, porque foi metade do caminho pulando de um pé só e a outra metade, arrastando o gesso no chão. Não tinha como ligar, não tinha a quem pedir ajuda. Eu não sei nem porque eu tô escrevendo esse dia triste aqui. Talvez seja pra me lembrar que as coisas já foram bem mais difíceis e eu realizei muitos dos meus sonhos mesmo assim. Ainda tenho tantos outros a realizar... O tempo está só começando e eu tenho todo o resto da minha vida pela frente, enfrentando o que tiver que enfrentar, saltando obstáculos, dando o melhor de mim.

Não vou deixar meu ódio me dominar. Esses pensamentos que ainda estão aqui me incomodando, vão sair. Cedo ou tarde, eles vão, porque não há espaço pra eles. Não vou deixar meu ódio me dominar, porque ele já tomou muito mais de mim do que deveria e, dessa vez, não vou dar guarida.

Outra coisa que eu senti bem forte foi falta dele. Eu não sei por que ele parou de falar comigo (ou se ele se pergunta a mesma coisa), mas senti uma vontade absurda de ter ele aqui, perto, comigo, pra me cuidar e me abraçar. Não tinha mais o seu número, mas queria ligar, ouvir a voz que ouvi poucas vezes, me confortar dizendo que ia ficar tudo bem. A “ida” dele da minha vida não está lancinante como eu achei que seria. Talvez eu tenha aprendido uma ou outra coisa com o decorrer do tempo e até as possibilidades que se abriram, não excluem a da não realização do que teríamos de pendente entre nós. Tudo isso frustra, entristece, mas tudo está bem. É preciso deixar voar quem quer voar, quem já voou. Afinal, se somos dois passarinhos que se conheceram em outras correntes de ar, essa é a nossa natureza. Queria que voássemos juntos, mas não há como deliberar quereres. A história do outro, ao outro pertence. Só quero não sentir essa falta tão forte assim, nem nesses momentos. Se o que já foi, não é mais, que eu sinta sim o amor que eu sinto, mas que fique só a parte da gratidão e carinho, “ojalá que el deseo se vaya trás de ti”. Assim, não há porque acabar o sentimento porque não haverá peso em levá-lo no meu coração.

“- Vamos - disse Monte-Cristo, arrancando com esforço um sorriso do peito opresso. - Vamos, basta de veneno, e agora que o meu coração está cheio dele, vamos procurar o antídoto.”

O Conde disse e é verdade: o coração está cheio de veneno, há que se procurar o antídoto. Vou revestir-me de paz.