sexta-feira, 16 de maio de 2008

Literatura: Caminhando em sentidos opostos

Levantou-se às 04:15 da manhã, vestiu seu uniforme laranja e pôs-se a caminhar até a estação de trem. Foram 30 minutos que poderiam ser transformados em 5, caso tivesse dinheiro para o ônibus. A barriga vazia entoava um lamento reclamando por comida, enquanto entrava no vagão acompanhado da esperança de que um dia tudo iria mudar. Sem encontrar lugar para sentar, dormiu em pé o sono atrasado de um corpo cansado de suas jornadas diárias. Os desejos que povoavam suas imagens oníricas eram sempre travestidos em histórias de um homem bem sucedido que, fora de seus sonhos, esqueceu de bem suceder.

Uma hora e meia após iniciar o calvário sobre trilhos, ao ser acordado pelo sacolejo violento do comboio chegando à sua estação, foi brutalmente jogado na vida real. O trem vomitava milhares de humildes sub-empregados no Centro da Cidade, e José era um deles. Chocado ao olhar para o relógio na nave central da estação ferroviária, percebeu-se atrasado e partiu como um torpedo para vencer sua maratona diária. Em alguns momentos, via-se disputando passo a passo com seus pares uma corrida sem vencedores. Não há troféu na chegada.

Sem tomar conhecimento de sua existência, o ônibus partiu deixando-o para trás. Passaram-se 15 minutos até José tomar outra condução e finalmente achar-se no último trecho de seu destino final.

João foi acordado por sua mulher, uma morena de carne apetitosa e pele bronzeada por um sol que parecia nascer apenas para ela. Diariamente ela cumpria sua rotina de exercícios físicos, o que explicava suas formas exuberantes e bem construídas. Beijaram-se antes que ela vestisse sua malha cinza e branca, enquanto ele a admirava com ares de desejo por algo que já era dele.

Levantou-se, fez sua higiene rotineira, apoderou-se do jornal, e fez seu desjejum preguiçoso à base de frutas, leite, café, pães e frios. Ligou a TV sem pressa para assistir as novidades de ontem e, ao final do noticiário, vestiu terno, gravata, pegou seu paletó, a maleta, e saiu. Seu carro já o esperava, trazido por um porteiro conhecedor de seus hábitos e orgulhoso por sua competência.

Deixou seu prédio rangendo os pneus, montado em uma pressa desconhecida nos 5 minutos precedentes. Parado no sinal vermelho, e sobre as listras brancas, desnudou um drops, pôs em sua boca fluorescente pelos dentes bem tratados, e abriu o vidro para cumprir, indiferente, seu ritual de jogar o papel para fora do veículo. José, de vassoura na mão, asssitiu à cena e, empunhando sua ferramenta de trabalho com altivez, dirigiu-se ao local do crime. Acostumado por limpar dejetos de terceiros, se apossando deles em determinados casos, extinguiu com um só golpe a sujeira deixada em via pública.


O trem de pouso se recolheu, e João estava em altitude de cruzeiro, voando até sua reunião. Novamente um suco, um sanduíche, e mais papéis jogados em sua lixeira de ocasião.

José escavava seus bolsos laranja em busca de moedas que, somadas, talvez possibilitassem um cafezinho no bar da esquina. Após uma reunião produtiva, que multiplicou em dois o saldo bancário de João, o almoço foi por sua conta. Paletós vestiam as cadeiras enquanto conversas sobre stock market, carros alemães, torneios de tênis, e sobras no prato, ocupavam o restaurante.

A televisão do pé sujo onde José era cliente preferencial alertava, mal sintonizada, que o Flamengo está na final. Ele e seus amigos exalavam felicidade em seus sorrisos de poucos dentes. O falatório eufórico tomou conta do ambiente enquanto Zico, Júnior, Adílio e Nunes tabelavam magistralmente até o gol.

João se aproximava de sua casa a 800 km/h. Queria seu carro, sua mulher, sua cama. Queria seus amigos para comemorar mais um feito em sua brilhante carreira de vendedor de dinheiro. Ao pagar o estacionamento, deixou uma soma considerável de moedas para a moça bonita, mas mal cuidada, que trabalhava no guichê. Era a conta certa para a condução até sua casa, em algum bairro distante, cujo nome João desconhecia.

Dobrou a esquina da rua onde morava, abrindo eletricamente a janela de seu importado enquanto José sonhava acordado, imaginando-se ao volante daquele carro que nunca seria dele. "Sai da frente, porra!". O brado de João despertou José de seu transe, fazendo com que, em um pulo, ele saísse da entrada da garagem daquele prédio imponente da Garcia D'Avila. Olhou seu relógio, que só marcava os minutos, e se deu conta que ainda faltavam vários deles para que ele pudesse passar seu turno e voltar pra casa.

Era uma das raras noites frias do inverno carioca, e José notou que, quanto mais ele varria, mais imundas ficavam as valorosas ruas de Ipanema.

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SOBRE O TEMA:
Leitura recomendada: O Processo, Franz Kafka
Som recomendado: Construção, Chico Buarque
Medicamento recomendado: Resignação gotas


Tela: Narciso, Caravaggio

2 comentários:

JuDolores disse...

Ai...é foda!

Mais ou menos no mesmo pensamento hoje, sexta-feira de sol( depois de uma semana chovendo), eu estava feliz da vida, quando me chega uma cidadã para fazer o contrato dela...toda mal humorada, com uma pressa sem razão, não tirou os óculos escuros( achei o fim ela ficar aqui na sala de óculos)...


Quando eu olho o contrato da pessoa, ela vai ganhar 7 vezes mais do que eu... =/


Na pele dela eu estaria animada!!

Vai entender...


E eu tão simpática...não ganhei nem um bom dia...

JuDolores disse...

Adoro, o Blog da Liga salva minhas tardes...

Por sinal, recomendem-me outros ;)