João saiu de casa mais ansioso do que de costume. Ele não gostava da sensação de que algo de ruim estaria pra acontecer e essa sensação estava se fazendo cada vez mais presente desde o sonho que tivera durante a madrugada. O pior é que não tinha o costume de ficar dando importância a sonhos. Sonhos pra ele eram só o cérebro pirando um pouquinho, nada demais.
O da noite foi um tanto mais assustador: um anjo vinha conversar com ele sobre a sua vida. Não a vida dele, de João, mas a vida do anjo. O lugar era a casa de João e ao mesmo tempo não era. Ele se lembrou que quando convidou o anjo a se sentar, sem saber que era um anjo, abriu a cortina da janela e a vista dava pra torre Eiffel. E não havia lógica alguma que dissesse pro rapaz que aquilo era algo anormal.
A casa também estava mudada: ao invés da televisão lcd 42'' comprada em 2007 - quando só quem possuia uma era gente rico pra caralho - estava a televisão de tubo, de madeira ainda, de quando ele era criança viciada em pica-pau. O piso ainda era um que ele, depois, viu que não reconhecia de parte nenhuma da sua vida: um piso preto, parecia coisa de lápide de cemitério. Fazer essa constatação arrepiou-lhe os cabelos da nuca, quando estava já na parada de ônibus.
O homem, que depois disse que era anjo, vinha absolutamente de lugar nenhum. Ele apenas surgiu. Ele se virou e o cara tava ali, parado, olhando pra ele, com vontade de conversar. O cara se sentou no sofá pequeno e João no chão, (mas isso também era estranho. João NÃO senta no chão) esperando que o primeiro iniciasse a conversa. E iniciou. Começou falando que Deus - Deus mesmo, não o velho branco e barbado que Hollywood insistia em fazer se passar por ele - era um sujeito dado às pandeguices. Nada de luxúria, claro, mas ainda um pândego que gostava de tirar uma com a hoste celestial. Enviava a rapaziada pra desertos ao invés das regiões populosas. Ele, o anjo, disse que entendia, ou se esforçava pra entender.
Pra ele, Deus fazia isso porque era que nem aqueles pais que querem que os filhos aprendam na marra, com a taca que a vida dá. E ele não tirava a razão, mas ficava puto quando tinha que ficar olhando as nuvens na conchinchina ao invés de estar fazendo algo realmente útil pra alguém.
Disse que corria alguns riscos estando ali, conversando com um humano. Que era claro que ele já tinha sido descoberto (o Cara é onipresente, pô!), mas que quis tentar. Foi em João porque era um nome legal, bíblico, do primo de nosso Senhor e ele pensou que não queria ter que lidar com a geleia que ficaria o cérebro de algum ateu inconsequente ou algum outro tipo de fundamentalista religioso a qual ele se mostrasse.
Bom, João era o quê? Nem o próprio sabia. Nos tempos do Orkut, ele tinha marcado a opção "Com um lado espiritual independente de religiões". E era mesmo o que ele era. Ideal pras confissões do anjo que não queria também alarde em cultos evangélicos ou romarias de católicos à casa do sonhador.
Jamais teve a intenção de dizer o fim do mundo a ninguém. Ele sabia que ia rolar, porque tinha escutado uma conversa secreta de Deus com São Pedro, só sabia que não ia ser por água de novo. Tavam aí os arco-íris garantindo que a terra não ia ser destruída assim novamente.
Depois de dizer que não tinha inveja dos humanos - sua única vontade terrena era comer chocolate, embora soubesse que jamais comeria nada, depois do incidente com a maçã - o anjo olhou pra fora, deu uma olhada na torre Eiffel e soltou:
- Cara, você mora no Maranhão! Torre Eiffel? Pelo amor de Deus! Que cérebro ridículo, ô!
Riu e depois sumiu.
E João tinha permanecido a conversa toda calado. Tinha ficado atônito, olhando as feições daquele cara, mas não conseguia abrir a boca. Depois que levantou pra ir pro estágio, também não conseguia mais lembrar de como o cara era. Sabia que não era pra se importar com esses sonhos doidos, mas estava. No frigir dos ovos, já não sabia mais nem se o cara era anjo mesmo. Tá, ele apareceu do nada, sumiu do nada, mas sonho, cara... Sonho é sonho mesmo.
João, pobre João, quando chegou no estágio, atarantado, quase não conseguia cumprir as tarefas do dia. O olhar estava meio vago e a concentração não dava conta.
Os dias foram passando e João foi ficando mais estranho. Demorava a levantar, comia com apatia e dormia assim que chegava do trabalho. Terminou-se a semana e João já tinha faltado a quinta e a sexta e só se levantava quando chacoalhado fortemente pelo seu pai, que tinha mais força pra tarefa que a mãe. Preocupados, os pais de João chamaram um primo que era médico pra ver o que se passava com o rapaz. Exames feitos e nada demais detectado. Talvez fosse verme. A mãe ia preparar um lambedor de mastruz ou qualquer mato que tivesse no quintal da sogra.
O rapaz não se levantava mais. Só dormia. 36 horas de sono profundo, sem roncos, sem muitos movimentos, apenas o mexer suave das pálpebras, que indicava que estava sonhando.
Depois de 15 dias, João parou de respirar.
Sua alma foi em busca do homem que havia lhe sugado o animus. O anjo chorava (sim, anjos choram!) e João já sentia a boca solta pra falar-lhe. Perguntou porque estava chorando. O homem sentado na pedra mostrou que já havia falado com um humano antes, e que tivera que ferí-lo, porque o homem exigia uma bênção pra deixá-lo ir embora. Teve que dar. Depois disso, tinha prometido a si mesmo que nunca mais faria dessas. Fez. Não tinha mais presentes a dar, e sim um fardo a quem se dirigisse: a procura incessante que a alma procurada faria a si. Castigo divino inclemente, ele tentara esquecer.
João fechou os olhos e abraçou o que chorava. Sabia que estava morto, sabia que isso era algo ruim, mas tinha uma consciência lacerante de que, se lhe fosse dado o poder de escolha, faria tudo pra sonhar com o anjo de novo. Agora que sua alma achou o homem que a sentenciou, sentia o vazio completamente cheio das coisas completadas, dos objetivos satisfeitos e das dores saciadas. Sua alma chorou uma tristeza alegre, enquanto ria. Não havia nada a explicar nem a pedir explicação. Pousou a mão no ombro do anjo e, em silêncio, foram os dois aos portões do paraíso, onde só a entrada de João era permitida.
1:36 - do dia novo, do recomeço.
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