quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

"Caindo a noite, me lanço no mundo..."

Momentos únicos de liberdade. Ah, eu nunca mais tinha tido.

A última vez que consegui sentir absolutamente livre de tudo e de todos, eu estava fazendo 25 anos. Era um dia que aqui na terrinha, a gente acha frio. Mas pra lá, pros cantos do Sul, era quente. Não faz tanto tempo assim, mas o muito de coisas que sobreveio depois disso, me fez sentir uma sincera falta dessa sensação.

Lá vou eu pro carnaval de Recife e Olinda. A primeira vez que eu pisei nesse carnaval, em 2014, "meu coração chega bateu", como diz a criança assustada. Foi amor à primeira vista. Todo o desgaste físico de se estar pulando freneticamente, subindo ladeiras e andando, durante o dia, e de se caminhar horrores, pular durante horas (parada), vendo show dos maiores nomes da música nordestina e brasileira... Ah. Foi demais pra mim. Eu pedia pra voltar. Minha alma pedia pra voltar.

Com todas as dificuldades próprias de minhas viagens, não foi fácil. E se eu não conseguisse a folga na quarta-feira de cinzas à tarde? E se não tivesse ônibus com horários viáveis? E se a grana tivesse pouca pra alugar uma casa? E se... E se... E tanta coisa, minha gente.

Apareceu jeito. Ônibus pra depois do trabalho. Chefe que liberou. Casa pra ficar. Pessoas pra estarem comigo nas 18 longas horas de viagem. O cansaço, ao final, era tanto, que eu me perguntei mesmo o quê que eu tava fazendo. Moça, o estilo de vida não tá te dando mais aquela vitalidade toda não, tá sabendo, né?

Passando por cima de tudo isso, fomos. Eu mais quatro amigos, todos queridos, todos amados, todos bons. Depois do banho e da viagem de uma hora de Jaboatão dos Guararapes pra Recife, pisei no Recife antigo, caminhei pro Marco Zero e senti de novo a vibração. Mas ainda não tinha sentido toda.

Antes de ir, levei as três mangueiras compradas pela monstruosa quantia de 12 reais, pra vender nas ladeiras, como da vez passada, uma por dia que eu ficaria por lá. Vendi tudo, mas meus amigos estavam cansados e, de verdade, eu sabia que a vibe deles não era a mesma de quem gosta mais de Olinda. Aquilo acabou me afetando. Ainda não tinha sentido tudo.

No outro dia, foram ao mar, sem mim. Eu tinha que encontrar os amigos que se hospedaram em Olinda. Armada com as armaduras de São Jorge, fui. Sabia que a multidão estaria ensandecida, que seria perigoso, que se não desse certo de nos encontrarmos no ponto marcado, eu estaria completamente entregue à minha própria sorte. Como sempre.

Tentei, com toda a minha força, tentei. Mas fui parar em um lugar muito longe do meu ponto de referência e a quem eu perguntava, a informação era diferente. Ia e voltava que nem uma barata tonta e a multidão não dava trégua. Até que depois de perguntar ao último vendedor de cerveja, e de ele muito me explicar, e eu de pouco entender, pensei: "É, cara. Não vai rolar. Vou curtir mesmo meu carnaval só". O vendedor me deu uma cerveja de graça, mesmo eu insistindo em pagar, só pra que a decisão começasse bem. Agradeci com um sorriso e com uma dose gratuita de mangueira. Eu senti minha sorte mudar. 

O bloco passou e eu fui junto. Já escurecia na bela Olinda e já não havia medo em mim. Nada, nenhuma réstia. Como carregava uma plaquinha que dizia: "Venha provar o sabor do Piauí / Dose: 2,00 R$", as pessoas me paravam o tempo todo. Queriam ler o que dizia a diaba. Uns achavam que o que custava dois reais era eu, o meu beijo. haha Não. Não me ofendia com a confusão. Tudo era propositalmente metafórico mesmo. As pessoas ficavam impressionadas. Elas queriam a cachaça. Elas queriam saber. Elas pediam pra tirar foto. Elas pediam pra que eu provasse antes. Elas faziam careta e diziam que era horrível, que descia rasgando. Elas diziam que era fraca, mas de primeira. Elas diziam: "bota logo duas, já tô fudido mesmo".

Subi o Alto da Igreja da Sé, pra ver o pôr-do-sol mais lindo. Já estava meio bêbada, de tanto provar as mini doses pedidas pelos "clientes". A sensação daquilo não foi normal. Avistei o único espaço vazio que havia na muretinha e caminhei até lá. Senti o vento no rosto. Um homem que estava do meu lado,  mas ainda um pouco distante, falou: "Lindo, né?". Eu disse que sim. Ele me instigou a sentar à beira daquele precipício de uns 3 a 4 metros e eu, morta de medo da altura, disse que não conseguiria. Coloquei uma perna. Ele disse que me ajudaria. Mas sozinha mesmo, sentei com as duas pernas pra fora. Ele começou a dizer que ele morria de medo do filme do Edward mãos de tesoura, mas que quando tinha dez anos, decidiu que ia ver repetidamente, até perder o medo. Hoje, é o seu filme favorito. E eu disse que também tinha estado com medo de estar ali "só", mas que estava sendo o meu dia favorito.

De repente, me vi. Eu estava só com a parte de cima do biquíni, com uma placa sugestiva, com uma garrafa de mangueira numa mão, um copo de dose em outra, a blusa amarrada no short, com várias cédulas de dois reais no bolso, levemente bêbada, acompanhada temporariamente de um desconhecido, vendo um pôr-do-sol mágico, sentada com os pés pra fora de um precipício. Gostei do que eu vi. O quadro ficou bonito, como é bonito um beijo coroado.

Passaram mais blocos. Passaram mais gentes. Gentes que me viam e riam e pulavam comigo. Gente do Piauí que começava a gritar. Gente de outras terras que dizia "mas era melhor cajuína, moça". Senti. Acompanhando o último ou penúltimo bloco, ao ouvir aquelas marchinhas de carnaval das antigas, eu senti. Estava maravilhosamente abençoada pelo frevo, pelo vento, pelo tempo. Os olhos enchiam constantemente de água e todo o cansaço ia embora quando as mãos se levantavam pra acompanhar o passo do tocador.

Senti-me cuidada pelos meus amigos. Senti-me cuidada até pelos estranhos, como na hora que eu dizia que estava perdida, e eles diziam, muito de boa, que eu poderia me juntar a eles. Senti que eu posso esperar ainda as muitas surpresas da Vida. Não preciso me preocupar, Ela se encarrega de mim. Mais uma vez, com todos os aperreios próprios a que se emblematiza a minha existência nesta Terra, eu posso confiar de que eu ficarei bem.

O muito de vida que me correu não sairão em todas as palavras que poderiam. Não. Deixa elas aqui. Eu cuidarei bem de todas elas.