Há dois dias que eu estou em Bacabal. Isso sempre me alegra o coração. É bom vir pra cá, abraçar quem me é querido e me dedicar, sem culpa, à nobre arte da desocupação. Só que sempre que eu venho pra cá, talvez pelo próprio ócio, uma onda de pensamentos bem mais urgentes me invadem. Desde ontem, um pensamento tá fixo na cabeça e hoje, por conta de duas mortes precoces - mas fora do meu círculo íntimo -, se agravou: o pensamento do quanto deve ser difícil ser mãe ou pai de alguém. Enfim, ter a responsabilidade de amar e proteger a outro ser humano, mesmo que ele não tenha sido gerado por si. Coisas acontecendo o tempo todo nesse mundo que me dá cada vez menos esperanças, me dão bastante medo de ter essa responsabilidade, ainda que tudo seja um plano dado quase como certo na minha vida, num futuro a longo prazo.
Pensei no quanto deve ter sido difícil pra minha mãe. Ela não tinha nada pra "dar certo", sabe? Meus avós maternos moravam no interior de um interior, no Maranhão. Pelo pouco de detalhes que sei da vida deles, não tinham más condições até minha avó adoecer e meu vô ter que vender quase tudo que tinha pra arcar com as despesas de um tratamento infrutífero. Acabou que ficaram bem pobres. Sem chance de um estudo mínimo de qualidade, minha mãe foi mandada pra ter o mesmo destino de tantas jovens, até hoje, pelo meu Estado. Teve que morar na casa de alguém que tivesse alguma condição na cidade grande, pra cuidar da casa e dos filhos da patroa, sem receber nada e estar sujeita à toda a sorte de humilhações que se pode ter ideia. Destino esse que, infelizmente, na minha própria casa, anos e anos depois, com eu e meu irmão ainda pequenos, fizemos repetir à outra jovem, saída do mesmo lugar que saiu minha mãe, com a mesma tarefa. Não esqueço disso, jamais. E é uma das coisas que sinto que, se tivesse condições, quereria compensar e pedir perdão.
De toda a maneira, o início de minha mãe foi bem mais complicado do que o meu. Nunca precisei trabalhar por um prato de comida e sempre tive, à duras penas, acesso à educação formal em umas das melhores escolas particulares daqui. Tive apertos, dificuldades, mas nada que realmente tivesse impedido o meu pleno desenvolvimento intelectual e físico. Mas eu estou "perdendo o ponto".
Quando eu nasci, as coisas ainda não estavam, digamos, plenas. Minha mãe tinha a minha idade e já era mãe de um menino de um ano e meio. Meu pai era ainda quem sustentava a casa, confiado que o comércio do mercado central da cidade, onde praticamente todos os meus tios paternos trabalharam, nunca iria decair como decaiu. Não sei em que ano, minha mãe entrou pra Universidade e começou a estudar pra ser professora. Conseguiu. Eu me lembro nitidamente de ir ao seu baile, aos seis anos, com o cabelinho chanel e banguela. E de ser uma espécie de "dama de honra", ao entrar na missa de ação de graças, carregando uma cesta de anéis da pedra azul que iam ser benzidos pelo padre. Depois da minha própria experiência na Universidade, o meu respeito pra com as mulheres que tinham jornadas de trabalho duplas ou triplas e filhos pra cuidar e que se formaram, aumentou consideravelmente. E o respeito E solidariedade pras que não conseguiram, também.
Tudo começou a partir daí. Minha mãe passou em concurso e a ganhar mais que o meu pai. Com mais condições, passou a sustentar a casa, o que, desconfio, foi um golpe terrível à equivocada crença de meu pai de que era "papel do homem" fazê-lo. Eu era pequena e lembro pouco, mas o casamento já estava caindo aos pedaços à época. Pra resguardar uma história que não é só minha, só posso dizer que, nessa parte, tudo mudou... Pra pior. E muito sofrimento isso me custou.
Quando adoeci, foi que vi nos olhos dos meus pais, o quanto era difícil ser o que eles eram pra mim. Passei a depender quase que inteiramente deles, até pra algumas tarefas básicas. Minha coragem era minha, mas não seria nada se eu não tivesse com quem contar. E não tivesse a mais absoluta certeza que, acontecesse o que acontecesse, eles estariam ali, comigo, não desistindo de mim. Que eles queriam absorver todas as dores que eu sentia pra eles. Que eles morreriam pra não me ver definhar.
Esse amor é o que eu procuro me lembrar, quando as coisas caminham pra rumos indesejados. É o perdão, sempre tabu na minha casa, pedido por minha mãe, depois de uma longa conversa sobre as conclusões que tirei sobre o que me causava aquilo tudo, é que eu evoco quando a irracionalidade bate à porta.
Depois de cinco anos morando fora, tudo mudou. O que era complicado e difícil entre nós, ficou discutível, debatível. As paredes da minha casa ainda têm as marcas dos meus pés, porque não foi pouco que eu tive que colocar o pé nelas pra que a realidade fosse outra. O que era impossível se tornou possível. Surgiu cumplicidade entre eu e a minha mãe. Surgiu a possibilidade de conversar entre adultos com o meu pai. Surgiu o diálogo, forçado pela saudade que finalmente fazia com que perguntássemos sobre os nossos dias e que pudéssemos dizer "eu te amo" sem constrangimentos, no final dos telefonemas. Surgiu aceitação, mesmo sem a completa compreensão do que se passava comigo. Surgiu o respeito pela minha individualidade, pelos meus sonhos e pelas minhas opiniões, bastante tóxicas pra mentalidade deles, eu sei. Mas os caminhos foram abertos e eu pretendo seguir por eles. Nada é ideal, já se sabe. Somos imperfeitos demais. Mas eu não perco a esperança de que, pelo menos no que eu posso interferir, podemos mudar ainda mais.
Hoje, quando duas tragédias mencionadas no começo desse texto vieram à tona, quando jovens vida se foram, deixando um rastro terrível de dor nos pais, foi que me veio a certeza mais que absoluta de que eu quero me manter nesse mundo por muito tempo ainda. "Cuando álguien se va/ El que se queda/ Sufre más", você está certa, Shakira. Por amor aos meus pais, é que eles precisam viver menos do que eu e meu irmão. E por amor a mim e a ele, é que precisamos que essa separação só seja daqui a muuuuuito, muuuuuuito tempo.
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