segunda-feira, 27 de abril de 2015

Elenice

"Que merda de dúvida do caralho, cara!", falou Elenice. Gostava tão pouco do que tinha no prato, mas sentia uma fome tão descomunal que, mesmo em dúvida, não teve outro procedimento a não ser comer o que lhe era oferecido. Falar isso, no entanto, lhe custou uma noite trancada no quarto. Nesse tempo ninguém tinha celular. Não tinha TV. Não tinha nem a porra dum livro naquela desgraça de quarto trancado que ela pudesse ler. Pra quem mesmo que ela ia pedir ajuda quando tivesse a oportunidade? Ela elencou várias pessoas que pudessem ser úteis em algum momento, mas deixou tudo de lado. Um monte de paspalhos que não teriam colhões suficientes pra lhe ajudar como precisava. Não conseguia dormir porque fazia muito calor e não tiveram a decência de reparar que o ventilador estava quebrado. Tirou toda a roupa, não ficou nem de calcinha. Procurou em algum lugar a água que tinham lhe dado pra uma eventual sede durante a noite e, cuidadosamente, sem deixar derramar nenhuma gota, ia colocando na mão em forma de concha. Esse pouquinho de água, passou de um lado e outro do pescoço suado, mesmo com o cabelo preso. O suor pingava e descia pelas pontas de seus seios. Era inevitável.

Olhou a barriga, já despontava. O pai da criança foi o babaca mais babaca de todos os babacas que ela teve o azar de se apaixonar. No fim das contas, isso nem importava mais. Quando ela chegou em casa e disse que queria fazer um pronunciamento, a família achou que fosse uma das brincadeiras dela. Não, cara. Elenice falava seríssimo. Era pronunciamento mais importante que o que o Presidente tinha dado na quarta passada. Era coisa mais feia que bater em mãe. Era coisa mais séria que pedir empréstimo pra gerente de banco usando havaianas. Não deram nem as horas pra ela, claro. Continuou todo mundo a comer a refeição sem graça do dia, na hora que ela se levantou e colocou uma das mãos na barriga. A mãe sentiu uma agonia ruim no peito. O pai, um esfriamento do espinhaço. O irmão, um arregalamento de olhos. Elenice só disse as seguintes palavras: "Vocês não vão ouvir, não?! Eu tô grávida, porra!"

Essa menina não sabia falar sem xingar. Era mal dela. Tudo quanto foi professor, desde quando ela era pequenininha, reclamava pra mãe, pro pai, pra santa caridade, mas não tinha jeito. O satanás que se apossou dos couros dessa criatura não tinha piedade. Quando ela foi ficando grande, todo mundo já tinha desistido. As outras meninas da rua levavam surras às 10 da noite, quando voltavam pra casa pra dormir, porque já tinham sido advertidas pra não andar com essa filhote de besta-fera. Elenice foi ficando mais moça, interessou-se por caras. A maioria não a queria. Era boca-quente demais, essa mulher. "O cara pra namorar Elenice tem que saber que uma hora é ela que come ele", um inventou o dito que se espalhou mais rápido que fogo na caatinga. Elenice achava era graça desses ridículos que achavam que ela ia mesmo querer alguma coisa com qualquer um deles. Os alvos dela eram outros. Eram os professores que davam as menores notas pra ela. Eram os que diziam xingamentos muito piores dos que ela sabia, só pra provocá-la. Eram os que jamais diriam que nunca namorariam com ela por esse ou aquele motivo. Pelo contrário, ela queria quem tinha coragem pra dizer: "Elenice, se tu tirasse metade dessa tua cara de mau, tu ia saber o que tem de gostoso no mundo". 

Um dia, decidiu que aquela virgindade já tinha passado do tempo. Tinha 18 anos recém-completados e tinha ouvido falar duma senhora idosa que vivia só no final da rua e que se espalhou a conversa que tinha morrido virgem. Achou aquela coisa toda tão triste que, quando na sentinela da velha, olhou pro cadáver inviolado e jurou pra si mesma: "Mas antes morrer puta velha do que moça velha".

Parece que o diabo sempre fica atento a essas determinações ditas em voz alta (ou mesmo em voz baixas, em enterros de senhoras virgens). Duas semanas depois, se mudou pra rua paralela um rapaz cabeludo, cheio de brinco. Ele não era mais legal por ser assim. Os outros achavam que aquilo era coisa de viado e ele teve que demonstrar mais de uma vez que o lance dele não era aquele. Elenice andava com a ideia fixa na cabeça, quando viu o rapaz. Ela soube que seria ele, pelo raio que sentiu nas carnes quando o viu, diferente de tudo o que já tinha sentido até então. E, como nem pra nascer esperou sua mãe fazer força, foi ao ataque, disposta a entregar a um desconhecido o fardo que para si se tornou a sua virgindade. Não foi difícil, como se pode imaginar de um rapaz que está tentando provar sua masculinidade entre o bando.

Ninguém sabe como aconteceu. Ele colocou a camisinha direito, já tinha usado uma antes, sabia como é que era. Não sabiam se tinha rasgado, se tinha saído, se alguma mão com algum fluído tinha ido onde não era pra ir, mas não tinha mais pra onde correr. Elenice estava definitivamente grávida e desconsolada, mas ainda mantendo a pose de forte sob a qual viveu a vida toda. O rapaz correu e ela desejou do fundo do coração que o raio que a atingiu quando o viu tivesse lhe feito o favor de a ter matado de uma vez.

***

Era tarde da noite no quarto quente. Elenice vivia agora sob o mutismo da família e a inexistência social. Todo mundo sabia que estava grávida. As amigas tinham pena, os pais das amigas tinham raiva e medo. Os próprios pais mal lhe dirigiam a palavra. O irmão que ainda tentava falar algumas coisas pra animar. Tudo isso veio na cabeça de Elenice de uma vez, vergando o pescoço da moça pra frente. Nua, grávida, vulnerável, triste, raivosa e trancada. Ninguém teria pena de Elenice. Ninguém mostraria compaixão com a moça da boca suja. Um grito terrível se formou e no meio de lágrimas e cabelos na cara, se libertou, acordando a casa toda. Correram pra acudir. Elenice sentia dores. Levaram pro hospital. Elenice chorava, segurando a barriga. Perdia muito sangue. Elenice lembrou do raio. Lembrou do velório. Lembrou da senhora velha. Lembrou da promessa daquele dia. Elenice tinha tomado remédio pra abortar. Elenice tinha tudo pra conseguir, mas não deu, pessoal. Elenice soltou as mãos do mundo pelo seu sangue, que corria como rio de dentro de suas pernas.