Que dia estranho. Passei todo ele sentindo uma tranquilidade terrível. É assim que eu consigo definir: tranquilidade terrível. Apesar de, como todos os dias, o trabalho não ter dado folga, o cumpri com toda a tranquilidade que pude. Tomei as pausas necessárias. Ninguém me apressou. Ninguém se estressou. Fiz tudo ao meu ritmo e fiz tudo o que se pôde fazer, sem horas extras, que eu sempre esqueço de enviar à administração pra acrescerem ao meu banco de horas.
De toda maneira, foi terrível.
Hoje é o dia internacional ou nacional (ninguém descobriu por certeza) do idoso. Da melhor idade, da terceira idade... Aqueles eufemismos lá que a gente usa pra encobrir o fato de que temos um dia pra comemorar o velho. O bom e velho velho. Porque todos os velhos, na minha cabeça, quando esta era velha, eram bons.
Nova, tinha a cabeça velha. Tão aí meus cabelos no chão que não me deixam mentir. E, em meio ao trabalho de agradecer a quem construiu a história daqueles lugares que já me parecem íntimos, com palavras que me foram fáceis, senti que fui ficando terrível. Que os olhos acompanhavam as linhas, e que a cabeça tinha muito mais a escrever. Com a hora adiantando, a imagem daqueles velhos correu de um extremo a outro da minha mente, me escurecendo um pouco os pensamentos. Lembrei, óbvio, de quem eu havia de lembrar. De quem não consigo esquecer.
E foi tranquilo e terrível por isso. Depois foi tranquilo de novo. Como sempre é.
E foi tranquilo e terrível por isso. Depois foi tranquilo de novo. Como sempre é.
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Há menos de uma semana, um priminho nasceu. Filho de primo, eu creio que seja meu primo de segundo grau. É um bebêzinho lindo, fruto de uma relação inter-racial entre meu primo (branco) e sua esposa (negra). Não entendo muito bem de genética, mas achava que eram bem maiores as chances do bebê nascer negro, não? Estava torcendo pra isso. Na minha família por parte de pai, não temos negros, infelizmente. Temos pardos, como eu; temos brancos, como meu primo; mas negro mesmo, não temos nenhum. Aí o menino pega e me nasce branco. hahaha Bebê, como eu queria te apertar agora (não pode, eu sei. Sua moleira ainda tá mole).
Ver as fotos desse bebêzinho lindo me fez lembrar muito da Lulu. Fizeram 4 meses desde que ela veio com essa história besta e sem rumo de dar o fora disso aqui. Ai, Lulu. Sério, gata? Tu perdeu o filhinho do teu neto, mulher? Querida, e o meus, hein? Como é que, um dia, eu vou botar um comedorzinho de rapadura no mundo, sem que ele tenha a barra da tua saia pra quando eu quiser brigar com ele, hein? Os que virão, da tua descendência, saberão de ti, é claro. Quem é o doido que não vai te contar? Te perpetuar nesse mundo doido?
Tu ficou sabendo, né? Tatuei teu nome. Minha filha, foi o maior bafafá. Até aquela tia lá, tua cria, que eu te dizia que me enchia o saco com essa história de eu voltar a ser crente, disse que gostou e só não faria uma por falta de coragem. A única que não gostou declaradamente foi a mãe mesmo. A gata se enfezou legal, disse umas coisas fortes pra mim, pesadas. Doeu, mas eu fiz. Ela não entendeu, Lulu. Nunca foi sobre ela. Nunca foi sobre ninguém, a não ser nós duas. E se teve uma decisão acertada na minha vida, foi ter colocado o teu nome, com tua letra, na minha pele.
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Lembrei da minha relação com alguns velhos. Eu não lembro direito qual era a minha idade mas só podia ser nove ou dez, no máximo, supondo isso pela idade atual da minha prima. Quando ela era um bebêzinho, de não mais que dois anos, eu passava umas férias em São Luís. A mãe dela, minha tia, tinha um casamento conturbadíssimo com o pai dela. Era uma manhã ventilada e tínhamos que ir ao pediatra da bebê. Eu ia junto, claro, fazendo o papel de babá que sempre me delegaram. Os pais dela haviam brigado muito e minha tia dirigia chorando até o caminho do consultório. Só lembro da briga ter sido bem feia.
Lá, com todo mundo mais calmo, eu estava sentada na cadeira, comportadíssima, enquanto minha tia estava no consultório com a bebê. Havia um velho, bem velho, sentado na cadeira ao meu lado. É incrível como ele tinha um cheiro diferente. E não era cheiro de perfume de homem, destoando das colônias infantis: era de velho. Mas um velho limpo. Ele desenhava alguma coisa e eu não resisti. Deitei os olhos em cima, com toda a má educação inocente que eu tinha. O velho olhou pra mim e perguntou se eu queria ver o que ele desenhava. Eu respondi que sim. Ele tinha um papel em branco, dobrado ao meio, e me ensinou a desenhar uma rosa. Primeiro eu desenhei como sabia, depois ele foi me dizendo o que havia de errado. Não era simples desenhar aquela rosa. O caule tinha que ser elaborado. As folhas não poderiam ser grudadas ao caule. As pétalas precisavam delinear-se uma das outras. Ao final, ficou uma rosa horrível, mas uma rosa crível. O velho me disse que, se eu estudasse, faria rosas melhores. Disse-me o papel a usar, me disse o lápis certo a comprar, disse que eu poderia.
Conversamos muito. Aquele velho não era como os outros adultos que me tratavam conforme o humor. Ele me respeitou. Ele sabia que estava conversando com outro ser humano, cheio de coisas na cabeça. Uma criança que estava quieta, sozinha e com cara de assustada. Falou comigo e me deu uma aula que até agora eu nunca esqueci. E o que aquele velho fazia ali, naquele ambiente com crianças, babás e mães? Não sei. Era alto, branco, totalmente grisalho e aparentava estar desacompanhado. Talvez quisesse achar um lugar pra desenhar em paz e talvez ter conversas interessantes com quem ainda não havia sido contaminado pelo mundo. Talvez estava esperando alguém sair do consultório, como eu.
Outros velhos estavam no meu caminho. E com eles, desenvolvi relações fortíssimas, porque não me via e nem os via diferentes ou superiores a mim. Adultos eram os que eu tinha que obedecer, podiam me castigar, humilhar, fazer mal. Os velhos não. Os velhos eram pra conversar, abraçar e ser amigo. Desde o bisavô, que contava histórias inverossímeis, de tecedores de almas que utilizavam algodões e do fim do mundo com a chegada do avião, até o vizinho da Lulu, que sentava na sua porta e eu ia lá, conversar com ele, perguntar da vida, saber como era quando ele era novo. Que ficava dizendo que eu era neta dele e eu falava que não. "Neta, não. O senhor é meu amigo", enquanto ele se acabava de rir e passava a mão na minha cabeça.
Eu não consigo olhar pra um velho e perceber qualquer coisa diferente nele. E todo esse papo de melhor idade me parece ridículo, sempre. Vi dores que não passavam por dias. Vi o caminhar diminuir com o tempo. Vi as palavras ficarem de difícil compreensão. Vi o pôr-do-sol. Vi vários fins e todos eles me doeram. Alguns me latanharam menos, outros bem, bem mais. Mas todos os meus velhos seguem intactos na minha memória. Não reduzidos à velhice ou às pequenas histórias que insisto em contar, mas permanecem fartos de toda a complexidade humana, com defeitos, amores, paixões e tudo o mais que tem no pacote.
Tenho escrito em meus diários o nome do primeiro amor de minha avó. O homem que ela suspirou mesmo depois de casada. Tenho na lembrança o dizer do vizinho da Lulu, de como ele sofreu quando sua mulher faleceu. Tenho na lembrança o dizer do bisavô, de como foi difícil conquistar sua mulher sendo pobre. Tenho na lembrança a minha outra avó, condoída de tanta coisa, dizer que tudo pra ela tinha sido muito difícil. Não sei. Desde cedo, eu sei que a vida não é uma coisa fácil. Talvez eu sou grata a esses velhos por terem me ensinado que era possível.
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