sábado, 17 de maio de 2008

Literatura: O Despertar

Era só pousar o olhar sobre ela, que eu entrava no palco iluminado da existência. Um sorriso brotava nos lábios, e naqueles olhos que se espremiam para exprimirem o tanto de bem-querer que ela guardava por mim. Ao vê-la caminhar em minha direção, meu corpo enchia-se de desejo, e eu era entorpecida pela idéia de possuí-la. Eu a via como sendo completamente minha, em toda sua extensão, em todas as suas vontades, em todos os seus pensamentos, em toda sua libido, em todas as células e pequenas partículas que compunham aquele organismo. Eu aspirava que ela respirasse por mim e para mim, e pensava assim: "Eu aspiro que ela me respire".

Naquele corpo eu redescobria o sexo a cada movimento executado. Era uma languidez que me enfeitiçava, despertando a volúpia eventualmente adormecida em mim. A sensualidade ao se abrir e me chamar, os olhos transbordando de desejo, o sexo me convocando para dentro a cada latejar. Eu só precisava lançar um olhar cheio de apetite, para que aquela mulher começasse a arfar. Era uma respiração ofegante, em descompasso com o batimento acelerado do sangue em suas artérias. E nos fundíamos assim, cheias de paixão.

E era amor o que havia. A luz que clareava nossos caminhos era luz de amor, o cheiro dos ambientes pelos quais passávamos era cheiro de amor, os sons que ouvíamos mesmo no silêncio acolhedor eram sons de amor. Aquele gosto que sentíamos ao provar nossos corpos, e os alimentos deles derivados, era o gosto do amor. E ele era tangível, nós o tocávamos e éramos por ele tocadas. Amor que toca. A vontade era fundir aquele corpo no meu, ser um só. Dois indivíduos transfigurando-se em coisa una. Aquilo era soma, mas da soma surgiam novas substâncias, e éramos então transformadas em um novo objeto. Novidade. Um elemento satisfazendo o outro, em uma troca mútua de prazer, cuja meta era a unidade. Havia o meu olhar sobre ela, e aquele olhar sobre mim. E queríamos que permanecesse assim, sendo uma, mas descontinuamente apresentada em duas. Ela me ama, eu a amo.

Fazíamos planos como quem bebe água quando tem sede. Éramos arquitetas de uma vida dual. Nós nos bastávamos, como ao céu bastam as nuvens, como à fome basta o alimento. Tínhamos pressa em sonhar juntas a nossa odisséia, a aventura que iríamos viver até nosso último suspiro. Ao morrer, eu permaneceria viva dentro dela, ao morrer, ela permaneceria viva dentro de mim. Viveríamos mais, pois viveríamos juntas.

O que me impressionava era que meus sentidos estavam trocados. Eu era feita de multi-sentidos. Meus olhos acariciavam aquele corpo no lugar das minhas mãos, deslizando na pele morena daquela mulher que um dia chamei de amor. Meu olhar a despia de suas parcas roupas, que, pouco a pouco, iam colorindo o chão do quarto alumiado. Era o olhar como tato - o contato. Meus ouvidos a viam se aproximar, e, sua voz, aquela voz que soava como perfeita melodia, era acompanhada por um cheiro afável que invadia meus pulmões, fazendo com que eu exalasse contentamento. O cheiro de mulher que ela carregava, impregnava meus ouvidos com a certeza de que era ela que, um dia, me faria sofrer.

Era uma felicidade transitória, eu sabia. No entanto não havia em mim nenhuma vontade de me privar daquela efemeridade enferma chamada amor.

©


---------------------------------------
Texto-argumento do curta "O Despertar", parte integrante da trilogia Tempos de Amor.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Literatura: Caminhando em sentidos opostos

Levantou-se às 04:15 da manhã, vestiu seu uniforme laranja e pôs-se a caminhar até a estação de trem. Foram 30 minutos que poderiam ser transformados em 5, caso tivesse dinheiro para o ônibus. A barriga vazia entoava um lamento reclamando por comida, enquanto entrava no vagão acompanhado da esperança de que um dia tudo iria mudar. Sem encontrar lugar para sentar, dormiu em pé o sono atrasado de um corpo cansado de suas jornadas diárias. Os desejos que povoavam suas imagens oníricas eram sempre travestidos em histórias de um homem bem sucedido que, fora de seus sonhos, esqueceu de bem suceder.

Uma hora e meia após iniciar o calvário sobre trilhos, ao ser acordado pelo sacolejo violento do comboio chegando à sua estação, foi brutalmente jogado na vida real. O trem vomitava milhares de humildes sub-empregados no Centro da Cidade, e José era um deles. Chocado ao olhar para o relógio na nave central da estação ferroviária, percebeu-se atrasado e partiu como um torpedo para vencer sua maratona diária. Em alguns momentos, via-se disputando passo a passo com seus pares uma corrida sem vencedores. Não há troféu na chegada.

Sem tomar conhecimento de sua existência, o ônibus partiu deixando-o para trás. Passaram-se 15 minutos até José tomar outra condução e finalmente achar-se no último trecho de seu destino final.

João foi acordado por sua mulher, uma morena de carne apetitosa e pele bronzeada por um sol que parecia nascer apenas para ela. Diariamente ela cumpria sua rotina de exercícios físicos, o que explicava suas formas exuberantes e bem construídas. Beijaram-se antes que ela vestisse sua malha cinza e branca, enquanto ele a admirava com ares de desejo por algo que já era dele.

Levantou-se, fez sua higiene rotineira, apoderou-se do jornal, e fez seu desjejum preguiçoso à base de frutas, leite, café, pães e frios. Ligou a TV sem pressa para assistir as novidades de ontem e, ao final do noticiário, vestiu terno, gravata, pegou seu paletó, a maleta, e saiu. Seu carro já o esperava, trazido por um porteiro conhecedor de seus hábitos e orgulhoso por sua competência.

Deixou seu prédio rangendo os pneus, montado em uma pressa desconhecida nos 5 minutos precedentes. Parado no sinal vermelho, e sobre as listras brancas, desnudou um drops, pôs em sua boca fluorescente pelos dentes bem tratados, e abriu o vidro para cumprir, indiferente, seu ritual de jogar o papel para fora do veículo. José, de vassoura na mão, asssitiu à cena e, empunhando sua ferramenta de trabalho com altivez, dirigiu-se ao local do crime. Acostumado por limpar dejetos de terceiros, se apossando deles em determinados casos, extinguiu com um só golpe a sujeira deixada em via pública.


O trem de pouso se recolheu, e João estava em altitude de cruzeiro, voando até sua reunião. Novamente um suco, um sanduíche, e mais papéis jogados em sua lixeira de ocasião.

José escavava seus bolsos laranja em busca de moedas que, somadas, talvez possibilitassem um cafezinho no bar da esquina. Após uma reunião produtiva, que multiplicou em dois o saldo bancário de João, o almoço foi por sua conta. Paletós vestiam as cadeiras enquanto conversas sobre stock market, carros alemães, torneios de tênis, e sobras no prato, ocupavam o restaurante.

A televisão do pé sujo onde José era cliente preferencial alertava, mal sintonizada, que o Flamengo está na final. Ele e seus amigos exalavam felicidade em seus sorrisos de poucos dentes. O falatório eufórico tomou conta do ambiente enquanto Zico, Júnior, Adílio e Nunes tabelavam magistralmente até o gol.

João se aproximava de sua casa a 800 km/h. Queria seu carro, sua mulher, sua cama. Queria seus amigos para comemorar mais um feito em sua brilhante carreira de vendedor de dinheiro. Ao pagar o estacionamento, deixou uma soma considerável de moedas para a moça bonita, mas mal cuidada, que trabalhava no guichê. Era a conta certa para a condução até sua casa, em algum bairro distante, cujo nome João desconhecia.

Dobrou a esquina da rua onde morava, abrindo eletricamente a janela de seu importado enquanto José sonhava acordado, imaginando-se ao volante daquele carro que nunca seria dele. "Sai da frente, porra!". O brado de João despertou José de seu transe, fazendo com que, em um pulo, ele saísse da entrada da garagem daquele prédio imponente da Garcia D'Avila. Olhou seu relógio, que só marcava os minutos, e se deu conta que ainda faltavam vários deles para que ele pudesse passar seu turno e voltar pra casa.

Era uma das raras noites frias do inverno carioca, e José notou que, quanto mais ele varria, mais imundas ficavam as valorosas ruas de Ipanema.

©


-----------------------------------------

SOBRE O TEMA:
Leitura recomendada: O Processo, Franz Kafka
Som recomendado: Construção, Chico Buarque
Medicamento recomendado: Resignação gotas


Tela: Narciso, Caravaggio

quarta-feira, 14 de maio de 2008


Ainda que mal


Ainda que mal pergunte,

ainda que mal respondas;

ainda que mal te entendas,

ainda que mal repitas;

ainda que mal insista,

ainda que mal desculpes;

ainda que mal me exprima,

ainda que mal me julgues;

ainda que mal me mostre,

ainda que mal me vejas;

ainda que mal te encare,

ainda que mal te furtes;

ainda que mal te siga,

ainda que mal te voltes;

ainda que mal te ame,

ainda que mal o saibas;

ainda que mal te agarre,

ainda que mal te mates;

ainda, assim, pergunto:

me amas?

E me queimando em teu seio, me salvo e me dano...

... de amor.


* * * Drummond * * *
Porque eu morro de saudades dele...