Nesse dia espreguiçado, deitada no chão frio do quarto quente, passei o dia lembrando coisas. Até um minuto atrás foi o dia das crianças e aí, amigo, dá jeito não. Lembro mesmo. Logo eu que sou um poço de nostalgias por cima de nostalgias. As histórias marcam por tempos indeterminados demais.
Lembrei do dia em que minha mãe apareceu no primeiro colégio cristão, pra me levar pra ver a esquadrilha da fumaça. Uma loja muito grande da cidade a trouxe, em ocasião do seu aniversário. Era quando eu já estudava à tarde e o evento ia ser às quatro. Eu não tinha esperança de ir. Mary Jane, a bicicleta mais sensacional do Universo, não me levaria àquela distância em tempo hábil e mesmo que levasse, eu só sairia da aula já quase dando seis da noite. Mamãe apareceu de carro com o meu primo. Não tenho o meu irmão nessa lembrança. Com uma felicidade que não cabia em mim, fui ver, perto do aeroporto de Bacabal, aqueles aviões pequenos, fazendo tudo o que queriam no céu azul. Fiquei louca. Botei na minha cabeça que eu ia porque ia ser pilota da aeronáutica. A Jamila de agora ri que se acaba daquela menina, por ser tão inocente a ponto de acreditar que iria conseguir enfrentar qualquer curso que fosse de Exatas. Tadinha, gente. Quando fizeram a minha festa de 15 anos, naquela hora da entrada da debutante, a irmã da Igreja que era a cerimonialista ia dizendo todas as minhas características: evangélica, carinhosa, excelente aluna e que o meu sonho era fazer parte da aeronáutica. Ô, meu Deus... Como eu mudei!
Escrevendo sobre a Mary Jane, aí que lembrei de coisa mesmo. Jesus! Eu era um perigo naquela bicicletinha. Um terror mesmo, porque em primeiro lugar, ela nunca tinha freio. Eu a ganhei de uma amiga, depois que ajudei ela a se recuperar de terem roubado a sua bicicleta novinha, durante uma aula de educação física, no clube que tinha perto da minha casa. Eu tinha 9 anos e disso eu lembro bem, porque estava na 4ª série. A Mary Jane era uma bicicletinha rosa, Monark, daquelas sem o círculo no meio. Meus pais nem queriam aceitar, porque não queriam que eu recebesse caridade. Eu tinha visto a Mary na casa da minha amiga uma semana antes, quando a gente fez um trabalho em dupla. Ela tava esquecida em um quarto velho e eu vi e pedi pra dar umas voltas pela rua. Ainda não tinha tido nenhuma bicicletinha, mas tinha aprendido aos seis, na do meu primo. Foi uma tarde feliz. Nós terminamos o trabalho rapidão pra poder andar alternadamente naquela que seria minha companheira até os meus, acredite se quiser, 16 anos. E aí, a mãe dela comprou uma de gente grande pra ela, que roubaram justo no dia da estreia, no clube. As meninas da física ficaram consternadas, mas todo mundo foi fazer a sua atividade física normal. Eu fiquei lá com ela, levei pra minha casa, dei água com açúcar - o método infalível pra acalmar e matar de diabetes qualquer um. Enfim, ajudei. Eu juro que eu não queria nada, só imaginei o tamanho da surra que eu levaria se eu saísse de casa com uma bicicleta novinha e, por descuido, voltasse sem.
A Mary foi feita pra ser minha. Por duas vezes eu a deixei dormindo na rua. Até na delegacia de Bacabal, meu pai teve que ir buscar e só devolveram porque ele falou com um policial vizinho da minha avó, porta de quem eu deixei a pobre Mary só. O vigia da rua viu e, ao invés de bater na porta da casa da Lulu, ligou pra polícia e eles levaram. Ô agonia grande, essa. Da primeira vez que eu a abandonei, eu fui pra um culto de rua perto da minha casa e a deixei, também, na calçada de um desconhecido. Terminou o culto e eu fui andando pra casa. Quando acordei no dia seguinte pra ir pro colégio, onde estava MJ? Eu nem acreditava no que estava acontecendo. Cheguei da escola e, com o coração na mão, fui no lugar. Na esquina, pedi pra Deus me dar minha bicicleta de volta. Eu leria a Bíblia toda em um ano. Ele cumpriu a parte, eu não. Ainda li até Provérbios, eu acho. A questão é, não importa o que acontecesse comigo, aquela bicicletinha rosa estava por perto. E nela eu rodei toda a Bacabal, muito mais do que os meus pais sequer podem imaginar. Eu não considerava ela realmente como um simples objeto, inclusive eu nem deixava que as pessoas a chamassem desse nome tão... Ordinário. Era Mary Jane e pronto e acabou-se, porque eu reconheço que eu sou chata em relação aos apelidos que eu quero que peguem. Foi uma grande amiga, que já não sei do paradeiro, por um descuido que eu ainda não consegui perdoar.
Uma vez, resolvemos eu e um grupo de amigas, sair pra explorar Bacabal. Por uma loucura dessas que dá na cabeça de menino, a gente decidiu andar na Avenida João Alberto, que é o lugar que o pessoal se reúne agora pra fazer caminhadas, à tardinha. Bom, nessa época isso ainda não era tão popular assim. Saímos de um lugar longe da Avenida até ela e resolvemos percorrê-la toda, chegar na BR e voltar pela Cohab. Meu Deus, eu não sei nem contar quantos quilômetros isso dá. Só sei que é circundar Bacabal por fora. Não tinha acostamento que prestasse e, quando bateu a sede e o cansaço daquele terror de sol quente, me bateu também o desespero e a certeza de que eu ia morrer atropelada por um daqueles caminhões gigantes que bozinavam pra nós, o que nos fazia morrer de medo. Quis chorar, quis voltar, mas não dava mais. Quando finalmente me vi na Cohab, ainda longe demais de casa, mas dentro da cidade em si, com casas ao meu redor e sem qualquer risco à minha integridade física, o alívio soçobrou qualquer cansaço do meu corpinho e pedalei, motivada pela sede, até em casa. Passei dois dias com o bumbum dolorido, as costas, as pernas que deram câimbras, sem que ninguém lá em casa tivesse percebido nada. Sim, a MJ também estava sem freio nessa época. Sim, pedalei horas em uma rodovia interestadual em uma bicicleta infantil sem freio. Raras eram as vezes que tinha, porque eu mandava colocar e algum mecanismo que estava além de qualquer conserto, quebrava novamente os freios novos. Nesses anos todos, a pobre Mary também nunca viu uma corrente ou cadeado, porque eu acreditava piamente que as coisas que eu me importava de tomar muito cuidado, se extraviavam mais facilmente.
E quando me apaixonei? O currículo de amores platônicos começou a ser preenchido desde cedo, com uma paixão sem fim por um colega de classe que sempre me demonstrou desprezo, quando muito, uma amizade sem tônus, mas o suficiente pra me fazer passar noites em claro. Isso começou, sei lá, desde a 2ª série, eu suponho. Negócio bizarro mesmo. Era o tempo do amor puro e desavergonhado, porque eu não tinha pudores de mandar cartas e mais cartas de amor, mandar presentes, dar toda e qualquer bandeira de que eu queria aquele menino pra mim. Até o dia definitivo em que eu soube que ele era apaixonado por uma amigona minha. Veio a 5ª série, ele foi estudar na capital e acabou o amor. Amém! Mas vieram outros. Eu tinha a mania mais horrorosa do mundo de me apaixonar por professores. Dois, que isso aconteceu. Sendo que um desses amores não concretizados da infância (que, afinal, nem podia mesmo, né?) me acompanhou durante muitos e muitos anos. Dez, pra ser mais precisa. Outros amores, outras paixões vieram, mas esse amor cristalizado não me largava. Altos e baixos, mas estava ali presente. Até o dia não tão remoto em que sonhei e acordei chorando, porque algo dentro de mim me falou: "Moça, deixe isso ir". E eu deixei, com dor, mas deixei. Quando penso a respeito desse sonho, me pergunto se não foi uma forma do meu subconsciente me dizer, de forma bem mais explícita do que se pode esperar da mensagem contida em um, que aquele sentimento deveria dar lugar a qualquer outra coisa, mas que não havia mais lugar para ele, não daquela mesma forma, que tampouco era a original, mas mesmo em suas permutações, ainda o entendia como amor e ainda sofria por ele. Hoje, é apenas gratidão. Olhar pra trás e ser grata por uma amizade que eu pensei que não pudesse existir entre pessoas em que tudo era tão diferente. Idade, status, hierarquias, tudo. Nas épocas complicadas demais, ter aquele sentimento a qual me aferrei com o que pude, mesmo com o contato encerrado havia anos, foi uma forma de ter "vivido" alguma coisa na minha adolescência interrompida. As boas e velhas compensações que o meu coração e cérebro me faziam ter, por tanto sofrimento. Hoje, depois de tanto tempo, sei que não conseguiria alimentar amores platônicos dessa mesma forma. De perto ou de longe, eu preciso saber que há reciprocidade, pra que possa entregar meus sentimentos e tudo o mais que vem no pacote.
A vida, no momento, dá voltas. Retorna aos lugares de começo, meio e fim das histórias, por ganas de recontá-las. Deixando nas minhas mãos os desenlaces. Dando a oportunidade pra que eu, Jamila adulta, honre a criança determinada, atentada, pensativa, alegre e triste que eu fui.
Ps: Esse é o tipo de texto que a gente decide parar de escrever. De verdade, ele não tem fim.
Pps: Não revisado e sem qualquer pretensão de.
Ppps: A última linha foi escrita sem o consentimento da primeira. A mão estava solta e não era no que deu, que eu tinha pensado ao começar a escrever.
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