terça-feira, 26 de novembro de 2013

O raio

Alguém já sentiu o raio?

Sim, ainda empolgada com a leitura d'O Chefão, que há muito deveria já ter figurado nos livros lidos. Mas, fazer o quê... A gente não pode ler tudo o que quer. A vida sempre vai deixar algumas lacunas das coisas maravilhosas que a gente poderia ter feito e toda aquela coisa que todo mundo tá cansado de saber, que o mundo não dá conta da gente ou a gente não dá conta do mundo.
Mas o caso é que eu li sobre o tal do raio. Algo que o sicilianos antigos diziam da sensação (ou ocasião) única na vida, de avistar um ser humano e seu sangue revolver-se dentro do seu corpo e depois fugir e depois voltar novamente, carregando litros de um desejo incontrolável por quem se teve o raio. Uma paixão tão sôfrega e instantânea que não há cura conhecida a não ser a posse do ser dos desejos. Você fica paralisado, sem sentir o próprio corpo, um tanto quanto catatônico e sem o raciocínio inteiro.

Eu lembro de um raio.

Eu devia ter, no máximo, dez anos e até hoje eu não sei como isso aconteceu. E ainda mais, por que isso aconteceu. Sempre estudei no mesmo colégio a vida toda, durante o ensino fundamental. É um colégio religioso, protestante. Na época, figurava entre os melhores da minha cidade, o que queria sim dizer grande coisa. Os alunos eram tidos como muito inteligentes e ávidos e, com efeito, a turma com o qual passei mais de onze anos, galgou passos largos nessa vida. Não podemos dizer que não tivemos uma boa base. Mas não era sobre isso que eu queria falar.

Meu irmão e eu sempre íamos com o meu pai à escola. Não de carro, coisa que nunca possuímos, mas de bicicleta mesmo. Sempre foi o único meio de transportes do qual dispomos e eu, particularmente, nunca achei isso ruim. Na nossa cidade, mais que isso, só mesmo pelo conforto. Qualquer distância pode ser percorrida por uma bicicleta facilmente. Pois bem, houve um período em que as vacas começaram a engordar e as chuvas a cair, estas últimas não metaforicamente. Morávamos em ruas que sempre alagavam e não foi só uma vez que eu cheguei na escola toda molhada e tive que ligar pra casa pedindo pra mandarem roupa, coisa que me causava bastante constrangimento por n motivos. Um conhecido nosso fazia transporte escolar e minha mãe o contratou pra nos levar à escola, pelo menos durante algum tempo. Nós sempre chegávamos atrasados, porque eram muitas crianças e, não raro, a gente se espremia em mais de oito corpinhos magrelos dentro de um gol prata da primeira geração, todo acabado. Meu Deus, como fui feliz naquele carro...

Um dia, ao chegar na escola, saímos e fomos buscar nossas mochilas de carrinho no porta-malas. Quando eu avistei um homem saindo de um terreno que servia como estacionamento pra uma empresa da minha cidade, em frente ao colégio. O homem me viu e parou a bicicleta dele. Eu o vi, parei, petrifiquei e não conseguia mais sair do lugar. Eu lembro MUITO bem de como o homem era. Ele tinha um cabelo liso, oval, os olhos azuis bem claros, usava óculos. Era de um branco já marcado pelo sol. Se vestia com uma camiseta amarela e uma calça com um tecido que era parecido com o jeans, mas não era jeans. Os óculos dele eram enormes, como muito se vê por aí hoje em dia. Meus olhos se enchem de água ao me lembrar desse episódio, porque foi marcante demais. Eu deixei cair a minha mochila das minhas mãos, enquanto todo mundo saía de dentro do carro. Nós não conseguimos nos mover. Do outro lado da rua, eu via que os olhos deles estavam cravados nos meus, talvez sem entender o que estava acontecendo. Meu coração acelerou como se precisasse daquela violência pra continuar a viver e eu senti uma onda de arrepios percorrer toda a extensão do meu pequeno corpo, da cabeça aos pés. Uma sacudida de um colega da mesma turma me tirou do meu torpor. Tudo isso durou uns cinco minutos e do meio pro fim, comecei a lacrimejar por uma emoção que eu ainda não tinha sentido antes. Não era amor, não era paixão. Não. Era uma conexão inimaginável com um ser humano totalmente desconhecido pra mim. Eu peguei minha mochila do chão e caminhei pra entrada, olhando pra trás pra ver se continuava a ver aquele homem tão misterioso que nem falou comigo, mas que me causou essa impressão tão forte.

Lembro bem de, muito tempo depois, tê-lo visto passando na rua perto da praça da primeira casa que morei, também de bicicleta. A imagem dele ficara gravada em mim e naquele momento, como não poderia deixar de ser, estava bem mais nítida que agora. Eu ia à pé pra casa da minha avó, porque aquele era o caminho. O homem passou por mim e, creio fortemente, me reconheceu. Foi mais adiante e eu o acompanhava, com os olhos quase pra furá-lo. Eu sentia no meu corpo inteiro as batidas inclementes do coração. E pra minha total exasperação, o homem dá a meia-volta na sua bicicleta, olha pra mim, para, pensa e segue o seu caminho. Obviamente, a melhor saída. Eu era uma criança, afinal de contas. E obviamente, nada aconteceria dali, nada de carnal, nada de concreto. No entanto, sempre tive propensões pra amizades com pessoas mais velhas. Talvez isso sim pudesse acontecer. Mas o mais provável era que eu saísse correndo por não conseguir disfarçar a ansiedade no momento. Não sei. Só sei que esse foi um evento que eu jamais consegui qualquer explicação. Não fui atrás de explicações cósmicas, religiosas, nada. Foi um raio sem qualquer deliberação clara que me atingiu, apenas. Com todo o direito que um raio tem, deixou as marcas na memória.