sexta-feira, 6 de março de 2015

O primeiro dia

Hoje, ao dar os parabéns a um amigo mexicano, procurei uma foto nossa no meio dos arquivos que trouxe da Colômbia. Não fico fazendo isso todas as vezes que eu tenho vontade, porque, querendo ou não, dessensibiliza. Pelo muito amor que eu nutro pelos meus nervos, também não quero me desmanchar em lágrimas todas as vezes que vejo, mas quero que sim, que me invada a doce saudade daquele mês e meio bem aproveitado, que me marcou pra vida.

Lá, além da minha família colombiana, fiquei próxima de um tantão mais de gente. Eu jurava que esses amores todos em períodos pequenos de tempo era coisa de Big Brother querendo voto. Não. Essa parada foi séria mesmo. Não sei se foi porque foi a primeira vez e a primeira vez marca mais mesmo ou se foi aquela áurea de felicidade intransigente que nos revestia a todos. Só sei que o aniversário do meu amigo me fez lembrar das caminhadas. Eram muitas. Em grupos ou só. Pela cidade, pelas viagens, pelas trilhas, pelas praias, por nós mesmos. Caminhamos horrores debaixo daquele sol escaldante que fez a holandesa ir bater no hospital do exército no primeiro dia. Ainda éramos semi desconhecidos. Antes da nossa primeira ida oficial ao batalhão, combinamos de ir ao Museo del Caribe. Era lindo e pra acabar logo com meu coração, tinha um pôster enorme do Gabriel García Márquez dizendo que em todos os lugares se sentia estrangeiro, menos no Caribe. Ainda estava de pouco a morte dele e foda-se: ainda hoje me enche de águas nos olhos. Pegamos o ônibus rumo ao batalhão de dentro da cidade, onde seria o nosso ponto de encontro de todos os dias. O Exército da Colômbia, no primeiro dia, nos deu o mini ônibus deles. Não teve quem pudesse ter sossego dentro daquele troço. Era ensurdecedor. Tinham uns 8 mexicanos e eles eram quem puxavam as músicas. Eu fui ao lado da outra brasileira do projeto nos bancos primeiros. Isso lá é coisa que se faça? Viramos e ficamos de joelhos nas poltronas e começamos a cantar as músicas que eles cantavam, mesmo sem saber. Até que, antes de chegar lá, paramos de gritos e canções e começamos a nos apresentar formalmente. Hi, people! My name is Jamila. (Hiiiii, Jamila!). I'm 24. I'm brazilian and my favourite thing is... uh... I don't know... Let me see...

Sim. Coisa de ensino fundamental mesmo.

Chegamos. Fomos recebidos por duas senhoras evangélicas e um soldado, também evangélico. Nada contra per se. Mas tinham umas 30 pessoas ali de tantos países e religiões diferentes e pessoas sem religião também, como eu. A entidade que nos levou não sabia que aquilo aconteceria. Na verdade, estavam tão chocados quanto nós. As senhorinhas saíram decepcionadas porque ninguém se converteu ao protestantismo. Perdão, senhoras, mas eu já tive a minha cota e a maioria ali nem sequer falava espanhol. ¯\_(ツ)_/¯

O terreno era arenoso e não tinham banheiros femininos em parte alguma. Apenas dentro dos alojamentos, que eram galpões cheinhos de beliches muito bem arrumadas. Nada estava sujo ou fora do lugar. O que estava em péssimas condições eram os banheiros que, afinal de contas, tivemos que usar. Mas nada abate o espírito de quem enfrentou banheiro químico de carnaval de rua.

Foi a primeira vez que vimos aqueles rapazes. Quase a mesma idade que todos nós, a maioria negra e pobre. O serviço militar na Colômbia é obrigatório, mas obrigatório mesmo. Por não compreender muito bem o espanhol extremamente rápido que os costenhos falavam, fiquei sem entender a parte da explicação da minha host sister sobre como se dá a dispensa. Parece que o rapaz tem que pagar uma taxa que não é muito baratinha, não. E, como no Brasil, sem o certificado de que se prestou serviço, ele só se FO-DE. Não dá pra fazer porra nenhuma de prática na sua vida e, uma hora ou outra, você vai ter que fazer, se não tiver o dinheiro pra pagar. E é um ano inteirinho. Parece que se quiser escapar, quando te pegarem, é mais tempo, cumpádi. Um parente da minha família colombiana passou foi 2 anos na mata fechada, por não ter cumprido no tempo certo. Quando falávamos com eles individualmente, diziam as mesmas coisas. A cartilhazinha do bom soldado: era bom o Exército, dava disciplina, amor à pátria amada, salve salve! Mas 3 meses até poder ver a família era ruim. Ir pra selva fechada depois de um tempo e arriscar a vida pra lutar contra as FARC era ruim. Não podia falar isso alto. Não podia embargar a voz. Soldado é macho brabo. ¿Como está la moral? ¡Alta, muy alta! 

Eu só contei isso pra uma só pessoa e agora escrevo: um dia um soldado se acabou de chorar pra mim. Tinha saudades da família, não estava se aguentando mais. Engraçado que nós éramos as pessoas neutras, porém eu sentia um ar de desconfiança da parte deles. Éramos diferentes demais, num nível enorme já entre nós e mais ainda entre eles. Também tememos. Não a eles, mas o que fazer com eles. Como era que chegaríamos aos seus corações? O quê de bom ensinar e aprender com aqueles rapazes, pelo amor de alguma coisa!? Era inevitável que um caminho de comunicação se abrisse e, apesar do tempo perdido com planejamentos infrutíferos, conseguimos. O rapaz que chorou o fez escondido, até me assustou quando me abordou. Eu voltava do banheiro, quando ele se aproximou e começou a falar amenidades, até que tocou no assunto que estávamos conversando no sub-grupo que eu fiquei. Chorou. Talvez quisesse fazê-lo antes, mas tinha que segurar. Eu sabia falar espanhol, entenderia. Ele precisava desatar aquele nó. Sem querer, ajudei a desatá-lo. Por obra da minha cabeça flutuante, não perguntei o seu nome e seu rosto me escapou. Mas ficou aquela pessoa sofrendo nos meus olhos. Falando rápido demais coisas que eu tentava entender, sendo que já entendia. O léxico da saudade é universal. Pela situação, pelo lugar que estávamos, um abraço, por mais que urgisse, não cabia ali. Só podia ajudá-lo com palavras. Espero que outros abraços tenham te confortado, soldado. 

Voltando ao primeiro dia: quando terminamos e voltamos ao ônibus, a uma hora que passamos nele na volta foi pior do que a ida. Os mexicanos quase todos já se conheciam já do México e não teve parêa pra essa galera. Botaram foi todo mundo pra bailar. Chegamos no batalhão, muitos sem saber voltar pra casa (eu). Uma galera pegou táxi, mas eu tinha que aprender a me virar. Fiquei esperando por uma das moças da Aiesec pra ir comigo, porque ela iria pegar o mesmo ônibus que eu e me ensinaria onde descer. Só que a pobre da holandesa desmaiou nos braços de uma mexicana e tivemos que levá-la pro hospital do batalhão. Eu no imbróglio com: 1) holandesa desmaiada; 2) a alemã colega de quarto dela; 3) a menina da Ong e 4) o outro holandês (voador). Agora pense bem aí: eu, a aleatória, na emergência de um hospital do exército, com pessoas que eu não tinha nenhuma intimidade. O legal foi que a moça da Ong teve que sair pra resolver coisas burocráticas na recepção do hospital e eu fiquei traduzindo duas línguas que, apesar de conhecer, não sou nenhuma pica das galáxias nelas. Enquanto a gente tava esperando a moça ficar melhor pra poder ir embora, ainda tentei jogar meu charme malemolente e brasileño no holandês, um belo exemplar dos "sqh" - "Sinceramente, que homem!". Absolutamente sem sucesso. A única conversação que teve foi quando ele me pediu emprestado o carregador do celular e só. Quando a gente saiu do táxi, ele ainda me chamou de Jessie. "Jessie é minha mão na tua cara, rapá!", pensei. Aliás, meu insucesso com os rapazes do mundo de lá foi o que me fez tomar a drástica decisão do uso do Tinder. E o conhecimento que adveio daí, meu senhor do céu...

E esse foi só o primeiro dia. Eu não conseguia sequer dormir na primeira semana que eu cheguei lá. O quartinho simples que fiquei hospedada era quente e pequeno, mas esse não era o problema. O negócio era que estava acontecendo! O coração pesou. Ia dormir, invariavelmente, às 4 da manhã, depois de muito pelejar pra pegar no sono. Acabou, depois desse período e só veio me pegar de novo na hora de partir. Caminhei demais, como disse no começo. Com a russa, com o aniversariante mexicano, com a porto-riquenha, com quem viesse. Fazem falta as caminhadas da estação Joe Arroyo até a casa dos Rivaldo e ouvir da Rubys que "A Jamila le gusta caminar, no?". Parar no parque Surisalcedo e comprar um copão enorme de sorvete a 5 mil pesos, enquanto via as crianças jogando basquete na quadra e os velhos conversando suas velhices. Faz falta sentir aquela completude de se estar no lugar certo, no momento certo, com as pessoas certas, fazendo o que se quer. Quando o vi o mar de Cartagena, chorei. Quando vi o Río Magdalena, chorei. Quando estava no avião, sabendo que tudo aquilo nunca mais se repetiria da mesma maneira, chorei. Compreenda, leitor (?): estive mês e meio de coração distraído e de lágrima fácil.


Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto! Conseguiu me transportar pra Colômbia.