domingo, 27 de abril de 2014

O baú



Em todas as vezes em que esteve certo de algo, procurou as histórias da vida do pai e tentou alguma aproximação. Mas isso foi bem depois. Sabia que o velho tinha seus dias arquivados em páginas cuidadosamente escritas com a ponta da caneta bic, sempre de tinta azul ou preta. Gostava de escrever afundando as letras, pesando a mão. Foi como aprendeu a escrever, afinal de contas: na marra, depois de adulto e com a mulher ainda grávida do primeiro filho. Foi quando decidiu que iria pagar aulas com quem quer que se dispusesse em lhe dizer que símbolos eram aqueles que via nas conduções e não entendia. Não queria a humilhação de não poder ensinar pros filhos o que eles quereriam saber, quando viessem da escola todos os dias com as tarefinhas e com mais perguntas do que respostas, num processo sempre cumulativo de questionamentos embaraçosos.

Não era um pai amoroso, ou pelo menos, não daqueles que levavam as crianças pra passear ou colocava o mais velho no colo pra contar seus tempos de menino. Não foi assim como lhe ensinaram que um homem devia ser. Apesar de ter chorado escondido no nascimento dos dois filhos, tudo o que mostrou na frente dos outros, foi o beijo na testa suada da mulher exaurida e os risos formais que dava a cada par de amigos que entrava pra ver a criança gorda e sempre chorosa. A vida tinha sido muito difícil e casar foi mais uma urgência reparadora do que um planejamento pra vida. Ainda era muito cedo, o tempo era pouco e o dinheiro também. Um choro, porém, ficou engatado na garganta. Quando foi no cartório e precisou dizer o nome da primeira criança, um nome de astro americano, e o moço que fazia essas coisas perguntou como se soletrava e ele não sabia como responder. Sabia que haveria de ter algum “a”, mas como se parecia um “a” e onde era que ele se encaixava no meio daqueles fonemas que trazia consigo? Derrotado, deu o nome de Francisco ao primeiro pequeno. Era comum, o moço do cartório não precisaria perguntar como era que se escrevia. Ainda não tinha se sentido humilhado dessa forma. Durante toda a gravidez entrou em combate com a mulher pra lhe dar esse nome em particular, pra no final, uma simples questão prática e básica lhe impedir o intento. O choro na garganta se transformou numa raiva cega que não deixou que ele pegasse a condução pra casa. Foi à pé, pensando que as coisas não deveriam ser assim pra ele. Pra ninguém.

***

Francisco tinha já seus quase 30 anos quando achou um baú mal entalhado, todo empoeirado, em um quartinho da casa antiga em que seus pais ainda insistiam em morar, apesar da distância para o bairro em que os dois filhos moravam com suas respectivas famílias. A porta do banheiro de uso comum da casa estava emperrada e era preciso alguma ferramenta. Logo também foi detectado um defeito no trinco. Foi a um quartinho velho, onde ninguém mais entrava há muitos anos. Era o lugar que o pai queria que, um dia, fosse um escritório, onde podia sentar todas as noites e realizar tarefas sem ser incomodado por qualquer barulho que fosse. O pai sempre foi um homem difícil, com um aspecto muito duro. Por mais que o moço nunca tenha colocado em cheque o fato de ter sido amado por seu pai, o conhecia o suficiente pra saber o que poderia esperar dele ou não. Poderia esperar uma mão na cabeça, sem mais do que uma risada rápida do canto da boca e um quase grunhido que soava de aprovação. Fora isso, só lembrava do dia da ocasião especial em que o pai chegava do trabalho e ele ainda estava na rua jogando bola. Antes de ver que o pai se aproximava e sentir um frio gelar-lhe os ossos, marcou um gol. O pai foi ao encontro do menino petrificado que o olhava atentamente, pousou a mão em sua cabeça sem dizer palavra, mas o sorriso correu-lhe por toda a face, fruto de um orgulho muito sincero. No restante das ocasiões que Francisco se lembrava, parecia um gesto automático de alguém incapaz de sentimentos mais complexos. Porém, não se lembrava de sentir-se mais feliz do que quando isso acontecia. Ia correndo contar pra mãe, que enchia os olhos d’água, porque ela sim, colocava várias e várias vezes em cheque o amor do pai pelos filhos. Ela tinha o cuidado de fazê-lo apenas no escuro da madrugada, enquanto o marido dormia, no seguro do seu coração.

O baú estava com uma tranca muito velha, não foi difícil achar uma marreta no meio daquele quarto entocado e quebrá-lo em uma só pancada. Viu um mundo de cadernos mais ou menos finos, organizados dentro do baú médio, com um plástico grosso que os envolucrava do mundo exterior. Pegou o que estava mais em cima e abriu do começo: sem dúvidas, era um diário. E as pernas tremeram quando viu que era do pai. Poderia reconhecer aquela escrita forte e aquela letra mal desenhada a um milhão de quilômetros de distância. Sentiu uma vertigem, quando sentiu que as aproximações com o pai nunca tinham dado certo e que aquela era uma violação que nunca seria perdoada. Com o coração disparado, decidiu sentar-se e ler cada coisinha que tinha ali.

Os olhos foram a um dia de 18 anos atrás. Ele tinha 11 anos. O pai relatava que tinha saído do emprego e voltado pra casa e que estava muito cansado. Tinha sido um dia quente e ele tinha ficado muito feliz ao chegar em casa e ver que os filhos já estavam banhados, com uma roupa limpa, com os cabelos penteados e cheirosos, sentados na porta de casa com a mãe, esperando só por ele. Águas encheram os olhos de Francisco, porque em todos os dias do ritual, o pai nunca havia dito sequer uma palavra de aprovação ao esforço que a sua mãe fazia pra que os meninos saíssem da rua, com os pés pretos de sujos e ofegantes das corridas, pra que tomassem banho e se sentassem na porta, na cadeirinha que cada um tinha pra que esperassem o pai chegar. O relato continuou sobre uma chateação com um colega de trabalho e de como a mulher que passou na rua chamou-lhe atenção pelo rabo grande, o que arrancou risadas sufocadas do filho. Era um homem totalmente diferente que se apresentava ali.

***

O velho, nessa época, tinha diabetes. Como era muito teimoso, continuava a comer de tudo sem qualquer restrição. Um dia, uma faca escorregou de sua mão enquanto tentava utilizá-la como chave de fenda, pra abrir um radinho de pilha que parou de funcionar com as pilhas ainda novinhas. A faca caiu no seu pé. Sangrou. Doeu. Sangrou mais e não cicatrizou. Quatro dias depois, quando não importava mais qualquer brio, foi ao hospital, sinceramente arrependido das teimosias. Não porque tinha medo de morrer, mas tinha medo de não morrer e ficar ali, dependente de sua mulher, de seus filhos, de uma enfermeira, de quem quer que fosse. O que mais lhe aterrorizava era a possibilidade infame de morrer como um cachorro sem dono na porra de um hospital. Ficou mesmo alguns dias em observação na mesma porra de hospital, a ferida só fazia aumentar e sabia do risco de perder o pé. Foi pra casa, não cuidou e voltou pra cirurgia de retirada de membro.

A família toda ficou chocada, mas ninguém mais que o próprio velho. Tinha cuidado de si o tempo que precisou, desde quando tinha seus oito anos. Sempre cuidou também de quem precisou de si, desde que pôde. Xingou a médica, xingou os enfermeiros, xingou Deus, xingou o diabo, xingou a quem e o quê pôde. Não adiantou. O pé foi embora e uma lágrima desceu pelo olho esquerdo quando acordou da anestesia e percebeu que o mundo jamais seria como antes. Amargurado, parou o que tinha feito o hábito de sua vida por mais de 20 anos: escrever as palavras que necessitava pra todas as noites.

Deitado na maca do hospital, com a mulher, os filhos e netos, ponderou sobre o destino de sua alma, se tivesse morrido na mesa de cirurgia. Pediu perdão a Deus pelas palavras, não falou nada ao diabo e soube que teria que permanecer no purgatório por algum tempo, antes que pudesse caminhar (que ironia!) aos terrenos sagrados. O espírito estava abatido, mas, mais uma vez, não podia deixar transparecer.

Foi quando o filho mais velho passou a visitar todos os dias a casa dos pais. Não importava se passava menos tempo com a mulher e com a filha, se tinha que pegar um engarrafamento sem fim pra chegar em casa só pra dormir, se tinha emagrecido por comer pouco de preocupação com o pai. As páginas que lia clandestinamente, no silêncio daquele quarto onde mal se podia respirar, lhe absorviam os miolos do cérebro, porque já não podia parar mais.

***

“18 de maio de 1988, 22:00

Minha vida não tá fácil. Os meninos estão ficando maiores e tão precizando de muitas coisas. Toda hora a mulher me cobra isso cobra aquilo. Hoje foram umas chuteiras que eu não sei como vou fazer pra comprar. Francisco vai disputar um campeonato e eu vou deixar porque todo homem tem que jogar bola na vida. Eu não tive essa oportunidade não vo negar aos meus filhos. Isabel me disse que o aumento ta fora de jogada aquela rapariga. Não trocava minha mulher por duas dela apesar dela ser bem gostosa e a Iraci já ta capengando um pouco. O trabalho foi angostiante por causa disso e eu fiquei muito nervoso quando o seu João chegou dizendo que tava circulando notícia que alguns funcionário iam ser mandado embora. Se já tá uma merda do jeito que tá, pagando só as contas mesmo e mal imagina meu Deus deixar de ganhar esse. Já to velho e não aguento muito outro trabalho pesado. Já pensou? Eu ter que capinar terreno pra bota comida dentro de casa. Meu Deus e santa teresinha não deixai eu perder meu emprego pelo amor de Deus.”

Francisco parou várias vezes pra enxugar os olhos, porque em algum momento do breve relato deste dia em particular, os olhos se embaçaram demais pra que ele pudesse enxergar. Parou, respirou e sentiu suas têmporas pressionadas, em uma dor de cabeça que lhe fez curvar. Depois de casado e com uma filha, nunca passara por qualquer tipo de aflição financeira, porque já era muito bem empregado mesmo antes do casamento e das demais responsabilidades. Pensou em sua pequena. Nos sonhos dela, nos seus sonhos próprios e nos seus sonhos pra ela. Pensou em seu pai, pensou nos seus antigos sonhos e de como achava que o seu pai nunca aprovaria seus devaneios, como ser jogador de futebol profissional. Lembrou da época em que o pai acabou realmente perdendo o emprego e como era triste vê-lo circulando anúncios em jornais e saindo de casa cedo, procurando algum trabalho. Antes de saber, quando lhe foi negado o pedido das chuteiras novas e a própria ida ao campeonato, gritou pra mãe, que lhe deu a notícia com a mão no coração, e foi ao quarto que dividia com o irmão, sentou na sua cama e chorou, como alguém que sentiu um sonho perto do nascimento, abortado tragicamente por algum acidente cruel. Mais tarde, quando soube do ocorrido com o pai, foi muito lento em relacionar um episódio ao outro, e não deu nenhum efeito de causa e consequência ao fato, o que lhe rendeu ainda alguns meses do seu ódio cego e surdo, mas não destituído do paladar ou do tato, pois quando se lembrava, um gosto de bile vinha à boca – embora não soubesse identificar – e a mão se guiava a algum objeto próximo, que tinha ganas de arremessar à parede, mas não o fazia porque sabia que levaria uma surra muito da caprichada.

No fundo do baú, meteu a mão e achou o primeiro caderno, dentro de uma outra sacola plástica. Como percebeu, seu pai sempre numerava todos quando terminava um e passava para o seguinte. Viu a letra pesada mais uma vez, que ainda não era a cursiva, mas uma letra de fôrma, muito mais pesada, quase inutilizando as costas da folha, de quando o pai achou um pequeno curso no centro da cidade, que ensinava adultos a ler.

‘FRANCISCO
MEU FILHO NACEU
IRACI TEVE FRANCISCO
BOTEI O NOME DE FRANCISCO’

Assim, sem assinaturas, sem datas, sem maiores detalhes. Saiu do quarto agoniado, pensando ter passado tempo demais ali dentro, mesmo achando que os pais não desconfiavam de nada. A mãe só se ocupava da novela e de atender o marido em alguma necessidade. O pai estava na cadeira de rodas e também ficava na frente da TV, mesmo que não gostasse, porque não teria que gritar pra que lhe buscassem qualquer coisa ou quando quisesse ir ao banheiro. Por fim, acabou gostando dos enredos das novelas e acompanhava de bom grado as novelas e o jornal. Não viu ou ouviu os passos do filho mais velho. Sentiu apenas um abraço por trás, onde um braço se enfiava por baixo das axilas e o outro lhe segurava a face. Arregalou os olhos e sentindo alguma dor da cirurgia, se virou como pôde e viu o filho, tomado pela inspiração divina, com os olhos arregalados, vermelhos e fixos aos seus. Assombrado, pensou que o homem tinha perdido o juízo e, se assim o fosse, ele pouco poderia fazer, sentado naquela cadeira. Não demorou, quedou-se paralisado, pois a súbita inspiração do Espírito Santo que viu nos olhos do filho, reconheceu-a em si. Tomado de um terror magnífico, compreendeu que as ausências demoradas de seu filho no fundo da casa e as suas visitas diárias tinham nada a ver com a sua cirurgia ou pra ajudar a mãe. Compreendeu que estava sendo lido, que o lugar onde deixou pedaços de si que nunca havia exposto a ninguém, estava sendo escrutinado pelo próprio filho, sem autorização. Sentiu-se desconcertado, envergonhado, porque se lembrava de confissões feitas, como as poucas traições à mulher e uns sentimentos desencontrados, que foi colhendo ao acaso, com os percalços da vida, e guardando para aquelas páginas diárias, que lhe serviam de consolo e compreensão paciente e tenaz. A mãe observava àquilo, perturbada, sem a menor pista do que poderia estar acontecendo. Perdeu o beijo roubado que o vilão da novela deu na mocinha, que fez com ela se apaixonasse perdidamente e para sempre.

Francisco, por sua vez, percebeu a inquietação do pai e viu-se descoberto do crime. Da incursão não autorizada à intimidade da pessoa que julgou ter a menor complexidade humana que já conheceu em toda a sua vida. Pelo convívio diário até o casamento, achou que conhecia aquela homem que chamava de pai, com a palma da sua mão. Viu que estava enganado e, desde então, com a mulher e a filha dormindo, deitado na cama, observando o teto, tinha vontade de ligar pro pai e perguntar: “Por que você simplesmente não abria a porra dessa sua boca e nos dizia essas coisas, caralho?”, mas não podia. Sabia que, durante as madrugadas insones, era o único momento em que sentia raiva dos sentimentos escondidos, dos afagos de pai que ele e seu irmão foram privados. Sentia um rancor que parecia ser alimentado de trevas, pois quando a manhã chegava, tudo o que queria era que a noite se aproximasse novamente, pra que pudesse dirigir do trabalho à casa dos pais, ver o rosto daquele homem novo e se enterrar nos seus escritos novamente, em uma ansiedade que o maltratava, mas lhe dava um ânimo que só sentiu no dia que pediu a mulher em casamento.

O velho baixou o rosto, numa submissão clara de quem se viu destituído do poder elementar de se guiar por vontade própria, mesmo nos pequenos caminhos domésticos. Não disse absolutamente nada e tudo o que mais desejava no mundo, era que fosse deixado só, nem que fosse pra morrer de uma vez. Era bom que deixava de dar trabalho.

***

A conversa definitiva veio 15 dias depois. A família se empertigava com os efeitos daquele estranhamento silencioso. O irmão mais novo e recém-casado, sempre alheio aos acontecimentos, estava muito mais preocupado com qual seria a forma de satisfazer a mulher fogosa com quem casou do que com as ligações constantes da mãe, perguntando se ele sabia de alguma coisa. O pai estava mais quieto do que de costume e Francisco, de comportamento expansivo e extrovertido, ria apenas na presença da filha, pois as crianças não devem pagar pelos erros dos adultos. Quando apareceu na casa dos pais, depois de tanto tempo de presença constante e da ausência abrupta, sua mãe não conteve as lágrimas, pois imaginou que o velho teria dito algo dessas coisas que não podem ser ditas aos corações sensíveis, como são esses homens de hoje em dia e que o filho nunca mais apareceria em casa na vida, pela teimosia dos homens dessa família.

Entraram os homens no quarto, depois do pedido alto de Francisco para uma palavra séria. Em uma conversa como nunca antes, de perguntas nunca feitas, de verdade semi ditas e de mentiras mal contadas, os homens lavaram a roupa suja da infância do próprio velho, para que chegassem na do novo e assim desembaraçarem o nó feito pelos anos, que quis confundi-los. O velho ouviu coisas que o fez pensar que já era sua hora de morrer e o novo, de que já era hora de sair de lá, pra, de fato, nunca mais retornar. No final das contas, o pai compreendeu, não sem dificuldade, as tristezas do seu filho, a quem jurava que tinha satisfeito completamente no seu dever de pai. O filho compreendeu as incapacidades afetivas de seu pai – embora já soubesse que não se tratavam de incapacidades de sentimentos, mas de comunicação –, com a maior facilidade, pois, ao percorrer por aqueles espaços privados e proibidos, se surpreendeu e aprendeu que, não importa o quanto se ache que conheça alguém, ninguém tem perdido de antemão a capacidade da surpresa. Pediu o perdão mais dolorido e culpado de sua alma, por que sabia que se pudesse voltar no tempo, teria feito tudo de novo. E aquele perdão que pedia se referia somente à culpa da dor que causou naquele senhor que redescobriu, já aleijado, velho e doente, a quem, mais do que nunca, amava e, pelas primeiras vezes na vida, se sentia amado completamente.

Escrito para o meu amigo Trovador das Gerais, que um dia, há algum tempo, me pediu um conto sobre anonimato. Não sei como, a história se guiou sozinha à isso que está escrito. No rapaz que descobriu um novo alguém, violando um anonimato pretendido anteriormente e se fazendo anônimo, em pequenas doses diárias, mesmo que essa palavra não seja completamente apropriada aos atos praticados... Não sei. Fiquei com essa impressão. rs

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