sábado, 30 de maio de 2015

O amor

Quando se pensa em amor, qual é a primeira ideia que vem à sua cabeça? Não, ideia é ideia... Divagação. A pergunta tem que ser mais direcionada: quando você pensa em amor, qual é a primeira pessoa que vem à sua cabeça?

A minha resposta se foi. Um tipo de amor que, talvez, a gente só experimente poucas vezes nessa vida, já não está mais aqui, nesse mundo. A Lulu, a mulher minha muito amada (roubando a frase de Neruda), o deixou na madrugada de um domingo que tinha começado pra mim, inocente e distante da situação, bem feliz. Deixou, por que o seu coração carregava 84 anos de vida. E já tinha sido tanta e tão alegre, que mesmo leve, pesou. Acho que distribuiu tanto amor e afeição, que os músculos que o sustentavam, meio que cansaram de bombear tanto, sabe?

E as lágrimas que quase não me deixam digitar esse texto, me dizem que essa é uma falta que ainda vai se fazer presente por ainda muito, muito tempo. O mais provável é que seja pra sempre. E eu sinto que, a qualquer momento, posso explodir e sufocar de tantas palavras por sair e de tantas lembranças por lembrar. E, de ontem pra cá, quantas vezes não já explodimos, todos?

Há quatro anos atrás, na estrondosa comemoração dos seus 80 anos, nós, como família, pudemos estar todos juntos e celebrar a sua vida, o seu exemplo e o seu amor. Na ocasião, pude falar o quanto ela era - e é! - peça central e insubstituível na minha vida. Veio choro de cá, coisa difícil de sair assim, e veio o seu, bem mais fácil e torrencial, mas ainda assim delicado. O abraço, tão saudoso abraço, chegou. Era só pra dizer: "É tudo verdade. É tudo mais que verdade." Ontem, na viagem mais pesada da vida, eu não tinha dimensão do que ainda estava por enfrentar. Mas tinha. Tinha que te chorar, Lulu, todos tínhamos. Por que a dor não se cabia e precisava extravasar e ainda bem mesmo que extravasou.

Pouco a pouco, vamos todos nós organizando a mente. Filtrando todos os risos, selecionando as melhores gaitadas, ajeitando aqui e ali, tudo o que representa pra nós, como família e tudo o que representa individualmente. Tu era uma pessoa-refúgio. Tu era um lugar, Lulu. Tu era um bálsamo. Tu era mais do que a matrona bondosa de 84 anos. Tu era a minha amiga mais íntima, mais besta pra me rir, a melhor plateia que jamais existirá. A gente não tinha isso de idade quando tava junta. Passei minha adolescência dormindo contigo, na tarefa doce de ser tua companhia e a tua bengala, de acordar às 5 pra desligar o ar-condicionado no palitinho, porque o controle tinha quebrado. Morria de raiva de acordar contigo cantando a música da mulher preguiçosa que, pensando bem, era só verdades. "Mulher preguiçosa/ Não cose, nem fia/ Se deita na cama/ Se acorda mei-dia..." Só verdades mesmo. rs

E, olha, não foi pouco que essa gata me escatitou. E era coisa que nem dá pra sair rasgando em público não, viu? haha Fora as hilariantes tiradas, num humor tão leve e tão faceiro... Outro dia, a gente sentada na calçada, fofocando horrores da vida alheia (sim), passa um menino de bicicleta, o pneu dele derrapa e ele desvia em direção a uma moto que vinha no sentido contrário. Quase acontece um acidente feio. Depois do grito fino que ela deu, assustada que só ela, gritou pra ele: "- Ei, menino, tu quer que a gente vá tomar café com peta na tua casa, é?" hahahaha E, claro, a gente ficou lá se acabando de rir. E a risada dela tá ecoando na mente, no peito, na alma ferida.

"Tu tem que viver". Ela disse, depois que eu falei um episódio dolorido que tinha acontecido recentemente, à época. Ela sabia que, dizendo isso, estaria passando por cima de todas as convenções, alheias e próprias. Mas ela sabia o que era melhor pra mim. Tive que viver mesmo, absoluta verdade. E a vida se mostrou muito maior do que eu tinha imaginado. Ela me entendia. Ela sabia que podia ser livre. Ela não me julgava e eu retribuía o favor.

Vou sentir falta, vó. Lucila, de luz. Lulu, de amor. Estou mais do que certa de que a senhora teve a vida que quis. E realizou o desejo, o mais profundo e guardado de todos os corações humanos: teve a certeza de que amou e foi amada intensamente. E todo o legado que deixou por onde passou, se explica: era desses casos raros de pessoas que viviam o que acreditavam.

Vou continuar, ainda sem saber como, por que tenho e por que foi o que tu sempre fez. Não serão as últimas lágrimas que derramo por ti, nem as últimas palavras a escrever, nem as últimas músicas em espanhol a cantar. 

"O mundo pode mudar ainda mais, o tempo pode passar, nós próprias podemos mudar, mas a senhora sempre me terá por inteiro. Te amo de todo, por que de todo tu é perfeita. Perfeita até mesmo nas imperfeições. Te amo de todo não por que compartilhamos o mesmo sangue, mas por que a senhora já faz parte da minha própria estrutura. Está dentro de mim, assim como as estrelas estão no firmamento.
O meu amor é teu pra sempre."

Sempre. O amor, esse absurdo de amor, que vai curar.

"Como é que você pôde se perder de mim?"

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