quarta-feira, 29 de julho de 2015

Antes de Morfeu chegar, o que chega

"Minha querida, acorde que meu braço não tem mais uma gota de sangue!"

Mais uma vez, dormi muito mal. Não que isso seja uma novidade. Já há muito tempo que eu não sei mais do que se trata esse fenômeno que acontece geralmente à noite com as pessoas, chamado pelos cientistas de "dormir". Ou demoro um tempo ridículo ou durmo e vou acordando sucessivas vezes durante a noite. Geralmente, quando a primeira coisa acontece, aí é tentar ficar de boa, já que já já que aparece uma lapada de pensamentos e eu faço a coisa que eu fui feita pra fazer: pensar até rachar meu cérebro. Eu dava certinho sendo aqueles gregos que não faziam porra nenhuma da vida, não davam um prego numa barra de sabão pra passar o dia todinho pensando nas grandes questões filosóficas. Porra, Platão, apaga esse sol que eu quero continuar dormindo na caverna, caralho!

A parte boa, talvez, é que sai muito texto. Crônicas, contos, uma poesia aqui e ali e vá lá, até canções. E desobedecendo todos os meus elétrons, nêutrons e prótons que gritam pra que eu levante e vá anotar tudo o que o overthinking traz, tento me concentrar no sono, até que os textos param de se completar sozinhos, até que eu não consiga mais distinguir ideias, até que eu mergulhe sorrateiramente no mundo de Morfeu.

A sorte, então, é quando no outro dia, ainda consigo me lembrar de parte daquele mundo que eu pensei. O tema dessa noite girou em torno da minha felicidade e de como as pessoas ao meu redor me percebem e se apercebem dela. Começou isso com uma lembrança: o dia em que o pastor da minha ex-igreja foi falar um assunto com minha mãe, na minha casa, e a sua esposa foi junto. Eu já tinha saído da religião já fazia tempo e como um pacto não falado, no meio daquele turbilhão de culpa e pressão externa, não saia de jeito nenhum pra festas ou qualquer outro evento social. Por isso mesmo, muita gente nem imaginava que eu tivesse deixado de ser evangélica. Bom, os pastores sabiam. E nesse dia, a pastora falou algo que ficou bem marcado pra mim. Eis o diálogo mais ou menos fidedigno:

" - Irmã, tudo bem contigo? (Ela sabia do monte de merda que eu tinha passado um tempinho antes).
- Tá sim e com a senhora?
- Ótima. Você tá feliz, irmã?
- Estou sim, graças a Deus!
- Não, irmã. Não está! Só é feliz quem tem Jesus e a irmã não tem mais."

Obviamente que aquela conversa me constrangeu, bem ali, no raro sossego do meu lar, com alguém que estava fora dele. Não teria atrevimento o suficiente pra responder à pastora como eu deveria e escapei da situação com sorrisos amarelos, mesmo vendo o sorriso verdadeiro dela. Não era um disparate o que me dizia, na sua percepção. Não interessava que eu tivesse respondido com toda a sinceridade da minha alma que estava feliz. As coisas tinham começado a se estabilizar, eu tinha voltado a fazer planos a médio e longo prazo e apesar de muitas questões, sentia que melhorava a cada dia e que rumava firme à vida que eu queria e estava pronta pra viver, como de fato foi. Mas não, eu não sabia de nada. Jovem e tola. "Como alguém pode ser feliz se não for desse jeito?"

Hoje, no entanto, sei que felicidade é algo que incomoda ou que, no mínimo, traz alguns questionamentos. Não foi pouco que eu ouvi perguntas sinceras, de pessoas que não estavam com inveja, mas realmente curiosas do porquê de eu ser feliz. "Menina, porque tu é assim, hein?". Não me incomodam, a não ser que eu sinta inveja, recalque, qualquer coisa do tipo no questionamento. Mas eu sempre fico pensativa depois de uma questão dessa. Sempre há um tom de que aquela felicidade, alegria ou seja lá o que se chame, é uma coisa inerente. Eu sou assim, talvez tenha nascido com isso e depois de alguns percalços no caminho, desfruto. Olha, não é bem assim.

Pra eu dizer hoje que sou feliz, sem aquela dúvida pairando no ar, sem questionar pra mim mesma a legitimidade disso, demorou, amizade. Forcei a barra pra caramba e doeu muito, muito mesmo. Foi uma coisa conquistada, uma decisão diária. Lembro bem das vezes que eu tive que dizer pra mim mesma: "Você vai fazer isso nem que tenham que te apagar com sossega-leão depois". E, olha só, apagaram mesmo. Lembro das noites que chorei até dormir (sdds dormir), sentindo algo estarrecedor e lancinante, sofrendo calada, sem chamar ninguém. Era uma das técnicas pra não piorar, pois eu sabia que se chamasse por socorro, era caixão e vela preta, morreu Maria-preá sem choro, era tchau e bença. Chamar por alguém era sinônimo de parar de lutar, era deixar aquilo tomar conta e aí sim era a merda muita, por que eu saía da realidade e parava, mesmo que momentaneamente, de ter o controle sobre minhas ações, pensamentos e percepção do mundo. Era por isso que eu tinha que resistir.

Não sei, quando você passa por um tipo de sofrimento tão intenso quanto esse, as mínimas coisas são comemoradas. Imagina aí como eu fiquei no dia que eu consegui contornar pela primeira vez uma crise? Ou o dia que eu fui pra escola depois de 3 meses sem pisar lá? A normalidade se tornou um prêmio pra mim. Enquanto todo mundo voltava pra casa fatigado, resmungando, eu olhava pras pessoas e ria comigo mesma, satisfeita por não estar sentindo nada.

É, realmente, tudo se perspectivou. Tudo o que me desse o mínimo de prazer era supervalorizado. Isso foi até um problema durante um período, por que eu já não via sentido em "perder meu tempo" em coisas como estudar, por exemplo. Quase reprovo no último ano do ensino médio, por que chutei mesmo o pau da barraca. O que era ficar horas estudando naquele ritmo frenético quando eu podia me ocupar com atividades mais agradáveis? Eu lembro de sempre cabular na cara-dura os horários antes e depois do intervalo, com a complacência de professores e do diretor, que até vinha bater um papo às vezes. Todos se interessavam pelo que eu tinha dizer e eu, compreensivelmente, me sentia como uma heroína que tinha derrotado o chefão da última fase.

Mas, para o bem da verdade, tudo mudou mesmo quando eu internalizei de que eu era a responsável por mim. Exorcizar meus demônios, ficar em paz com meu passado, olhar pro futuro e seguir adiante, não importasse o que viesse. Não é fácil e continua não sendo. Ser feliz, pra mim, não veio de graça. Deu trabalho, mas o esforço agora é no automático e a lida compensa bastante. Hoje estou mais calma, mais resiliente aos percalços (sempre muitos!) mas tem horas que eu me sinto absolutamente cansada. É a hora de lembrar: vale à pena me cansar de lutar por mim, já que eu sou a única pessoa que pode fazer isso. Não canso, porém, de repetir: minha felicidade é racional! Não me desumaniza, não me torna melhor que ninguém, não me idiotiza nem robotiza. Não sou a Mary Poppins nem a Pollyanna. E é por isso mesmo que essa decisão precisa ser lembrada constantemente. Keep swimming. :)

PS: Senti incômodos depois que publiquei esse texto. Principalmente por ter rasgado no Facebook, coisa que não costumo fazer. Quem é leitor do blog (!) ou me conhece um pouco mais que superficialmente, pode entender melhor o que eu queria falar. A questão toda do texto era que, pelo menos na minha experiência, a felicidade é algo a ser trabalhado diariamente de maneira racional. Não é você simplesmente pesar os fatos que acontecem na vida e decidir que, por eles, você pode ser feliz. Se for por aí - se eu fosse por aí - teria muito mais motivos pra estar triste do que alegre, pra falar a verdade. Talvez seja preciso que você tenha que se enganar, rasgar a razão do desespero e ressignificar as coisas pra poder ter um pouco de paz.

Também me incomodei por não ter citado em momento algum que essa conquista de hoje não foi um esforço puramente pessoal. Depois que fui acometida pela síndrome do pânico, o processo de cura foi longo, custoso e principalmente doloroso. Mas eu não estava sozinha. Felizmente, a minha família, amigos e dois profissionais excelentes vieram em meu socorro. Aos trancos e barrancos, investimos dinheiro, tempo e paciência e pudemos ver os frutos da minha melhora. Obviamente que nem o melhor psiquiatra ou psicólogo do mundo poderia fazer um bom trabalho se, em primeiro lugar, eu não estivesse mais do que disposta a levar um tratamento à sério. Estava. E essa foi a minha parte da decisão de parar de sofrer daquela forma. Sei que falar disso é um assunto complicado. Tenho absoluta empatia por quem sofre de qualquer sofrimento psíquico e sei que a minha experiência não é universal. Muita gente sofre de mais de um transtorno e as dificuldades são enormes de acesso a um tratamento adequado. Dinheiro, apoio emocional, distâncias geográficas (eu, que morava no interior, tinha que me deslocar toda semana pra capital, longe, pra fazer as sessões) e profissionais verdadeiramente competentes (me meti em umas duas enrascadas antes de achar). Isso fora todo o estigma posto em cima de quem sofre, mesmo que esses tipos de doenças sejam cada vez mais comuns em pessoas cada vez mais jovens, como no meu caso. Aparecem pessoas muito bem intencionadas, mas elas estão submersas no senso comum. De repente, a tua doença é culpa tua. "Tenha força de vontade!", "Se você tivesse um pouco mais de fé...", dentre outras bobagens que nos dizem. Pra mim, a religião em que eu estava passou a me fazer mal. Meu transtorno foi atribuído a alguma espécie de possessão e eu fui submetida a coisas que é melhor pra minha sanidade nem lembrar, por pessoas - friso! - muito bem intencionadas (ou não, né? Quero crer que sim.)

Agora com algumas questões pontuadas, volto a repetir: minha felicidade foi conquista. Sentir-me bem com a minha existência hoje e já há algum tempo deu trabalho, mas valeu à pena. Não serei leviana com a minha história de não me sentir orgulhosa disso. Se pra outras pessoas, essa satisfação sempre foi uma coisa que rolou, ótimo. Ótimo mesmo. Tenho arrepios em pensar numa sociedade onde todos fôssemos doentes e incapazes de experienciar isso desde cedo.