Em todas as vezes em que esteve
certo de algo, procurou as histórias da vida do pai e tentou alguma
aproximação. Mas isso foi bem depois. Sabia que o velho tinha seus dias arquivados
em páginas cuidadosamente escritas com a ponta da caneta bic, sempre de tinta
azul ou preta. Gostava de escrever afundando as letras, pesando a mão. Foi como
aprendeu a escrever, afinal de contas: na marra, depois de adulto e com a
mulher ainda grávida do primeiro filho. Foi quando decidiu que iria pagar aulas
com quem quer que se dispusesse em lhe dizer que símbolos eram aqueles que via
nas conduções e não entendia. Não queria a humilhação de não poder ensinar pros
filhos o que eles quereriam saber, quando viessem da escola todos os dias com
as tarefinhas e com mais perguntas do que respostas, num processo sempre
cumulativo de questionamentos embaraçosos.
Não era um pai amoroso, ou pelo menos, não
daqueles que levavam as crianças pra passear ou colocava o mais velho no colo
pra contar seus tempos de menino. Não foi assim como lhe ensinaram que um homem
devia ser. Apesar de ter chorado escondido no nascimento dos dois filhos, tudo
o que mostrou na frente dos outros, foi o beijo na testa suada da mulher
exaurida e os risos formais que dava a cada par de amigos que entrava pra ver a
criança gorda e sempre chorosa. A vida tinha sido muito difícil e casar foi
mais uma urgência reparadora do que um planejamento pra vida. Ainda era muito
cedo, o tempo era pouco e o dinheiro também. Um choro, porém, ficou engatado na
garganta. Quando foi no cartório e precisou dizer o nome da primeira criança, um
nome de astro americano, e o moço que fazia essas coisas perguntou como se
soletrava e ele não sabia como responder. Sabia que haveria de ter algum “a”,
mas como se parecia um “a” e onde era que ele se encaixava no meio daqueles
fonemas que trazia consigo? Derrotado, deu o nome de Francisco ao primeiro
pequeno. Era comum, o moço do cartório não precisaria perguntar como era que se
escrevia. Ainda não tinha se sentido humilhado dessa forma. Durante toda a
gravidez entrou em combate com a mulher pra lhe dar esse nome em particular,
pra no final, uma simples questão prática e básica lhe impedir o intento. O
choro na garganta se transformou numa raiva cega que não deixou que ele pegasse
a condução pra casa. Foi à pé, pensando que as coisas não deveriam ser assim
pra ele. Pra ninguém.
***
Francisco tinha já seus quase 30
anos quando achou um baú mal entalhado, todo empoeirado, em um quartinho da
casa antiga em que seus pais ainda insistiam em morar, apesar da distância para
o bairro em que os dois filhos moravam com suas respectivas famílias. A porta
do banheiro de uso comum da casa estava emperrada e era preciso alguma
ferramenta. Logo também foi detectado um defeito no trinco. Foi a um quartinho
velho, onde ninguém mais entrava há muitos anos. Era o lugar que o pai queria
que, um dia, fosse um escritório, onde podia sentar todas as noites e realizar
tarefas sem ser incomodado por qualquer barulho que fosse. O pai sempre foi um
homem difícil, com um aspecto muito duro. Por mais que o moço nunca tenha
colocado em cheque o fato de ter sido amado por seu pai, o conhecia o
suficiente pra saber o que poderia esperar dele ou não. Poderia esperar uma mão
na cabeça, sem mais do que uma risada rápida do canto da boca e um quase grunhido
que soava de aprovação. Fora isso, só lembrava do dia da ocasião especial em
que o pai chegava do trabalho e ele ainda estava na rua jogando bola. Antes de
ver que o pai se aproximava e sentir um frio gelar-lhe os ossos, marcou um gol.
O pai foi ao encontro do menino petrificado que o olhava atentamente, pousou a
mão em sua cabeça sem dizer palavra, mas o sorriso correu-lhe por toda a face,
fruto de um orgulho muito sincero. No restante das ocasiões que Francisco se
lembrava, parecia um gesto automático de alguém incapaz de sentimentos mais
complexos. Porém, não se lembrava de sentir-se mais feliz do que quando isso
acontecia. Ia correndo contar pra mãe, que enchia os olhos d’água, porque ela
sim, colocava várias e várias vezes em cheque o amor do pai pelos filhos. Ela tinha
o cuidado de fazê-lo apenas no escuro da madrugada, enquanto o marido dormia,
no seguro do seu coração.
O baú estava com uma tranca muito
velha, não foi difícil achar uma marreta no meio daquele quarto entocado e
quebrá-lo em uma só pancada. Viu um mundo de cadernos mais ou menos finos,
organizados dentro do baú médio, com um plástico grosso que os envolucrava do
mundo exterior. Pegou o que estava mais em cima e abriu do começo: sem dúvidas,
era um diário. E as pernas tremeram quando viu que era do pai. Poderia
reconhecer aquela escrita forte e aquela letra mal desenhada a um milhão de quilômetros
de distância. Sentiu uma vertigem, quando sentiu que as aproximações com o pai
nunca tinham dado certo e que aquela era uma violação que nunca seria perdoada.
Com o coração disparado, decidiu sentar-se e ler cada coisinha que tinha ali.
Os olhos foram a um dia de 18
anos atrás. Ele tinha 11 anos. O pai relatava que tinha saído do emprego e
voltado pra casa e que estava muito cansado. Tinha sido um dia quente e ele
tinha ficado muito feliz ao chegar em casa e ver que os filhos já estavam
banhados, com uma roupa limpa, com os cabelos penteados e cheirosos, sentados
na porta de casa com a mãe, esperando só por ele. Águas encheram os olhos de
Francisco, porque em todos os dias do ritual, o pai nunca havia dito sequer uma
palavra de aprovação ao esforço que a sua mãe fazia pra que os meninos saíssem
da rua, com os pés pretos de sujos e ofegantes das corridas, pra que tomassem
banho e se sentassem na porta, na cadeirinha que cada um tinha pra que
esperassem o pai chegar. O relato continuou sobre uma chateação com um colega
de trabalho e de como a mulher que passou na rua chamou-lhe atenção pelo rabo grande, o que arrancou risadas
sufocadas do filho. Era um homem totalmente diferente que se apresentava ali.
***
O velho, nessa época, tinha
diabetes. Como era muito teimoso, continuava a comer de tudo sem qualquer
restrição. Um dia, uma faca escorregou de sua mão enquanto tentava utilizá-la
como chave de fenda, pra abrir um radinho de pilha que parou de funcionar com
as pilhas ainda novinhas. A faca caiu no seu pé. Sangrou. Doeu. Sangrou mais e
não cicatrizou. Quatro dias depois, quando não importava mais qualquer brio,
foi ao hospital, sinceramente arrependido das teimosias. Não porque tinha medo
de morrer, mas tinha medo de não morrer e ficar ali, dependente de sua mulher,
de seus filhos, de uma enfermeira, de quem quer que fosse. O que mais lhe
aterrorizava era a possibilidade infame de morrer como um cachorro sem dono na
porra de um hospital. Ficou mesmo alguns dias em observação na mesma porra de hospital,
a ferida só fazia aumentar e sabia do risco de perder o pé. Foi pra casa, não
cuidou e voltou pra cirurgia de retirada de membro.
A família toda ficou chocada, mas
ninguém mais que o próprio velho. Tinha cuidado de si o tempo que precisou,
desde quando tinha seus oito anos. Sempre cuidou também de quem precisou de si,
desde que pôde. Xingou a médica, xingou os enfermeiros, xingou Deus, xingou o diabo,
xingou a quem e o quê pôde. Não adiantou. O pé foi embora e uma lágrima desceu
pelo olho esquerdo quando acordou da anestesia e percebeu que o mundo jamais
seria como antes. Amargurado, parou o que tinha feito o hábito de sua vida por
mais de 20 anos: escrever as palavras que necessitava pra todas as noites.
Deitado na maca do hospital, com
a mulher, os filhos e netos, ponderou sobre o destino de sua alma, se tivesse
morrido na mesa de cirurgia. Pediu perdão a Deus pelas palavras, não falou nada
ao diabo e soube que teria que permanecer no purgatório por algum tempo, antes
que pudesse caminhar (que ironia!) aos terrenos sagrados. O espírito estava
abatido, mas, mais uma vez, não podia deixar transparecer.
Foi quando o filho mais velho
passou a visitar todos os dias a casa dos pais. Não importava se passava menos
tempo com a mulher e com a filha, se tinha que pegar um engarrafamento sem fim
pra chegar em casa só pra dormir, se tinha emagrecido por comer pouco de
preocupação com o pai. As páginas que lia clandestinamente, no silêncio daquele
quarto onde mal se podia respirar, lhe absorviam os miolos do cérebro, porque
já não podia parar mais.
***
“18 de maio de 1988, 22:00
Minha vida não tá fácil. Os meninos estão ficando maiores e tão precizando
de muitas coisas. Toda hora a mulher me cobra isso cobra aquilo. Hoje foram
umas chuteiras que eu não sei como vou fazer pra comprar. Francisco vai disputar
um campeonato e eu vou deixar porque todo homem tem que jogar bola na vida. Eu não
tive essa oportunidade não vo negar aos meus filhos. Isabel me disse que o
aumento ta fora de jogada aquela rapariga. Não trocava minha mulher por duas
dela apesar dela ser bem gostosa e a Iraci já ta capengando um pouco. O trabalho
foi angostiante por causa disso e eu fiquei muito nervoso quando o seu João chegou
dizendo que tava circulando notícia que alguns funcionário iam ser mandado
embora. Se já tá uma merda do jeito que tá, pagando só as contas mesmo e mal
imagina meu Deus deixar de ganhar esse. Já to velho e não aguento muito outro
trabalho pesado. Já pensou? Eu ter que capinar terreno pra bota comida dentro
de casa. Meu Deus e santa teresinha não deixai eu perder meu emprego pelo amor
de Deus.”
Francisco parou várias vezes pra
enxugar os olhos, porque em algum momento do breve relato deste dia em
particular, os olhos se embaçaram demais pra que ele pudesse enxergar. Parou,
respirou e sentiu suas têmporas pressionadas, em uma dor de cabeça que lhe fez
curvar. Depois de casado e com uma filha, nunca passara por qualquer tipo de
aflição financeira, porque já era muito bem empregado mesmo antes do casamento
e das demais responsabilidades. Pensou em sua pequena. Nos sonhos dela, nos
seus sonhos próprios e nos seus sonhos pra ela. Pensou em seu pai, pensou nos
seus antigos sonhos e de como achava que o seu pai nunca aprovaria seus
devaneios, como ser jogador de futebol profissional. Lembrou da época em que o
pai acabou realmente perdendo o emprego e como era triste vê-lo circulando anúncios
em jornais e saindo de casa cedo, procurando algum trabalho. Antes de saber,
quando lhe foi negado o pedido das chuteiras novas e a própria ida ao
campeonato, gritou pra mãe, que lhe deu a notícia com a mão no coração, e foi
ao quarto que dividia com o irmão, sentou na sua cama e chorou, como alguém que
sentiu um sonho perto do nascimento, abortado tragicamente por algum acidente
cruel. Mais tarde, quando soube do ocorrido com o pai, foi muito lento em
relacionar um episódio ao outro, e não deu nenhum efeito de causa e
consequência ao fato, o que lhe rendeu ainda alguns meses do seu ódio cego e
surdo, mas não destituído do paladar ou do tato, pois quando se lembrava, um
gosto de bile vinha à boca – embora não soubesse identificar – e a mão se
guiava a algum objeto próximo, que tinha ganas de arremessar à parede, mas não
o fazia porque sabia que levaria uma surra muito da caprichada.
No fundo do baú, meteu a mão e
achou o primeiro caderno, dentro de uma outra sacola plástica. Como percebeu,
seu pai sempre numerava todos quando terminava um e passava para o seguinte.
Viu a letra pesada mais uma vez, que ainda não era a cursiva, mas uma letra de
fôrma, muito mais pesada, quase inutilizando as costas da folha, de quando o
pai achou um pequeno curso no centro da cidade, que ensinava adultos a ler.
‘FRANCISCO
MEU FILHO NACEU
IRACI TEVE FRANCISCO
BOTEI O NOME DE FRANCISCO’
Assim, sem assinaturas, sem
datas, sem maiores detalhes. Saiu do quarto agoniado, pensando ter passado
tempo demais ali dentro, mesmo achando que os pais não desconfiavam de nada. A
mãe só se ocupava da novela e de atender o marido em alguma necessidade. O pai
estava na cadeira de rodas e também ficava na frente da TV, mesmo que não
gostasse, porque não teria que gritar pra que lhe buscassem qualquer coisa ou
quando quisesse ir ao banheiro. Por fim, acabou gostando dos enredos das
novelas e acompanhava de bom grado as novelas e o jornal. Não viu ou ouviu os
passos do filho mais velho. Sentiu apenas um abraço por trás, onde um braço se
enfiava por baixo das axilas e o outro lhe segurava a face. Arregalou os olhos e
sentindo alguma dor da cirurgia, se virou como pôde e viu o filho, tomado pela
inspiração divina, com os olhos arregalados, vermelhos e fixos aos seus.
Assombrado, pensou que o homem tinha perdido o juízo e, se assim o fosse, ele
pouco poderia fazer, sentado naquela cadeira. Não demorou, quedou-se
paralisado, pois a súbita inspiração do Espírito Santo que viu nos olhos do
filho, reconheceu-a em si. Tomado de um terror magnífico, compreendeu que as
ausências demoradas de seu filho no fundo da casa e as suas visitas diárias
tinham nada a ver com a sua cirurgia ou pra ajudar a mãe. Compreendeu que
estava sendo lido, que o lugar onde deixou pedaços de si que nunca havia
exposto a ninguém, estava sendo escrutinado pelo próprio filho, sem
autorização. Sentiu-se desconcertado, envergonhado, porque se lembrava de
confissões feitas, como as poucas traições à mulher e uns sentimentos
desencontrados, que foi colhendo ao acaso, com os percalços da vida, e
guardando para aquelas páginas diárias, que lhe serviam de consolo e compreensão
paciente e tenaz. A mãe observava àquilo, perturbada, sem a menor pista do que
poderia estar acontecendo. Perdeu o beijo roubado que o vilão da novela deu na
mocinha, que fez com ela se apaixonasse perdidamente e para sempre.
Francisco, por sua vez, percebeu
a inquietação do pai e viu-se descoberto do crime. Da incursão não autorizada à
intimidade da pessoa que julgou ter a menor complexidade humana que já conheceu
em toda a sua vida. Pelo convívio diário até o casamento, achou que conhecia
aquela homem que chamava de pai, com a palma da sua mão. Viu que estava
enganado e, desde então, com a mulher e a filha dormindo, deitado na cama,
observando o teto, tinha vontade de ligar pro pai e perguntar: “Por que você
simplesmente não abria a porra dessa sua boca e nos dizia essas coisas,
caralho?”, mas não podia. Sabia que, durante as madrugadas insones, era o único
momento em que sentia raiva dos sentimentos escondidos, dos afagos de pai que
ele e seu irmão foram privados. Sentia um rancor que parecia ser alimentado de
trevas, pois quando a manhã chegava, tudo o que queria era que a noite se
aproximasse novamente, pra que pudesse dirigir do trabalho à casa dos pais, ver
o rosto daquele homem novo e se enterrar nos seus escritos novamente, em uma
ansiedade que o maltratava, mas lhe dava um ânimo que só sentiu no dia que
pediu a mulher em casamento.
O velho baixou o rosto, numa
submissão clara de quem se viu destituído do poder elementar de se guiar por
vontade própria, mesmo nos pequenos caminhos domésticos. Não disse
absolutamente nada e tudo o que mais desejava no mundo, era que fosse deixado
só, nem que fosse pra morrer de uma vez. Era bom que deixava de dar trabalho.
***
A conversa definitiva veio 15
dias depois. A família se empertigava com os efeitos daquele estranhamento
silencioso. O irmão mais novo e recém-casado, sempre alheio aos acontecimentos,
estava muito mais preocupado com qual seria a forma de satisfazer a mulher
fogosa com quem casou do que com as ligações constantes da mãe, perguntando se
ele sabia de alguma coisa. O pai estava mais quieto do que de costume e
Francisco, de comportamento expansivo e extrovertido, ria apenas na presença da
filha, pois as crianças não devem pagar pelos erros dos adultos. Quando apareceu
na casa dos pais, depois de tanto tempo de presença constante e da ausência
abrupta, sua mãe não conteve as lágrimas, pois imaginou que o velho teria dito
algo dessas coisas que não podem ser ditas aos corações sensíveis, como são esses
homens de hoje em dia e que o filho nunca mais apareceria em casa na vida, pela
teimosia dos homens dessa família.
Entraram os homens no quarto,
depois do pedido alto de Francisco para uma palavra séria. Em uma conversa como
nunca antes, de perguntas nunca feitas, de verdade semi ditas e de mentiras mal
contadas, os homens lavaram a roupa suja da infância do próprio velho, para que
chegassem na do novo e assim desembaraçarem o nó feito pelos anos, que quis confundi-los.
O velho ouviu coisas que o fez pensar que já era sua hora de morrer e o novo,
de que já era hora de sair de lá, pra, de fato, nunca mais retornar. No final das
contas, o pai compreendeu, não sem dificuldade, as tristezas do seu filho, a
quem jurava que tinha satisfeito completamente no seu dever de pai. O filho
compreendeu as incapacidades afetivas de seu pai – embora já soubesse que não
se tratavam de incapacidades de sentimentos, mas de comunicação –, com a maior
facilidade, pois, ao percorrer por aqueles espaços privados e proibidos, se
surpreendeu e aprendeu que, não importa o quanto se ache que conheça alguém, ninguém
tem perdido de antemão a capacidade da surpresa. Pediu o perdão mais dolorido e
culpado de sua alma, por que sabia que se pudesse voltar no tempo, teria feito
tudo de novo. E aquele perdão que pedia se referia somente à culpa da dor que
causou naquele senhor que redescobriu, já aleijado, velho e doente, a quem,
mais do que nunca, amava e, pelas primeiras vezes na vida, se sentia amado
completamente.
Escrito para o meu amigo Trovador das Gerais, que um dia, há algum tempo, me pediu um conto sobre anonimato. Não sei como, a história se guiou sozinha à isso que está escrito. No rapaz que descobriu um novo alguém, violando um anonimato pretendido anteriormente e se fazendo anônimo, em pequenas doses diárias, mesmo que essa palavra não seja completamente apropriada aos atos praticados... Não sei. Fiquei com essa impressão. rs