quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Os meninos

Está terrível, o mundo. Foi, continua, será. Em dias de meninos que morrem (o de Teresina que tinha só 19 anos e o da Síria, um bebêzinho afogado no mar), a gente aglutina as dores alheias e graças ao resto de empatia que ainda há no mundo, se dói também.

Hoje, como nessas horas, eu pensei sobre deus. Sim, no minúsculo. A cada dia mais eu deixo de ver sentido na existência de um ser divino, que olha por nós e para nós, vigia nossos passos e nos acalenta na hora de dormir. Durante um tempo, isso realmente me tirou o sono. Não foi um processo fácil deixar de acreditar em tudo o que eu já acreditei durante essa minha curta vida. Tanto é que, apesar de já ter isso claro pra mim mesma há muito tempo, ainda não tinha tido coragem de escrever sobre isso de forma pública. E quando o faço, ainda faço num blog completamente sem audiência, que sub-existe pela minha tenaz necessidade de conforto em palavras.

Minha família ficaria abalada. Ficará, em algum momento. Se não exponho publicamente ao seu escrutínio, é porque sei o quanto é pesado pra eles me ver nessa nova fase. Em todas as minhas (drásticas) mudanças, eles foram remoldando a maneira que me viam enquanto pessoa. Hoje, com uma revelação do tipo, a mudança da visão sobre mim seria extremamente negativa. Eu conheço os meus. Mas sei que a minha própria personalidade não manterá isso em segredo por muito tempo. 

Talvez contar aqui, calma e passivamente, seja alguma das tentativas de me revelar.

Voltando aos meninos: as notícias abalam a qualquer um que se importe, eu sei. Por um lado, penso que preciso me manter distante do terror que era tão distante e minimizado pelas distâncias ou mesmo por um senso de não-pertencimento do mundo. Eu era daquela cidade pequena. "As coisas não chegavam pra mim, em Bacabal". Foi brincando que eu disse pros amigos, mas virou bordão e é verdade. Não chegavam. E eu me sentia protegida e segura, ao mesmo tempo que só e abandonada, distante do bem e do mal do mundo. Chacinas não ocorriam, os afogamentos eram porque foram banhar no Mearim depois de ingerir álcool e os jovens não morriam antes de seus pais. Ontem, o bebêzinho morto na praia me fez chorar. Encheu os meus olhos e os de milhões de pessoas pelo mundo todo. E antes dele, o rapaz de 19 anos que cuidava sozinho de 8 irmãos (entre eles, bebêzinhos também), que teve a mãe assassinada pelo companheiro no ano passado, simplesmente descobre que tem leucemia. Da esperança de ontem, a morte de hoje. Porra! Porra mesmo!

Lembro bem do que me diziam naquela igreja lotada nas noites de domingo: "Nada ocorre sem a permissão de Deus. Nem uma folha da árvore cai, sem que ele permita". E aí eu me pergunto: o quê caralhos esse rapaz fez pra ver sua vida se esvair, depois de tanto sofrimento? Que pecado mortal tinha aquele bebê e o seu irmãozinho, pra merecerem que seus corpinhos sem vida fossem arrastados pelas ondas até à beira da praia?

Uma vez na calçada, uma tia falava pra Lulu e pra mim, o caso de uma mulher que, logo criança, pegou uma doença venérea que a fez amargar muito durante a vida. E ela pegou essa doença, porque, criança que era, só andava nua no interior do Maranhão. Algum idiota se masturbou numa cadeira e deixou o sêmen lá. Ela era criança. Ela sentou na cadeira. Pegou uma doença venérea. Uma criança. Sem tratamento adequado, sem saberem o que era, foi só piorando. Ela cresceu com sequelas e falou pra alguém, que falou pra minha tia, que nos falou: "Parece que eu nasci só pra sofrer".

Eu era criança também, quando escutei essa história. Ficou, como milhares de outras, rondando a minha cabeça. Não sentava mais em lugar nenhum se não visse que estava minimamente limpo. Fiquei com medo, até que alguém me disse que eu estaria protegida, porque confiava em Deus. Algo me pareceu injusto nessa história: mas a menina também não confiava?

Percebo em mim uma desesperança crescente, que tem toda a razão de ser, alimentada diariamente com os espantos de quem já deveria estar mais que acostumada com sangue. Apesar de entendê-la e justificá-la, não a queria em mim.

A maldade está no homem, a bondade também. Somos a desgraça e a salvação. A justiça além de nós não existe e só o que nos resta é não deixar que a mediocridade se alastre nas nossas tentativas únicas de existência. Que em paz descansem em suas camas, protegidos pelo amor e pela paz, os meninos que não foram tragados pela doença, pela guerra, pelo terror e pela morte. E que - Deus! - não sejam!