terça-feira, 24 de maio de 2016

A luz

"Tengo mucho que escribir, y poco papel
Mi honestidad es color transparente
Me puedes ver por dentro con solo mirarme de frente"

(Adentro. Calle 13)

Eu quis não me manifestar tanto sobre o dia. Eu quis deixar o meu coração guardado, mas não deu. Sem que ninguém pudesse ver, eu chorei na frente do computador desta redação, que não está vazia. Todos estão sempre tão concentrados, que nada notaram. Melhor assim. Hoje era um dia que eu disse pra mim mesma que iria convocar meu Buda e ficar bem. Buscar minha paz. Vestir a Vida e viver mais um dia, como se ele não fosse tão marcante quanto o é, de fato. Um ano, gente. Um ano. Uma volta inteira que o planeta deu ao redor do sol.

Eu não sei... É meio impossível não se deixar carregar por um sentimento não deliberável, que foi a tristeza que bateu. Sabe, eu estou bem. Acordei com "Por una cabeza" na cabeça (rs), sem qualquer explicação razoável. Nem lembro qual a última vez que eu escutei essa. Estava sendo mais um começo, de mais um dia. Aí, por um sussurro desses no ouvido da alma, lembrei. Não sou de chorar, mas chorei que me acabei antes de me arrumar.

Aí veio "Oração ao tempo", do Caetano. Veio o pensamento da inexorabilidade dele, que eu acabei compartilhando. Por mais que eu saiba que não será "possível reunirmo-nos num outro nível de vínculo", eu estou em paz. E não teria mesmo como evitar qualquer reavivamento de emoções adormecidas, se vivo num mundo hiperconectado. Como vou segurar choros e risos, se estão postando fotos dela desde o começo do dia?

E ela é linda... Meu Deus, como essa mulher era linda. Às vezes eu ficava muito besta de olhar pra Lulu e pensar: "Caralho, como assim? Essa gata é mesmo a gata mais gata circulando no mêi das gata das gata de Bacabal". E dizia isso pra velha, que se acabava de rir. Aliás, qual era a conversa nossa em que a gente NÃO se acabava de rir, né? Todos sabiam que era a prioridade absoluta pra mim, em Bacabal.

Lááá pra outra era de 2008, era uma época em que eu ainda não tinha ainda passado no vestibular. Estava melhorando de todo o turbilhão. Já mantendo-me estável por períodos longos. As crises tavam lá, mas eu já tinha internalizado o mantra do "vai passar". Eu já dormia com Lulu desde que uma de minhas primas se casou, desde os 14 anos, com poucos hiatos de intervalo. No supracitado 2008, eu lembro bem de ter começado meu diário e acordar todos os dias às 5 da manhã pra desligar o ar-condicionado no palitinho, com o olho fechado mesmo, e voltar a dormir até 11 horas. Tinha dia que aquela égua me acordava esfregando um PAU, isso mesmo: um P - A - U nas minhas ------> nádegas. Pra ver como o gene da fulerage é algo herdado mesmo. Era um pedaço de pau que ela usava pra segurar um pano que cobria a janela no lugar, naquela época.

A véia já tinha operado do coração. Tinha que fazer exercícios. Foi quando achamos que era melhor caminhar na Praça do Bom Pastor todas as manhãs. Juro, a mulher pendia tanto que parecia um pinguim ao caminhar. Nessa época, alguns bebês da família nasceram. Toda rolinha que ela via sentada na rua, dizia: "Ó o Tamuel! Ô neném bêta!". Aí ficavam as duas rindo dessas besteiras. Todo santo dia, era pra ela que eu contava os meus sonhos ainda fresquinhos. "Menina, tu ao meno ora antes de dormir? É por isso que tu fica sonhando besteira!". Nem lembro, Lulu... Eu acho que eu ainda tinha minhas conversinhas com deus. De todos os segredos, esse seria o mais bem guardado: eu não te contaria que não estamos mais, eu e ele. 

Um dia, um homem, o mais aleatório possível, passou pela gente na nossa caminhada. Ele virou pra mim e soltou: "Você vai viver muito por causa disso". Só falou isso e foi-se embora. Tomara, cara. Lulu passou o dia inteiro bestinha por causa disso. Ela sabia que era porque o cara tava me vendo ali, com ela, cuidando, sendo a bengala daquele pinguinzinho bonito.

A luz. 

Era um ser forrado de luz. Lucila. Do latim, podre de chique. Luminosa. Esse nome que tá aqui tatuado no pulso direito. A mais-que-perfeita escolha pra conjugar o verbo amar, substantivado num nome.

Muito bonito o meu amor. Muito linda. Muito perfeita. Muitas saudades. A tristeza é pela falta, mas meu coração está descansado. Eu sei que ela tinha mesmo que ir e que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Você foi, Lulu, mas você não vai nunca. Minha descendência saberá de ti. A descendência da minha descendência saberá de ti. Quem se aproximar de mim, saberá de ti.

"Saberás que não te amo e que te amo
Posto que de dois modos é a vida
A palavra é uma asa do silêncio
O fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te
Para recomeçar o infinito
E para não deixar de amar-te nunca:
Por isso não te amo, todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
Em minhas mãos, a chave da fortuna
E um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
E por isso te amo quando te amo"

(Neruda, Pablo. Poema XLIV. In: Cem Sonetos de Amor)

sábado, 23 de abril de 2016

Adventure Time

Se existe uma coisa da qual eu não posso reclamar, é de que a minha vida é sem aventuras.

Lógico, não chega a ser assim um ano de política brasileira, mas é um lance assustador a quantidade de aleatoriedades que me surgem, senão o tempo todo, mas de tempos em tempos.

Saca aquele filme que mostra o efeito borboleta? Parece que é isso que está acontecendo comigo. São várias coisas ao mesmo tempo, várias decisões que eu tenho que tomar, e que podem afetar fortemente como será a minha vida. E não falo de um futuro distante. Falo de um futuro muito próximo. É como se cada pequena decisão que eu tomasse agora, tivesse o poder de me catapultar pra destinos completamente diferentes. Isso já acontece com todo mundo, evidentemente. A diferença, desta vez, é que eu estou enxergando as possibilidades da minha tomada de decisões. Eu posso tanto estragar tudo, quanto posso ser presenteada pelo acaso. Eu posso tanto esperar pra ver no quê que dá, quanto perder oportunidades que, talvez, não apareçam mais, pra coisas que eu quero e espero há muito tempo, já.

Sei lá, cara. Cansei de esperar. Cansei de coisas irrealizáveis. Sabe aquela sensação que tem um mundo lá fora e você se enclausurou por conta das impossibilidades, que você já até sabia que eram impossíveis?

Eu tô confusa. Eu queria ser mais desapegada com as coisas, com as pessoas, sei lá. Mas é foda.

Vai dar certo. Sempre dá.

quarta-feira, 30 de março de 2016

O luto

Está chegando abril. Em maio, fará um ano sem meu amor.

Nesse ano vivido sem a pessoa que foi o meu maior refúgio no mundo, eu teimo em ser feliz, sabe? E olha que não foi pouca água derramada, nem foi pouca a tristeza das circunstâncias, da falta, da não-despedida. Eu senti muito um impacto de não estar lá. Isso doeu bastante, mas não mais que a própria perda, que seria inevitável mesmo se tudo tivesse acontecido como eu imaginei, como já vinha prevendo desde que passamos aquela noite de mãos dadas. Era notório que o crepúsculo se aproximava.

Talvez por já não ter a presença dela diariamente há muito tempo, eu me mergulhei por um tempo na boa e velha negação. Fiz o mesmo com outros lutos. Vestia a vida e ia, não como se não tivesse acontecido, mas como se não tivesse acontecido tanto. Encontrei a medida pra tentar continuar minha e vida e aguentar o peso de estar mais só, mas qual não foi essa solidão, hein?

Nos sonhos, ela sempre vinha. Ela ainda continua vindo, na verdade. O último que eu tive com ela, eu tinha a louquíssima missão de ajudar, nada mais, nada menos, um Faraó ressuscitado a encarar os dias de hoje. Aí, por ter ajudado o cabra, ele me "presenteou" com uns minutinhos com ela. Louco. Em uma das tantas casas alugadas que eu morei em Bacabal, traziam-na do corredor. Ela vinha caminhando, ladeada por duas pessoas que a seguravam até a cadeira que a esperava na pequena sala. O lugar se enchia de gente e eu arrastava uma cadeira e ficava sentada frente a frente com ela, que estava muito, muito velhinha como nem o era, com os cabelos todos branquinhos que só se vendo.

Ela olhava pra mim... Era bastante óbvio o quanto ela estava feliz por me ver. Era um sorriso tão bonito, tão faceiro, tão dela. Ela não dizia nada. Eu entendia que ela não podia. Mas eu podia.

Eu afastava meu corpo mais pra frente e dava aquele abraço profundo. Passava a mão nos cabelos dela e dizia: "Lulu, eu te amo muito. Muito!". E era só isso que eu conseguia dizer. E olhava pro rosto dela, afagava e só sabia repetir isso. Aquele abraço que ela me deu foi a única forma dela me dizer o mesmo. Que bom que os meus sonhos com ela são assim. Meu cérebro tem horas que me ajuda, compensando o que não pôde se resolver na realidade.

Quando eu paro pra pensar na Lulu, eu sinto tristeza, ainda. Eu não nego a vontade de chorar, nem as lágrimas que ainda descem. Mas eu muito mais rio do que choro. A tristeza vem mais quando eu lembro do que aconteceu, do baque, do susto, de pensar que tudo estava bem, mas na hora não estava, e que o que tinha acontecido, dessa vez, era incorrigível. Ai, um absurdo. Eu passei dias com um grito seco na garganta, que não saía de jeito nenhum. Uma pressão no peito que não achava jeito. Até que fui caminhar e numa área bastante deserta perto da minha casa e gritei. Gritei mesmo, pra caralho, deixei sair. Ajoelhei no chão e chorei até a última gota de lágrima que ainda tinha restado. Acho que o meu coração suspirou um pouco.

Nas caminhadas de hoje, de vez em quando eu lembro dela. Falo dela, como sempre falei, pros colegas de trabalho, nas redes sociais, nos escritos, e são sempre coisas boas que vêm à boca. E eu entendi que a memória dela é cada vez mais viva, mais buscada, mais feliz. Que, mesmo que ainda lacrimeje, eu sorrirei muito mais. Que o amor que a gente sentia, essa conexão inexplicável das nossas almas, não morreu. Tudinho tá bem dentro aqui. Meu amor, meu tanto amor, é minha raiz e eu vou carregar essa mulher, essa tão amada mulher, como um privilégio, até o dia da minha própria morte.

Tudo bem que você foi, sabe, Lulu? Você tinha que ir mesmo, eu sei. Eu tô aqui pra lembrar de você.

domingo, 27 de março de 2016

O tempo certo

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

(Carlos Drummond de Andrade. Trecho da poesia "Ao amor antigo")


Uma vez, uma prima minha me contou uma história, que eu já sabia, mas não sabia tanto. A adolescência dela foi pelos anos 90, enquanto eu ainda andava nos cueiros pra lá e pra cá, lá na terrinha. A época era toda diferente. A vida, na verdade, era bem diferente do que costuma ser hoje. Dos rapazes da rua, um era bastante interessado nela desde sempre, desde que todos nós podemos nos lembrar. Ela seguia numa resistência que só uma moça criada no interior sabe engendrar. O rapaz avançava, ela retrocedia, o rapaz dava em cima, ela cortava, o rapaz queria, acabou que no final, ela ficou querendo também. Eles deveriam ter, sei lá, uns 15 ou 16 anos na época. Começaram a namorar daqueles namoros bonitinhos de adolescentes. Nada do que não fosse solenemente permitido, é claro.

Numa viagem de moças da capital pra terrinha, eis que o rapaz cresceu o olho pra uma. Era bonita, charmosa, tinha aquele ar metropolitano, aquela coisa diferente. Ele não resistiu e, se o espírito não me engana, deram lá seus beijinhos. Minha prima soube. Com o orgulho próprio que corre o sangue de todos da minha família, soçobrou a fúria daquela paixão adolescente e disse adeus pra nunca mais ao rapaz genuinamente arrependido. Não houve protesto, panelaço, apitaço, greve de fome, cartazes levantados, não houve Deus e não houve diabo que a fizesse perdoar.

Os ânimos se acalmaram. Ainda eram vizinhos, afinal. Ainda tinham muitas coisas em comum. Ainda havia amor, no final das contas. Mas aquela chama, aquela coisinha que ela carregava, foi apagada com terra. Não era por falta de tentativa. Era por falta. E por mais que ela procurasse dentro de si, esquadrinhasse cada um dos muitos compartimentos do seu coração, ainda assim, não achava o que pudesse reacender o que quer que fosse. E assim tudo continuou, pro desespero do rapaz.

Anos e anos e mais anos depois, ela me conta a história. Entre risos, verdadeiramente sem rancores ou nostalgias. E me disse, quando eu ainda morava na terrinha, que mesmo com tantos anos e com tantas voltas do mundo, o rapaz ainda carregava uma esperança, mesmo que muda. E eu senti uma tristeza muito profunda por ele, porque vi que era além de orgulho o que havia ali. Era o tempo que tinha passado. Era ela que havia curado.

Desde então, eu estou convencida de que as coisas têm um tempo. Não falo de nada metafísico, cósmico, essas coisas. Não acredito que haja alguma interferência. Mas acredito piamente que coisas que deixam de acontecer no tempo que elas têm pra acontecerem, se perdem. Quando falo nisso, claro, não me baseio nessa única história. Eu me baseio em todas as minhas experiências. Vi fogueiras recíprocas serem apagadas gradualmente pelos impedimentos. Vi conexões que se perderam porque não houve coragem pra se enfrentar o medo. Vi que coisas muito lindas não aconteceram porque os indivíduos nela deixaram o tempo passar, para além da salvação.

Sou nova ainda. Apesar de já ter visto e vivido muitas coisas, tenho a plena consciência de que não vi tudo. Tenho raiva das histórias em que eu me meto, das semelhanças, das confusões. Desta vez, sinto que é pra mim que o tempo está prestes a passar. Posso visualizar, mesmo que ao horizonte e um pouco distante, isto passando. Indo embora. Saindo pela janela, como eu implorei para todos os deuses que eu conheço e nem acredito, para que assim o fizessem. Eu trabalhei pra isso. Eu sabia que era necessário, desde quando soube, desde quando as palavras foram registradas naquela telinha, comigo naquele bar, há quase um ano. Quantas vezes eu não peguei o celular pra as ler novamente? Pra me convencer, por a+b, que se pode fazer tudo o que há no mundo, menos deliberar sobre os sentimentos. Se nem os próprios, imagine os alheios.

E que estranho ver o tal do tempo passar. Que estranho saber que, daqui a pouco, a não ser que ocorra um cataclisma, eu também vou procurar aqui, esquadrinhar os meus quartos, e não vou achar. No momento, é uma mistura muito forte de melancolia e sensação de dever cumprido. Como se eu pudesse me orgulhar por ter feito o que eu pude, que eu trilhei o meu caminho, que eu sabia que seria possível me despedir sem rancores, nem mágoas, nem arrependimentos, de um sentimento meu que já não me servia mais. Que estranho saber que, mesmo assim, o amor permanecerá. Que tampouco ele será o mesmo. Não vai carregar mais aquele fado da urgência, não terá mais oportunidades de doer. E será tão, mas tão leve...

Tenho a certeza de que, em algum momento, algo vai acontecer, sabe? O inesperado é meu amigo e a minha vida é uma coletânea de eventos improváveis. E sei, do fundo do meu coração, que quem tiver a coragem de se deixar ser amado por mim.... Ah... Esse vai conhecer a felicidade.

Estou certa em minhas previsões?

Que o clichê dos clichês responda essa por mim: só o tempo, aquele tempo, dirá.


segunda-feira, 21 de março de 2016

A estranha consciência

Há algum tempo, entendi que praticamente tudo pode me acontecer. Quando eu falo tudo, é tudo mesmo. Vinha caminhando do trabalho pensando nisso. Todos dizem que é super arriscado, que eu não deveria fazer isso, que eu deveria juntar grana pra comprar um carro. Não importa muito se nem passa pelo hall das minhas prioridades. Mas, pelo caminho, e pelos acontecimentos desses últimos dias, eu fico realmente achando que estou completamente só. Exposta a qualquer tipo de coisa, desde as piores desgraças às maiores bênçãos. Que eu posso tanto ganhar na loteria, quanto ser atropelada por um carro e morrer na hora. A minha vida pode simplesmente se esvair, a qualquer tempo, sem explicação. Que eu estou sujeita ao que todos estão. Às doenças incuráveis, a que um raio me parta o corpo, a que um assalto me custe a vida. Não há nada de inaceitável ou mirabolante nisso.

Mas, incrivelmente (ou não), essa consciência não me amedronta a ponto de me fazer deixar de viver. Aliás, não me amedronta em quase nada, eu acho. Carrego, claro, os meus temores, mas todos eles são normais. Já não me levam a lugares ruins. Só me fazem estar completamente ciente de que eu sou alguém e que o acaso pode simplesmente se descuidar de mim. Posso muito bem levar uma topada e arrancar a unha do dedão, como posso cair de mau jeito e quebrar o pescoço. É, caras. Acontece. Não tem gente que morre porque entalou dum caroço de ervilha? Então! Mesmo sabendo que tudo isso pode me acontecer, eu continuo caminhando pra voltar do trabalho. Se as coisas acontecem, a minha liberdade não “aconteceu”. Tive que lutar por ela em várias frentes e ainda continuo. O medo existe, mas a necessidade de promover paz pra minha cachola ainda é maior que ele.

Porém, se há essa parte pessimista deste tipo de pensamento - mórbido, até! -, há também a parte positiva disso tudo, que cada vez me acompanha mais. É de que, na mesma medida que me podem acontecer coisas ruins, podem também me acontecer coisas boas, muito boas. Assim, inesperadas. E se as coisas podem simplesmente acontecer, não faz muito sentido eu não tentar que elas aconteçam, certo? Por que ter medo de concorrer a uma bolsa, por exemplo, se aquilo precisa ser de alguém? Otimismo seria conferir os números da mega-sena sem nem ter jogado. E, pra falar a verdade, todos os sonhos sonhados até aqui, os maiores, os mais difíceis, os mais inconcretizáveis, foram realizados. E eu me sinto muito orgulhosa da existência, ainda que ela não contemple todas as expectativas que eu fiz quando eu tinha meus 15 anos. Se a vida é moinho, eu já fui moída várias vezes por ela. É preciso respeitar a minha história e ser orgulhosa dela.

O que eu quero dizer (eu acho), é que a vida é sujeita. Sei que coisas ruins podem me acontecer, porque isso também fez parte da minha experiência. Então não é plausível que eu, deliberadamente, ignore estas opções. Mas não pense o leitor que é do meu feitio me fiar nelas. Não. Se o acaso me levar, levou. Se as merdas acontecerem, eu vou lidar com elas. Não vai ser tão de boa quanto soa este pretensioso texto, mas é só nisso que posso pensar. Funcionou, até agora, repetir e internalizar o lance do “vai passar”. Saber que te podem acontecer merdas e coisas muito massas, te deixa até mais preparado pra tudo. Nada é absurdo. Alguém aí entende o que eu quero dizer?

Sabia que apenas uma parte ínfima do espaço ao redor do nosso planeta é vigiado? Isso quer dizer que, literalmente, a qualquer momento, pode aparecer um meteoro tão gigante quanto o que dizimou os dinos e mandar todo mundo pras cucuias. Isso aí mesmo. Mas, por alguma razão, eles vêm pequenos demais e caem nos oceanos, assustando alguns peixes, ou dão aquela desviada da rota de colisão. Não vai rolar o Independence Day tão cedo, galera. Dá pra sossegar quanto a isso.

Talvez eu só tenha encontrado alguma medida pros meus medos e frustrações e colocado eles na condicional. Talvez tudo isso seja um escapismo louco. Talvez eu tenha achado alguma resiliência depois das porradas da vida. Vai ver ter lido Pollyanna quando eu era criança tenha dado birolha no meu cérebro. Um monte de talvezes aí que eu, juro, não sei responder. Mas o que eu acho é que essa porra dessa vida, mesmo tendo experimentado o que ela tinha de pior pra oferecer, ainda vale à pena. O que eu tenho certeza é que eu estou mais tranquila. Ainda se escutam músicas, ainda se bebe, ainda as crianças riem, ainda os casais fazem amor.

Tudo tende ao caos. Tudo tende ao equilíbrio.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Cólera

De repente, me deu uma vontade danada de escrever até as mãos rasgarem. Até meus pulsos deslocarem. Até dar LER na porra toda. Até os dedos racharem. Até que eu saiba que tudo, tudo isto é um grande desvario de gente louca. Que os céus se varram em tempestades e sequem as águas do mar e tudo o que nelas há. Escrever até um furacão me levar daqui e me deixar bem longe, onde nada disso importa, e tudo será um passado que eu não lembrarei mais.

Quero escrever até sair a minha alma do meu corpo. Quero me ver sentada, furiosa, séria, ignorante, BRUTA, no meio de todos os destroços que virará este lugar, ofendendo a quem se aproximar de mim, xingando até que todos despertem na madrugada e gritando, berrando, obliterando todo o ódio que carreguei no meu ser até hoje, desde e sempre e para sempre.

E que se dissolva corpo ser alma flor o de bom e o de ruim em palavras, porra! E que eu mande este medo, este anseio, este ardor para o quinto dos infernos, para o raio que o parta, para o diabo que te carregue, para a mais longíqua puta que nos pariu a nós todos.

Não quero. Não sei se quero escrever. O que eu quero é gritar as palavras infames que guardo nas caminhadas, que não saem, que me revoltam. Gritar pros infelizes dos carros pra tirarem aquelas merdas da calçada, que eu existo, caralho! Eu quero voltar na porra do tempo e entregar a merda dos cinquenta reais que tinham na minha bolsa pro cara que tava revirando o lixo logo na porra da porta do meu condomínio. 

Quero que se foda a quem quero que me foda com fúria e desejo, na minha cama, todos os dias, todos os respiros, todos os ais, em todos os toques que me dou, como se fosse matar esta tara permanente e ácida que já me enerva os sentidos, e que eu sei que não vai. Quero dizer que já não aguento mais, por favor, dê logo um jeito nisso. Cure isso. Enfia. Eu estou quase implorando, molhada, apertando as pernas por baixo da mesa.

Eu quero escrever até que não sobrem mais restos do que escrever. Até que o mundo se desintegre, que nossas partículas nos consumam e que nem vidas futuras, nem as passadas, existam. Que toda a História humana, do mundo, do tempo, não passe de uma partícula tão minúscula, mas tão minúscula, que seja chamada novamente de Universo.

Eu quero escrever até descer o sangue.



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

"Caindo a noite, me lanço no mundo..."

Momentos únicos de liberdade. Ah, eu nunca mais tinha tido.

A última vez que consegui sentir absolutamente livre de tudo e de todos, eu estava fazendo 25 anos. Era um dia que aqui na terrinha, a gente acha frio. Mas pra lá, pros cantos do Sul, era quente. Não faz tanto tempo assim, mas o muito de coisas que sobreveio depois disso, me fez sentir uma sincera falta dessa sensação.

Lá vou eu pro carnaval de Recife e Olinda. A primeira vez que eu pisei nesse carnaval, em 2014, "meu coração chega bateu", como diz a criança assustada. Foi amor à primeira vista. Todo o desgaste físico de se estar pulando freneticamente, subindo ladeiras e andando, durante o dia, e de se caminhar horrores, pular durante horas (parada), vendo show dos maiores nomes da música nordestina e brasileira... Ah. Foi demais pra mim. Eu pedia pra voltar. Minha alma pedia pra voltar.

Com todas as dificuldades próprias de minhas viagens, não foi fácil. E se eu não conseguisse a folga na quarta-feira de cinzas à tarde? E se não tivesse ônibus com horários viáveis? E se a grana tivesse pouca pra alugar uma casa? E se... E se... E tanta coisa, minha gente.

Apareceu jeito. Ônibus pra depois do trabalho. Chefe que liberou. Casa pra ficar. Pessoas pra estarem comigo nas 18 longas horas de viagem. O cansaço, ao final, era tanto, que eu me perguntei mesmo o quê que eu tava fazendo. Moça, o estilo de vida não tá te dando mais aquela vitalidade toda não, tá sabendo, né?

Passando por cima de tudo isso, fomos. Eu mais quatro amigos, todos queridos, todos amados, todos bons. Depois do banho e da viagem de uma hora de Jaboatão dos Guararapes pra Recife, pisei no Recife antigo, caminhei pro Marco Zero e senti de novo a vibração. Mas ainda não tinha sentido toda.

Antes de ir, levei as três mangueiras compradas pela monstruosa quantia de 12 reais, pra vender nas ladeiras, como da vez passada, uma por dia que eu ficaria por lá. Vendi tudo, mas meus amigos estavam cansados e, de verdade, eu sabia que a vibe deles não era a mesma de quem gosta mais de Olinda. Aquilo acabou me afetando. Ainda não tinha sentido tudo.

No outro dia, foram ao mar, sem mim. Eu tinha que encontrar os amigos que se hospedaram em Olinda. Armada com as armaduras de São Jorge, fui. Sabia que a multidão estaria ensandecida, que seria perigoso, que se não desse certo de nos encontrarmos no ponto marcado, eu estaria completamente entregue à minha própria sorte. Como sempre.

Tentei, com toda a minha força, tentei. Mas fui parar em um lugar muito longe do meu ponto de referência e a quem eu perguntava, a informação era diferente. Ia e voltava que nem uma barata tonta e a multidão não dava trégua. Até que depois de perguntar ao último vendedor de cerveja, e de ele muito me explicar, e eu de pouco entender, pensei: "É, cara. Não vai rolar. Vou curtir mesmo meu carnaval só". O vendedor me deu uma cerveja de graça, mesmo eu insistindo em pagar, só pra que a decisão começasse bem. Agradeci com um sorriso e com uma dose gratuita de mangueira. Eu senti minha sorte mudar. 

O bloco passou e eu fui junto. Já escurecia na bela Olinda e já não havia medo em mim. Nada, nenhuma réstia. Como carregava uma plaquinha que dizia: "Venha provar o sabor do Piauí / Dose: 2,00 R$", as pessoas me paravam o tempo todo. Queriam ler o que dizia a diaba. Uns achavam que o que custava dois reais era eu, o meu beijo. haha Não. Não me ofendia com a confusão. Tudo era propositalmente metafórico mesmo. As pessoas ficavam impressionadas. Elas queriam a cachaça. Elas queriam saber. Elas pediam pra tirar foto. Elas pediam pra que eu provasse antes. Elas faziam careta e diziam que era horrível, que descia rasgando. Elas diziam que era fraca, mas de primeira. Elas diziam: "bota logo duas, já tô fudido mesmo".

Subi o Alto da Igreja da Sé, pra ver o pôr-do-sol mais lindo. Já estava meio bêbada, de tanto provar as mini doses pedidas pelos "clientes". A sensação daquilo não foi normal. Avistei o único espaço vazio que havia na muretinha e caminhei até lá. Senti o vento no rosto. Um homem que estava do meu lado,  mas ainda um pouco distante, falou: "Lindo, né?". Eu disse que sim. Ele me instigou a sentar à beira daquele precipício de uns 3 a 4 metros e eu, morta de medo da altura, disse que não conseguiria. Coloquei uma perna. Ele disse que me ajudaria. Mas sozinha mesmo, sentei com as duas pernas pra fora. Ele começou a dizer que ele morria de medo do filme do Edward mãos de tesoura, mas que quando tinha dez anos, decidiu que ia ver repetidamente, até perder o medo. Hoje, é o seu filme favorito. E eu disse que também tinha estado com medo de estar ali "só", mas que estava sendo o meu dia favorito.

De repente, me vi. Eu estava só com a parte de cima do biquíni, com uma placa sugestiva, com uma garrafa de mangueira numa mão, um copo de dose em outra, a blusa amarrada no short, com várias cédulas de dois reais no bolso, levemente bêbada, acompanhada temporariamente de um desconhecido, vendo um pôr-do-sol mágico, sentada com os pés pra fora de um precipício. Gostei do que eu vi. O quadro ficou bonito, como é bonito um beijo coroado.

Passaram mais blocos. Passaram mais gentes. Gentes que me viam e riam e pulavam comigo. Gente do Piauí que começava a gritar. Gente de outras terras que dizia "mas era melhor cajuína, moça". Senti. Acompanhando o último ou penúltimo bloco, ao ouvir aquelas marchinhas de carnaval das antigas, eu senti. Estava maravilhosamente abençoada pelo frevo, pelo vento, pelo tempo. Os olhos enchiam constantemente de água e todo o cansaço ia embora quando as mãos se levantavam pra acompanhar o passo do tocador.

Senti-me cuidada pelos meus amigos. Senti-me cuidada até pelos estranhos, como na hora que eu dizia que estava perdida, e eles diziam, muito de boa, que eu poderia me juntar a eles. Senti que eu posso esperar ainda as muitas surpresas da Vida. Não preciso me preocupar, Ela se encarrega de mim. Mais uma vez, com todos os aperreios próprios a que se emblematiza a minha existência nesta Terra, eu posso confiar de que eu ficarei bem.

O muito de vida que me correu não sairão em todas as palavras que poderiam. Não. Deixa elas aqui. Eu cuidarei bem de todas elas.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O tal do diálogo

Uma das proposições do âmbito pessoal mais firmes que eu tomei para este ano, era de que eu me predisporia mais ao diálogo. Tanto nas minhas questões próprias, como nas minhas relações com os amigos, quanto nas diversas profissionais que adquiri na segunda metade do ano passado pra cá, o desafio diário é me manter serena, mas firme, quando algo conflitante vir à tona.

Meu temperamento é conciliatório. Mesmo. Não sei creditar se isso é algo da minha natureza, ou se é resultado de uma carga idiota de ansiedade que me vem quando estou em uma situação conflitante. Não só o conflito em si, mas quando eu sinto o cheiro da injustiça, seja em mim, seja nos outros. O desafio, quando sou forçada a enfrentar essas situações - e cada vez me surgem mais! - é me manter no eixo. Em um estado equilibrado em que eu posso ouvir e falar, escutar acusações e me defender, ou mesmo acusar e ouvir as defesas. A questão também vai além da minha individualidade. É cada vez mais difícil ouvir palavras alarmantes de gente que você ama e quer bem. Até porque levei bem à sério de que tudo o que me era tóxico deveria ser eliminado sumariamente da minha vida. Por um tempo, isso foi verdade. Mas o negócio é que o buraco é bem mais embaixo quando se é adulto e se tem novas responsabilidades, das quais você não pode esquivar.

De verdade, não tenho mais paciência pra gente babaca. Mas a outra verdade é que gente babaca está aí no mundo, pensando e produzindo babaquices à torto e à direita. Aos desonestos intelectuais, fascistas e idiotas pedantes que se acham a própria piroca do Kid Bengala: meu nojo, mas não a indiferença. Eu sei o quão é devastador o efeito que ocorre quando as excrescências abrem a boca. Essa merda é antiga e, por isso mesmo, muito mais fétida. Pra mim, essa galera que usa a mídia pra pregar o mal precisa é ser combatida. É você pegar um Bolsonaro desses de calças curtas, provando ponto por ponto, como o seu discurso é ignorante, como naquele vídeo que a Revista Nova Escola fez pra provar que ele mentia, nas redes sociais.

Talvez, por isso mesmo, resolvi me abrir verdadeiramente ao diálogo. Que seria tentar entender que as pessoas estão em processo de crescimento (todos nós!), e que muita gente nunca foi e dificilmente será apresentada a contrapontos de conceitos que já estão solidificados há trocentos zilhões de anos em suas cabeças. O diálogo não é calar diante das coisas. Claro, em alguma medida, precisa haver o silêncio para que se possa ouvir o que o outro tem a dizer e, principalmente, o que o leva a dizer aquilo.

Pra sair da divagação, um exemplo prático:

Estava no trabalho, na escala do plantão. Um rapaz que começou na empresa há pouco tempo falou daquelas coisas que vai no meio do juízo de qualquer feminista. Não lembro bem o porquê, mas toquei no assunto da violência doméstica. Ele disse, com a sua voz baixa, que "parece que tem mulher que faz é gostar de apanhar!".

Oxalá já seja ao leitor (?) bem clara, a obviedade do erro na frase. Mas entendi que, praquele rapaz, era muito lógico afirmar isso, já que, ora, como pode uma mesma mulher apanhar por anos a fio e "aceitar" calada àquela situação? Só pode é não achar tão ruim assim, não é mesmo?

Se fosse há um ano atrás, esse rapaz teria se arrependido da graça. A voadora ia ser bem no mêi dos peito, pra ele aprender. Não foi assim, no entanto. Fui explicar que não existe isso de mulher que gosta de sofrer violência doméstica. O que existem são mulheres que são pobres demais pra prescindir do sustento financeiro do companheiro, ou que são ameaçadas constantemente de coisas piores, ou mulheres que já estão tão arrasadas psicologicamente, que acham que realmente fizeram por merecer o castigo físico e psicológico que recebem. Ele disse, meio envergonhado: "É mesmo, né?". 

O caso é que ele iria aprender mesmo, se eu tivesse dado a voadora: a não expôr mais, talvez só na minha frente, o seu machismo, o seu senso comum. Identificar uma situação que pode ser didática sempre será melhor, pois pode refletir em um aprendizado real. E não, não estou cobrando paciência de ninguém. Cada um sabe de si e eu compreendo que existem situações muito mais difíceis e traumatizantes pras pessoas que passaram. Se eu já tivesse sofrido violência doméstica, não iria garantir tanta paciência assim, por exemplo. Mas sim, me sinto à vontade pra apontar que certas coisas não são estratégicas e que podem gerar muito mais atrito e separação do que o crescimento das pessoas envolvidas na situação. O caso do rapaz da empresa é bem diferente do taxista que falou as coisas mais horríveis sobre mulheres que têm vida sexual ativa, pra mim e pra duas colegas. Ali, realmente, foram necessárias respostas fortes, até pra ele pensar duas vezes em dizer de novo aquelas merdas por aí.

Repare bem: não estou dizendo aqui que discursos de ódio devem ser tolerados, nem tô passando paninho pros "frutos da sociedade" degenerados por aí. Isso daí, inclusive, tem que fazer é barulho mesmo, juntar forças, buscar reparação judicial, etc. O que eu digo é que é preciso saber diferenciar o joio do trigo. Eu estou realmente de muito saco cheio do binarismo, da briga esquerda x direita, dessa mania chata de se achar superior e achar que o outro é um completo babaca, se não pensa i-gual-zi-nho à você.

Sacar que o lugar de fala é importante não te faz complacente com nada, só te faz mais útil à qualquer causa que você apoie e também protege a sua sanidade mental. Se você tem argumentos, não precisa temer o diálogo com quem também se mostrou aberto a ele. Claro que outras questões também estão imersas. Por mais argumentos que eu tenha, talvez eu seja silenciada quando falar com alguém que tenha uma autoridade institucional maior que a minha. A vida é bem mais escrota mundo afora. Por isso mesmo, identificar o lugar de fala é imprescindível. Conhecer o lugar em que você está na ciranda, te faz enxergar tanto as suas suscetibilidades quanto os seus privilégios e te faz identificar onde você precisa se fortalecer.

Voltando ao começo do texto: tenho várias destas suscetibilidades. Já sofri por não poder me defender e vou ao último dos infernos todas as vezes que percebo que estou sendo feita de otária. Estou me fortalecendo para o diálogo mesmo, no sentido de também conseguir falar e expôr as minhas opiniões de maneira concatenada, como sei que consigo.

No mais, fica a dica™ de que o mundo não está tão dividido quanto a gente imagina. O cara que passou na televisão porque salvou o bebêzinho de morrer afogado é o mesmo que colocou veneno na carne e deu pro cachorro do vizinho, que latia demais. O cara conservador que disse, na sala de aula, que cotas pra negros é racismo reverso, foi o mesmo cara que decidiu sair do armário e assumir o namorado em uma família três vezes mais conservadora que ele. O mundo não é binário. Não somos duas massas amorfas guiadas por um pacote ideológico fechado, uma lutando contra a outra. As coisas e pessoas estão bem mais imbricadas do que é útil a quem não interessa o diálogo.

Como disse, esse é um propósito. Algo que estou trabalhando, aprendendo, mudando. Vejo os frutos graduais, como a melhora das relações com meus pais, só pra citar um dos exemplos. Olhar pra quem eu era há seis anos também me faz querer conversar mais. Quando eu puder, é claro. :)


Update: A ironia deste texto é que, no último, mandei até o povo tomar no cu. hahaha Mas tô chamando pro diálogo, não pra ser o Dalai Lama.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Os meninos sujos

A pobreza me assusta. Nem sempre foi assim.

Eu ainda me lembro da primeira vez que me dei conta da pobreza. A escola que eu estudava mudou todos os livros didáticos e tivemos um livro de História mais atual. Eu devia estar na 4ª ou 5ª série do Ensino Fundamental, quando abrimos bem na página que tinha uma figura onde dois meninos negros estavam sentados no chão, sujos, com instrumentos nas mãos. Qual não foi a surpresa quando vi a seguinte legenda na foto: "Meninos quebram coco-babaçu em Bacabal, no Maranhão". Foi chocante. A pobreza sempre esteve ali, perto de mim, mas nunca ela tinha sido apontada dessa forma. Sempre caíamos nos clichês de achar que a miséria só existia na África. Um continente inteiro convertido em uma massa amorfa de gente que só tinha direito ao destino de passar fome e morrer de Aids. O malfadada única história. A versão de fora. Os missionários vinham dos países da África subsaariana  pra minha igreja e atiçavam a minha imaginação de como era viver com o nada. O terrível era lá, só lá.

Aquela fotografia me marcou. Mesmo não sabendo de conceitos que só fui internalizar anos mais tarde, comecei a pensar sobre a naturalização da pobreza. Sobre como tinham as pessoas que nasceram sem sorte e as que nasceram com sorte. Pra quem eu era naquela época, pensar isso era um grande coisa. Minha educação foi religiosa do começo ao fim e os contrapontos que eu tinha, eram de uma exploração glutona da literatura, que eu conseguia arranjar nas bibliotecas da vida. Aquela cabeça de criança viajava demais.

Vieram as histórias e as descobertas: a atividade de quebrar o coco era perigosa, afinal. Inúmeros acidentes já aconteceram, de pessoas que ficaram cegas porque uma lasca escapou ou por terem se cortado com os instrumentos rústicos de trabalho. O sol castigava. Os pulmões saíam maltratados. O couro ficava grosso. As mãos, repletas de calos. Aí fiquei sabendo que o vizinho da Lulu, mais velho do que ela, tinha ficado cego por conta de uma lasca que tinha atingido um de seus olhos. O outro olho ficou cego por causa de outra desgraças dessas, que já não lembro mais.

Desde então, a pobreza me doeu. Por que eu entendi que era pura e simplesmente uma questão de sorte, como disse antes. Que eu poderia estar facilmente no lugar daquela menina desgrenhada que, como fazem em Bacabal, saía da periferia caminhando pelos bairros da cidade, com um saco plástico, pra quem pudesse, colocasse um pouquinho de arroz ou qualquer outro mantimento não perecível. Foi nessa época que uma menina apareceu lá em casa e sem ninguém perceber, peguei um vestido meu e dei pra menina. Ela ficou sem acreditar. Peguei uma surra por causa disso.

E vem uma bile na minha boca, toda vez que algum imbecil tenta relacionar a pobreza com simplicidade. Ser simples é uma coisa. Ser pobre é outra, completamente diferente e horrível. Os caras querem porque querem transformar pobreza num valor, porra! Me diz que merda de simplicidade é essa de viver de preocupação em preocupação, sem saber como vai pagar as contas, sem saber como vai colocar comida na boca dos filhos? "Ahhh, mas a vida simples do homem do campo, sem preocupações mais que a colheita...". O caralho. O caralho. Quando isso? O quê que isso tem de simples? Metade desse planeta tem menos pra viver do que necessita e tem muita gente por aí enfiando a mão, literalmente, na merda pra sobreviver. Automatização de uma rotina também não quer dizer simplicidade.

E eu fico pensando o quanto nós, seres superiores da classe média pra frente, achamos que os nossos problemas são maiores dos que os dos quem vivem com menos que a gente. Só nós temos problemas existenciais. Só nós procuramos o sentido da vida. Só nós sabemos o que é certo. Só nós entendemos o significado das palavras rebuscadas. Nós não somos simples. Os nossos problemas não são simples. Os deles são. Eles são simples. Eles não têm aquela complexidade humana marota e ishperta que nós temos.

Antes de ontem conversei com uma senhora, em um interior do Piauí. Uma lavradora. Se tem uma coisa que ainda me anima nesse Jornalismo, é essa ponta da cadeia. Ela me contando que acorda cedo, de madrugada ainda, pra regar as plantas da horta pequena que tem. Que quando sai de lá, tá com o juízo o tempo todo "na minha hortinha". O sustento. Vieram todos esses pensamentos comparatórios. Não tive pena daquela mulher. Apesar da rotina dura, não sugeriu em nenhum momento que passava necessidade. Claro que ela estava maltratada pelo sol, claro que a rotina era dura. Mas, por acaso, a minha rotina também não é automatizada? Não estou o tempo todo preocupada com meu trabalho, mesmo que não queira? Não estou também eu com as mãos calejadas? Ela me disse que era feliz e eu acredito. Ninguém melhor pra dizer o que é do que a própria pessoa.

Não, não estou cometendo o crime de comparar diretamente a minha atividade com a dela. A minha situação é, obviamente, bem mais privilegiada, mas por uma série de outros motivos que vão muito além do meu esforço pessoal. Conversar com ela me lembrou que esse lance de simplicidade que o pessoal insiste em associar à pobreza é uma bobajada sem fim. Absolutamente NADA do que nós conversamos me deu qualquer indício pra intuir se aquela mulher vive uma vida simples ou não. Por mais que nós tenhamos conversado amigavelmente por um tempo e ela tenha me contado parte da sua rotina, eu tenho a total consciência de que não a conheço.

Se a pobreza não é boa nem simples, o estigma também não. O ceromano não vive sem rotular, identificar, eu sei. Superar as identidades... Sei lá. Seria uma superação de algo que eu nem posso definir. Porra, mas ficar nessa de pobre burro-bonzinho-vida-simples-e-boa-que-ah-se-eu-tivesse???? Vai tomar no olho do cu.

Com areia.


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O ano dos abraços

Nunca foi tão visível a necessidade de abraços.

Talvez, dentre os que tenho memória, esse foi o ano em que eu mais precisei deles, já sendo grande, tendo a consciência plena de seus efeitos. E fui abraçada por tudo. Seguraram meu peso por morte, solidão, amor, desgraçamentos gerais, amizade, alegria, felicidade e, desconfio, em grande parte, por eu carregar um rechonchudo par de seios. Sim, teve tudo isso.

Nessa semana, me abraçaram espontaneamente. Viram-me, entenderam e abraçaram, como os amigos fazem. E eu lá, emocionada entre tanto carinho gratuito aliviando aquelas necessidades, entre tanta vida que surge do nada na vida da gente.

Claro, vários abraços me faltam. Um em especial, pra sempre. E não haverá que o iguale. Mas vou abraçando o mundo e as gentes como posso, recebendo o amor daqui e dali e forrando meu coração para o muito de vida que ainda há por vir.

Que o novo tempo seja bom. Que o que já se faz velho, dê lugar ao novo. Que não me faltem os abraços e que eu precise deles por melhores motivos.



terça-feira, 24 de novembro de 2015

O amor descansado

Ontem, depois de rodar a cidade com amigos, fui bater na casa de outro. Estamos todos sempre tão ocupados, tão sem dinheiro, tão fisicamente distantes, que o abraço é um alívio. A necessidade não é compulsória, nem sofrida. Saudades tão ali o tempo todo, só basta lembrar. Mas é gostoso deixar rolar.

Há muito tempo atrás, no que se parece com outra era, foi desses amores bonitos, cheio de vida, de cores, de efeitos, mas tão complicado...  Tão... Jovem, sabe? Eu era pressa. Ele era medo. Eu estava nos tempos das primeiras coragens. Eu tinha ânsia pra enfrentar aquele medo paralisador. E os jovens se viram, se reconheceram, se amaram. E, por mais que o mundo tivesse mudado e muito, nunca deixaram de se amar.

Amor chama. Abraços e carinhos são permitidos. Danças coladas, sentindo o cheiro do pescoço também. Nada disso é pesado. Nada disso nos tira a paz em que nos assentamos. Nada disso dá vontade de reviver o passado, ou nos traz lembranças sombrias. O toque é bom e vai continuar, mas ele é claro. Sabemos o que são os pactos iniciais. Lemos Kundera. Entendemos o que são as nossas coisas.

E tudo o que ficou foi o amor. A coisa é tão assim que eu posso chegar e dizer sem avisar: vou dormir aqui e pronto. E dormir mesmo. Uma coisa tão boa, que se pode até discutir o passado, analisar os fatos, nossas incongruências e entendê-lo, com respostas mútuas, da maneira que a gente pode. E tudo bem.

E nessas conversas, sempre os nossos novos amores entram em cena. Os recém-acabados, os impossíveis, os idealizados. Os de um lado, os de outro.  E conversamos sobre aquelas pessoas, segurando nossos próprios corações em uma das mãos, e com a outra, a do outro, pra não deixar vacilar. De toda minha alma, a pergunta que eu fazia ao lembrar do novo, era se um dia poderemos viver isso que eu e esse amor do passado vivemos hoje.

Fomos juntos, com o que nós conhecemos um do outro, olhando as situações e ajudando a encontrar as respostas. Duas da manhã, o cansaço, o vento, a terra e as plantas, mas ninguém parava de falar. Entender era sempre melhor.


O certo é que aquele amor é sempre. Mesmo que a vida vá e volte, rode, mude, desfaça, faça, ande, tropece, caia, levante, acenda, apague, morra ou viva. Sempre. Porque aquele amor é amizade amada. O poeta disse e eu sei que é: do tipo de amor que nunca morre.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

"Eu sei, eu sei, eu sei..."

Quase seis meses e uma chama acesa o tempo inteiro.

Chama. Meu pensamento chama. Em um minuto, trago a história de novo pra dentro de mim e a faço renascer, como se nunca tivesse ido. Eu olho pra ti, Lulu. Sou perfeitamente capaz de escutar tua voz, é só lembrar. Eu consigo te captar no olhar. Sinto o teu tato. Sinto o carinho que tu fazia nos meus cabelos. A voz brigando, brincando, amando. Eu te sei.

Por ti, há uma paz. Não sei explicar. Se tudo estiver bagunçado, volto ao refúgio do teu colo e lá me embalo. As músicas de amor que falam de saudades da paixão, já não me tocam por ela, que resiste. Tocam-me por ti, que existe. "Só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você". Ainda que o mundo se acabe. Ainda que se apaguem os teus registros. Ainda que a tatuagem com a tua letra se desmanche. Eu sempre vou lembrar de você, Lulu. E sempre vou sentir a falta mais terrível do teu amor, mas serei eternamente grata por ter podido desfrutar dele.

Caminha em lembrança comigo, Lulu. Tá muito difícil. O mundo é mau e eu me sinto só. Às vezes eu tenho medo que uma chama, que não é a tua, se apague. Que eu me deixe envolver pelas agruras da vida e pare de olhar pra frente.

Improvável que isso aconteça, eu sei. Eu só escrevo isso porque eu me sinto cansada e o caso é que eu me sinto cada vez mais. O soldado cansado também há de lutar. Ele não é fraco, ele está apenas cansado. Lutar cansa.

Já que lembro, volto. E como entendo, sigo. E já que sigo, vou. E dou-me o descanso das risadas, dos amigos, da alegria no peito, das caminhadas, das canções e dos abraços.

Enquanto isso, o coração parece que vergou de novo, coitado. Mas, também... Pudera. Tantas batidas, tanta inclemência, tanta responsabilidade em bater tanto, de maneira tão forte, em cima do pobre...

As coisas são impermanentes. Eu, como meu coração e tu, pelo teu coração. Mas se somos impermanentes, não somos inconstantes.

Como alguém pode estar tão triste e, ao mesmo tempo, em paz? Eu não sei. Mas é essa a mistura que eu consigo explicar. Sempre haverá o amor. Lembrar disso, afaga.

Segura na minha mão e vamos.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Dias e dias depois

Esse post é pra me lembrar: você ainda pode. Coisas loucas estão à tua espera.

Tinha trabalhado. Era feriado, mas tinha trabalhado. Nessa de trocar plantão de novo, por causa da prova do ENEM, acabou que eu tô trabalhando naquele ritmo insano de novo, com mais dias ainda sem folga. Mas vai que, né? O imprevisível ainda é muito bonito também.

Tinha voltado do trabalho. Garganta inflamada, mas sem rouquidão, o que é estranho. Um calor imenso na parada, mais de uma hora de espera pro ônibus passar e uma sensação de estar sendo queimada em vida. Cheguei em casa cedo. Uma ligação de lá distante me acorda pra vida e diz: "Garota, e aí? Cadê aquele milheiro de planos que você tava aí na cabeça? Onde estão?", enquanto eu dou minhas desculpas dizendo: "Vão dar certo. Eu só não sei direito como, moça". Claro que quis dizer: "Estou cansada", mas a moça falava um português diferente do meu. Talvez não entenderia.

De tanto calor que entrou na minha cabeça, me empertiguei. Saí do quarto quente e fui tomar a única cerveja da geladeira na tão amada pracinha. Saí pensando nas possibilidades que sempre me passam quando vou pra lá: os medos acompanhantes. E eles me fazem lembrar que tenho que ir devagar com meu andor, que meu santo é de barro. Mas é lembrando mesmo que meu santo é de barro, que eu também me lembrei que ele sempre andou no sol quente. Barro no sol, endurece, fia.

Dois rapazes estavam na pracinha conversando. Quando me aproximei, eles pararam o que estavam falando e me fitaram. Sentei no outro extremo da praça, como se não tivesse percebido. Lamentei que estivessem lá, mas dois minutos depois, esqueci que eles existiam. Daí a um pouco, passou um rapaz que eu conheço um pouco o rosto. No muro de uma casa frondosa, em frente à praça, havia uma pichação numa letra linda: "Já foi um sonho". Fazia sentido. O que já havia sido um sonho pra mim? Muitas coisas.

Não era a pichação completa no muro grande e frondoso. O rapaz, catando a oportunidade da praça "vazia", desviou o caminho rapidamente. Confiou em mim e nos rapazes, de que não faríamos nada pra impedí-lo. Bom, dito e feito. Na outra metade do muro pichou, de trás pra frente: "Tudo o que é real". Eu comecei a ler a frase toda e não acreditava muito no que via. Não é sempre que eu flagro uma pichação e muito menos uma que faça tanto sentido.

Ao terminar a obra, claro, o rapaz saiu quase correndo. Eu o observei atentamente, os outros dois rapazes também. Em menos de dez minutos, duas pessoas saem da casa. O muro pichado foi o lateral, não o frontal, mas mesmo assim eles estavam putos! Entendo essas pessoas, mas não seria assim se fosse comigo. Ficou uma coisa tão bonita, sabe? Eles estavam enfurecidos! Eu estava a 60 metros deles e ouvia claramente coisas como: "Tá gravado! Ele vai pagar! Ele vai pagar!". E o que o rapaz queria era dizer que sonhos ainda valem à pena. Que coisa.

Não demorou muito, uma mulher de meia-idade fazendo caminhada, passa por mim e solta: "Tu conhece aquele rapaz que tá na moto?" (Um dos rapazes da pracinha estava, de fato, com uma moto estacionada perto dele). Ao que eu respondo: "Não, não conheço". Ela me diz, simples e calmamente, que ele era muito lindo e que eu deveria ir lá conhecê-lo!

Foi aí que eu lembrei novamente das aleatoriedades da vida e dei um sorriso, já meio ébrio.

A confusão esfriou. Eu até olhei pro lado, pra ver se o rapaz da moto era bonito mesmo ou se era só a mulher querendo ser aquelas cupidas de novela. Não consegui virar todo o pescoço. Estanquei no meio. De alguma forma, preferi aqueles momentos de solidão arbitrária que estava vivendo ali. Preferi ver a pichação pronta, que foi pintada de branco dias depois, que dizia uma grande verdade: "Tudo o que é real já foi um sonho".

DIAS E DIAS DEPOIS DO COMEÇO DESSE TEXTO:

E hoje, dias e mais dias depois do começo desse texto, que eu já nem lembro quando comecei, eu preciso lembrar. Fazer os exercícios da memória já conhecidos. Agarrar-me à lembrança, que é o único que eu tenho.

Entre milhares de desafios, a vida volta e meia me aparece com mais novidades. É um coração danado, esse meu. Ou 'dañado', como dizem os hablantes.

E aí, lembrar é um dever. Dentre as opções, a opção. Mas lembrar de quê, menina?

Da viagem de volta. Ou melhor, do lugar da volta. A paz.

Ir da paz é ruim, mas nem sempre é possível ficar nela. O exercício de imaginação é tamanho. Imagine ter que imaginar algo que é abstrato, só que sem senti-lo? Estar fora da paz é o dissonante e ensurdecedor. Falar, às vezes, não adianta. A memória é o que me salva, eu acho.

Estar na paz é bom. Mas ainda que eu não tivesse nada do que eu 'tenho', a paz sempre será um estado. E me repito e repito e repito aquilo que escrevi no caderno número 3 ou 4: zelar pela paz, em primeiro lugar, dentre todas as coisas. Já que, dentre todas as coisas, é a que mais faz falta quando se vai.

"Tudo o que é real, já foi um sonho".

"Perder-se também é caminho".

***

terça-feira, 6 de outubro de 2015

"...Mas eu sei que alguma coisa aconteceu"

Eu não lembro mais de tudo, então pode ser que algumas coisas se completem com a imaginação. Eu sonhei que estava em Curitiba (a sensação de um frio do caralho era BEM real). Eu não lembro de como foi que eu fui parar lá, nem o porquê. Só sei que eu conseguia me infiltrar num show que tava tendo da Cássia Eller. Da mesma forma com que sonho com a galera que já morreu: todo mundo sabia que ela já tinha morrido, mas era completamente plausível que ela estivesse lá.

Cantou "Por enquanto" e eu me arrepio de novo, só pela lembrança de como essa música pareceu pra mim no sonho. Ela tava naquele mesmo visual hominho de sempre. Ela falava um monte de coisas massas, que eu não me lembro mais, por não ter anotado assim que acordei.

Por que eu estava em Curitiba? Já fazem tantos anos que eu fui lá e, apesar de ter amado aquela cidade linda, não sinto essa falta toda que outras viagens me fizeram sentir. Inclusive essa viagem foi uma das aventuras mais loucas que eu já me meti, mas isso fica pra outro post.

Hoje, com a lembrança dessa parte do sonho ainda bem nítida na minha cabeça (já são 21:33 e ainda tá, né?), passei o dia lacrimejando. Não é incomum que isso aconteça. Vem um sonho qualquer e PÁ, quebra minhas pernas, me deixando vulnerável e com tudo à flor da pele. Não acredito que meus sonhos tenham qualquer poder revelatório, mas acredito que eles sejam parâmetros pras fases novas da minha vida. A regra não teve exceção até hoje: só pude viver tranquilamente uma coisa, quando sonhei primeiro que a vivia.

Beijei na boca "tarde". Estudava num colégio evangélico e se tinha uma pessoa que andava na linha era eu. Por medo, por vaidade, por um monte de coisas. Quinze anos e nada. Até as mais quietinhas da minha sala já tinham dado seus beijinhos e eu, sem um pingo de puberdade que pudesse atrair os carinhas que eu queria, ficava lá só de butuca no mundo. Se as quietinhas já davam seus beijinhos, tu imagina as danadinhas, o quê que já não andavam fazendo... 

Minhas amigas entraram com um plano maligno de me fazer beijar na boca à fina força e nem que desse na canela. Acabaram bolando um plano, que era de sair me oferecendo pros rapazes que eu manifestasse o mínimo interesse e se eles topassem... Tudo feito. Sem que eu notasse, é claro. Havia um rapaz na rua, com o qual eu nunca tinha falado, nunca tinha notado, nunca nada. O contrário, sim. Minhas amigas me disseram que ele estava interessado, que ele já sabia que eu era bv e que ele adoraria ser o "primeiro". haha

Muito mais por pressão do que por vontade, fui ao encontro mais estranho da minha vida. A sala da casa onde dei meu primeiro beijo era a espécie de um sótão. Não tinha lâmpada e, mesmo de dia, estava muito escura. Eu não sabia o que fazer e abracei o rapaz! Assim, como quem abraça um amigo. Ele gentilmente me afastou pra que pudesse me beijar. Quando não ouviram mais barulho, minhas amigas começaram a gritar feito loucas, na outra sala, comemorando esse marco! 

E, olha, não soube classificar aquele beijo. Talvez hoje, tivessse aproveitado. Mas aquela língua entrando e rodando na minha boca foi pra mim uma coisa super anti-higiênica. Foi tão estranho que eu fiquei com vergonha e nunca mais falei com o rapaz. Nunca mais mesmo. Eu me mudei pra rua paralela à das minhas amigas e vejo esse rapaz toda hora. Olho pra ele e penso: "puta que pariu, foi meu primeiro beijo! Que louco!" e sigo reto, com uma vergonhazinha de ter partilhado um momento que eu sempre esperei que fosse mágico, com um completo estranho.

Depois disso, demorou muito pra que eu beijasse de novo. O velho problema: ninguém se interessava declaradamente por mim. E, se eu percebesse que tinha um cara me dando mole, já começava a porra da ansiedade tomar conta. Evitava qualquer situação em que pudéssemos estar próximos. Evitava contato e se eu visse que o cabra tava determinado mesmo, cortava relações. Assim mesmo. Sem dó nem piedade. Meu medo era maior que qualquer consideração.

Fiz dezesseis e aí foi que o caldo entornou mesmo. Crises, infernos, melhoras, crises de novo. Acho que se você tá lendo esse blog, é porque eu não preciso mais explicar o que houve, né? Atalhando a história: só fui beijar de novo com dezoito anos, com um cara que me aperriou o tanto que ele pôde. Mandava recados pelos amigos em comum. Aparecia na Universidade que eu fazia lá na cidade, "do nada". O cara tava, como se diz por aqui, arriado. Esse cara mereceu o prêmio "Persistência 2008", por que meu amigo... Ali foi trabalho por um beijo, viu? E pôxa, esse eu gostei. Tinham sido três anos roubados, da flor da minha adolescência. Um hiato enorme em que eu fui impedida de viver o que todos estavam vivendo e vivendo e vivendo e vivendo. Eu era uma represa prestes a estourar. Mas nem o gostar do beijo me fez gostar do rapaz e muito menos querer beijá-lo de novo. Quando ele se reaproximava, começava o festival de vômito, de crise, de frio na espinha, de tudo o que não presta. Dei o fora rapidinho. Sumi de verdade. Até que um dia não deu e eu, sentindo o que se sente, expliquei pro rapaz que ou ele desistia, ou eu iria adoecer de verdade. O rapaz sumiu.

E eu fiz isso tantas vezes... Deixei pessoas maravilhosas irem. Deixei de viver paixões que eu sentia doerem dentro de mim, por não aguentar.

Até que eu sonhei.

Beijei o rapaz mais aleatório da turma do meu terceiro ano, nesse sonho. E foi quando não senti incômodos antes ou depois. Só o durante importou. Depois disso, beijos não foram mais problemas pra mim.

E a história do beijo, por mais bobinha que tenha sido, é só uma. Muitas outras barreiras precisaram ser superadas e algumas ainda estão aqui. Não sei porque sonho tanto ou se sonho tanto porque minha cabeça é de doido mesmo, mas confio no que meus sonhos têm a dizer. Só queria que a linguagem fosse mais literal. Que não houvessem tantas mensagens cifradas ou tamanho realismo neles. Que eu não sentisse tanto frio, nos frios sonhados, nem tanto calor, nos calores imaginados. Que os amores que sonho e os beijos que me beijo não me deixassem a pele dolorida, sedenta durante o dia. Que eu não falasse durante a noite. Que eu não chorasse, nos sonhos maus. Que eu não caminhasse, nem desse ataques de sonambulismo, principalmente quando durmo na casa dos pais. Deixa aí os sonhos engraçadinhos de contar, de quando eu faço o download de uma pessoa (!), ou me transformo em uma régua (!!), ou encontro a torre Eiffell em plena Bacabal (!!!). Deixa aí os sonhos que eu alço voo, mais alto que o super-homem, ou de quando eu simplesmente decido que vou levitar e sinto uma pressão enorme, uma espécie de energia, envolvendo meu corpo inteiro. 

De todas as minhas sinestesias oníricas, a que me mais me marcou foi a do dia que sonhei com o nada, na noite que a Terra explodiu. Tudo ficou tão escuro e vazio, que a sensação não pôde perdurar por muito tempo. A Terra teve que se reconstruir e eu via o começo das horas.

Lembrei também do que não se esconde. Lembrei do poder da comunicação, que o Galeano diz no livro dos abraços, com tantos exemplos. Lembrei que nada se esconde pra sempre. E o que a gente cala aqui, vai pra onde estamos proibidos de dizer não. E fala com voz forte e alta. Em resposta a uma pergunta que me foi feita há anos, por um amigo: Não. A mente não conserta o que o corpo deseja.


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Os velhos da vida

Que dia estranho. Passei todo ele sentindo uma tranquilidade terrível. É assim que eu consigo definir: tranquilidade terrível. Apesar de, como todos os dias, o trabalho não ter dado folga, o cumpri com toda a tranquilidade que pude. Tomei as pausas necessárias. Ninguém me apressou. Ninguém se estressou. Fiz tudo ao meu ritmo e fiz tudo o que se pôde fazer, sem horas extras, que eu sempre esqueço de enviar à administração pra acrescerem ao meu banco de horas.

De toda maneira, foi terrível.

Hoje é o dia internacional ou nacional (ninguém descobriu por certeza) do idoso. Da melhor idade, da terceira idade... Aqueles eufemismos lá que a gente usa pra encobrir o fato de que temos um dia pra comemorar o velho. O bom e velho velho. Porque todos os velhos, na minha cabeça, quando esta era velha, eram bons.

Nova, tinha a cabeça velha. Tão aí meus cabelos no chão que não me deixam mentir. E, em meio ao trabalho de agradecer a quem construiu a história daqueles lugares que já me parecem íntimos, com palavras que me foram fáceis, senti que fui ficando terrível. Que os olhos acompanhavam as linhas, e que a cabeça tinha muito mais a escrever. Com a hora adiantando, a imagem daqueles velhos correu de um extremo a outro da minha mente, me escurecendo um pouco os pensamentos. Lembrei, óbvio, de quem eu havia de lembrar. De quem não consigo esquecer.

E foi tranquilo e terrível por isso. Depois foi tranquilo de novo. Como sempre é.

***

Há menos de uma semana, um priminho nasceu. Filho de primo, eu creio que seja meu primo de segundo grau. É um bebêzinho lindo, fruto de uma relação inter-racial entre meu primo (branco) e sua esposa (negra). Não entendo muito bem de genética, mas achava que eram bem maiores as chances do bebê nascer negro, não? Estava torcendo pra isso. Na minha família por parte de pai, não temos negros, infelizmente. Temos pardos, como eu; temos brancos, como meu primo; mas negro mesmo, não temos nenhum. Aí o menino pega e me nasce branco. hahaha Bebê, como eu queria te apertar agora (não pode, eu sei. Sua moleira ainda tá mole).

Ver as fotos desse bebêzinho lindo me fez lembrar muito da Lulu. Fizeram 4 meses desde que ela veio com essa história besta e sem rumo de dar o fora disso aqui. Ai, Lulu. Sério, gata? Tu perdeu o filhinho do teu neto, mulher? Querida, e o meus, hein? Como é que, um dia, eu vou botar um comedorzinho de rapadura no mundo, sem que ele tenha a barra da tua saia pra quando eu quiser brigar com ele, hein? Os que virão, da tua descendência, saberão de ti, é claro. Quem é o doido que não vai te contar? Te perpetuar nesse mundo doido?

Tu ficou sabendo, né? Tatuei teu nome. Minha filha, foi o maior bafafá. Até aquela tia lá, tua cria, que eu te dizia que me enchia o saco com essa história de eu voltar a ser crente, disse que gostou e só não faria uma por falta de coragem. A única que não gostou declaradamente foi a mãe mesmo. A gata se enfezou legal, disse umas coisas fortes pra mim, pesadas. Doeu, mas eu fiz. Ela não entendeu, Lulu. Nunca foi sobre ela. Nunca foi sobre ninguém, a não ser nós duas. E se teve uma decisão acertada na minha vida, foi ter colocado o teu nome, com tua letra, na minha pele.

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Lembrei da minha relação com alguns velhos. Eu não lembro direito qual era a minha idade mas só podia ser nove ou dez, no máximo, supondo isso pela idade atual da minha prima. Quando ela era um bebêzinho, de não mais que dois anos, eu passava umas férias em São Luís. A mãe dela, minha tia, tinha um casamento conturbadíssimo com o pai dela. Era uma manhã ventilada e tínhamos que ir ao pediatra da bebê. Eu ia junto, claro, fazendo o papel de babá que sempre me delegaram. Os pais dela haviam brigado muito e minha tia dirigia chorando até o caminho do consultório. Só lembro da briga ter sido bem feia.

Lá, com todo mundo mais calmo, eu estava sentada na cadeira, comportadíssima, enquanto minha tia estava no consultório com a bebê. Havia um velho, bem velho, sentado na cadeira ao meu lado. É incrível como ele tinha um cheiro diferente. E não era cheiro de perfume de homem, destoando das colônias infantis: era de velho. Mas um velho limpo. Ele desenhava alguma coisa e eu não resisti. Deitei os olhos em cima, com toda a má educação inocente que eu tinha. O velho olhou pra mim e perguntou se eu queria ver o que ele desenhava. Eu respondi que sim. Ele tinha um papel em branco, dobrado ao meio, e me ensinou a desenhar uma rosa. Primeiro eu desenhei como sabia, depois ele foi me dizendo o que havia de errado. Não era simples desenhar aquela rosa. O caule tinha que ser elaborado. As folhas não poderiam ser grudadas ao caule. As pétalas precisavam delinear-se uma das outras. Ao final, ficou uma rosa horrível, mas uma rosa crível. O velho me disse que, se eu estudasse, faria rosas melhores. Disse-me o papel a usar, me disse o lápis certo a comprar, disse que eu poderia.

Conversamos muito. Aquele velho não era como os outros adultos que me tratavam conforme o humor. Ele me respeitou. Ele sabia que estava conversando com outro ser humano, cheio de coisas na cabeça. Uma criança que estava quieta, sozinha e com cara de assustada. Falou comigo e me deu uma aula que até agora eu nunca esqueci. E o que aquele velho fazia ali, naquele ambiente com crianças, babás e mães? Não sei. Era alto, branco, totalmente grisalho e aparentava estar desacompanhado. Talvez quisesse achar um lugar pra desenhar em paz e talvez ter conversas interessantes com quem ainda não havia sido contaminado pelo mundo. Talvez estava esperando alguém sair do consultório, como eu.

Outros velhos estavam no meu caminho. E com eles, desenvolvi relações fortíssimas, porque não me via e nem os via diferentes ou superiores a mim. Adultos eram os que eu tinha que obedecer, podiam me castigar, humilhar, fazer mal. Os velhos não. Os velhos eram pra conversar, abraçar e ser amigo. Desde o bisavô, que contava histórias inverossímeis, de tecedores de almas que utilizavam algodões e do fim do mundo com a chegada do avião, até o vizinho da Lulu, que sentava na sua porta e eu ia lá, conversar com ele, perguntar da vida, saber como era quando ele era novo. Que ficava dizendo que eu era neta dele e eu falava que não. "Neta, não. O senhor é meu amigo", enquanto ele se acabava de rir e passava a mão na minha cabeça.

Eu não consigo olhar pra um velho e perceber qualquer coisa diferente nele. E todo esse papo de melhor idade me parece ridículo, sempre. Vi dores que não passavam por dias. Vi o caminhar diminuir com o tempo. Vi as palavras ficarem de difícil compreensão. Vi o pôr-do-sol. Vi vários fins e todos eles me doeram. Alguns me latanharam menos, outros bem, bem mais. Mas todos os meus velhos seguem intactos na minha memória. Não reduzidos à velhice ou às pequenas histórias que insisto em contar, mas permanecem fartos de toda a complexidade humana, com defeitos, amores, paixões e tudo o mais que tem no pacote.

Tenho escrito em meus diários o nome do primeiro amor de minha avó. O homem que ela suspirou mesmo depois de casada. Tenho na lembrança o dizer do vizinho da Lulu, de como ele sofreu quando sua mulher faleceu. Tenho na lembrança o dizer do bisavô, de como foi difícil conquistar sua mulher sendo pobre. Tenho na lembrança a minha outra avó, condoída de tanta coisa, dizer que tudo pra ela tinha sido muito difícil. Não sei. Desde cedo, eu sei que a vida não é uma coisa fácil. Talvez eu sou grata a esses velhos por terem me ensinado que era possível.

sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre o "vai passar"

Há alguns dias, uma realidade me bateu. Bater no sentido de porrada mesmo. Passei uns dois dias sem conseguir desviar o pensamento, nem com o montante de trabalho enorme que eu tinha (tenho) pra fazer. Comecei a pensar na consequência dos meus atos. No que as minhas palavras impactam as pessoas, apesar da minha boa intenção. Eu estou falando dos meus amigos que estão doentes emocional ou fisicamente.

Pela manhã de um dia da semana passada, logo ao acordar, fiz o que faço sempre: tiro o celular do carregador e acesso minhas redes sociais. Além do vício em uma em específico, tem o fato de que é a única coisa que vai me impedir de ser tragada pelo sono novamente. Moro só e não tenho quem me acorde. Se não tem tu, vai tu mesmo. No Facebook, um querido havia postado o texto de um rapaz que tem depressão. Esse meu amigo está passando por isso e por outras coisas mais. Nós havíamos falado pelo whatsapp na noite anterior, sobre. Esse texto já tinha chegado a mim, mas eu ainda não o havia lido. Com os olhos fechando, resolvi lê-lo.

Basicamente, o texto é mais um que versa sobre o que é, como se sente e como agir com alguém que está passando por uma depressão. Na parte do "como agir", ou melhor, "como NÃO agir" foi que a porrada veio.

Confesso, envergonhada, que existe uma pretensão enorme de minha parte sobre a maneira como agir ou o que falar com pessoas que estão em sofrimento psíquico. Por já ter passado por um problema bem pauleira e ainda hoje, às vezes, me ver acometida por ele, tento, de coração, ajudar as pessoas. Isso não é errado, apesar da pretensão. Não é por isso que eu escrevo o texto. Não, não estou me elogiando com uma pseudo-crítica. A questão é: e quando eu não sou capaz?

Existe o tal do "exercício da imaginação". Cada transtorno emocional está dentro do espectro de sensações ou sintomas comuns. Inclusive é o que faz o problema x ser diagnosticado como problema "x", e não problema "y". Ainda assim, ele está dentro de um outro espectro muito mais importante, que é a individualidade das pessoas em que ele se manifesta. Por mais que nós sejamos empáticos com os problemas alheios, existem várias camadas em que somos incapazes de adentrar ou de entender, até pros profissionais de saúde mental. Não tem jeito, por mais que você se ponha no lugar de alguém, quem está no lugar de alguém é só o alguém mesmo. "Só quem calça o sapato é que sabe onde ele aperta", e é isso mesmo. Isso me frustrava muito, no começo. "Você está chorando por mim, mas não está sentindo o que eu estou".

Vários amigos queridos sofrem, no momento. Estão passando por dores lancinantes, diferentes das minhas e até as mais ou menos iguais. Isso me assusta. Impressionante o quanto todos nós estamos sendo tragados por um mundo que produz doentes em série. Por amá-los, me disponho a ajudá-los. E, apesar de ter a consciência de que é um processo desgastante, como sei ou como posso, lanço minhas palavras a eles. Nem sempre eu acerto. A porrada foi justamente nas comparações. Não é raro que eu converse com as pessoas e diga: "Eu também estive aí e já não estou mais". O sentido disso é: "É possível sair dessa situação escrota que você tá. Você vai, em algum momento."

Lendo o texto do rapaz, entendi que não cabe ficar comparando as situações. Minha história foi outra. Eu fui outra. As coisas que eu me apeguei pra melhorar podem não funcionar pra outras pessoas. Os incômodos foram muitos: comecei a lembrar de textos que escrevi, também pretensamente (como o da felicidade) ou de conversas em alta madrugada. Claro, já lidei com situações mais extremas, por mais de uma vez, de pessoas que me ligaram prestes a cometer suicídio ou com medidas já tomadas pra isso. Aí é lançar mão das coisas que você tem. E, às vezes, eu só tenho a minha história mesmo ou só consigo me lembrar dela. Sei que não há coisa mais poderosa pra influenciar as pessoas que o exemplo, mas em que medida eu estava usando isso? Não é nada legal estar na bad e vir alguém do diabo que o carregue te dizer: "Ah, também foi escroto comigo e eu não tô sofrendo mais." Alguém aí entende o que eu quero dizer? Posso usar o exemplo, mas corro o risco de parecer pedante ou de parecer que cobro uma atitude de alguém que, se está passando pelo que está, é por que ainda não conseguiu internalizar alguns conceitos que eu já (mais pedantismo, hã?).

Ainda há mais que isso. Sempre há. Até quando se pode desculpar alguém por sua condição? Há alguns dias, um amigo me fez mal. Fui posta em uma sinuca de bico terrível, por uma coisa que, em nosso grupo de amizade, sempre foi comum. Uma coisa que até nos define como amigos: conversamos, fazemos "cobrice" uns com os outros, mas nos amamos e estamos ali pro que der e vier. A maneira em que desenvolvemos a relação nesses cinco anos, foi revelando o que era permitido ou não e nós entendemos a dinâmica e a aceitamos. Bom, até aquele momento. O pacto foi quebrado. Fui posta em problemas. Fui a vilã, a má, a que teve seus atos comparados ao que havia de pior. Isso, óbvio, me deu muita raiva. E, desde então, estamos sem trocar palavra, mesmo já tendo nos encontrado por aí.

Estranho isso. Como alguém que foi tão íntimo, que sabia dos meus segredos, se tornou alguém que eu não reconheço mais? E aí a pergunta: em que conta eu devo colocar os atos? Os de antigamente e os de agora, depois que todos sabemos (e nos preocupamos) com o problema? O que eu devo fazer com a raiva que ainda me dá, quando lembro?

Não entendo. Simplesmente não entendo. Não dessa vez. Não já de outras vezes.

De novo a pergunta que me repito há um tempão: em que medida as pessoas podem ser perdoadas pelos seus atos, pelos problemas que passam? Já perdoei coisas fortes, mas que tinham ficado muito claras pra mim em que conta colocar. O problema é todo esse: agora não estão. E mesmo não sabendo nada de contas (pois de humanas), ainda assim, seria capaz de perdoar. Mas e quando não há pedido nenhum de perdão? E quando eu sinto o cheiro da injustiça?

Right in the feels. Há a culpa de me afastar de uma pessoa que me machucou, mesmo que eu a ame. Há a culpa de não saber associar direito os seus atos. Mas a há a consciência de que nem sempre eu posso. Nem sempre eu consigo, por mais que eu me importe e queira que essas dores passem. Não sei o que fazer, somente.

Tudo bem também. Vai passar.


quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Os meninos

Está terrível, o mundo. Foi, continua, será. Em dias de meninos que morrem (o de Teresina que tinha só 19 anos e o da Síria, um bebêzinho afogado no mar), a gente aglutina as dores alheias e graças ao resto de empatia que ainda há no mundo, se dói também.

Hoje, como nessas horas, eu pensei sobre deus. Sim, no minúsculo. A cada dia mais eu deixo de ver sentido na existência de um ser divino, que olha por nós e para nós, vigia nossos passos e nos acalenta na hora de dormir. Durante um tempo, isso realmente me tirou o sono. Não foi um processo fácil deixar de acreditar em tudo o que eu já acreditei durante essa minha curta vida. Tanto é que, apesar de já ter isso claro pra mim mesma há muito tempo, ainda não tinha tido coragem de escrever sobre isso de forma pública. E quando o faço, ainda faço num blog completamente sem audiência, que sub-existe pela minha tenaz necessidade de conforto em palavras.

Minha família ficaria abalada. Ficará, em algum momento. Se não exponho publicamente ao seu escrutínio, é porque sei o quanto é pesado pra eles me ver nessa nova fase. Em todas as minhas (drásticas) mudanças, eles foram remoldando a maneira que me viam enquanto pessoa. Hoje, com uma revelação do tipo, a mudança da visão sobre mim seria extremamente negativa. Eu conheço os meus. Mas sei que a minha própria personalidade não manterá isso em segredo por muito tempo. 

Talvez contar aqui, calma e passivamente, seja alguma das tentativas de me revelar.

Voltando aos meninos: as notícias abalam a qualquer um que se importe, eu sei. Por um lado, penso que preciso me manter distante do terror que era tão distante e minimizado pelas distâncias ou mesmo por um senso de não-pertencimento do mundo. Eu era daquela cidade pequena. "As coisas não chegavam pra mim, em Bacabal". Foi brincando que eu disse pros amigos, mas virou bordão e é verdade. Não chegavam. E eu me sentia protegida e segura, ao mesmo tempo que só e abandonada, distante do bem e do mal do mundo. Chacinas não ocorriam, os afogamentos eram porque foram banhar no Mearim depois de ingerir álcool e os jovens não morriam antes de seus pais. Ontem, o bebêzinho morto na praia me fez chorar. Encheu os meus olhos e os de milhões de pessoas pelo mundo todo. E antes dele, o rapaz de 19 anos que cuidava sozinho de 8 irmãos (entre eles, bebêzinhos também), que teve a mãe assassinada pelo companheiro no ano passado, simplesmente descobre que tem leucemia. Da esperança de ontem, a morte de hoje. Porra! Porra mesmo!

Lembro bem do que me diziam naquela igreja lotada nas noites de domingo: "Nada ocorre sem a permissão de Deus. Nem uma folha da árvore cai, sem que ele permita". E aí eu me pergunto: o quê caralhos esse rapaz fez pra ver sua vida se esvair, depois de tanto sofrimento? Que pecado mortal tinha aquele bebê e o seu irmãozinho, pra merecerem que seus corpinhos sem vida fossem arrastados pelas ondas até à beira da praia?

Uma vez na calçada, uma tia falava pra Lulu e pra mim, o caso de uma mulher que, logo criança, pegou uma doença venérea que a fez amargar muito durante a vida. E ela pegou essa doença, porque, criança que era, só andava nua no interior do Maranhão. Algum idiota se masturbou numa cadeira e deixou o sêmen lá. Ela era criança. Ela sentou na cadeira. Pegou uma doença venérea. Uma criança. Sem tratamento adequado, sem saberem o que era, foi só piorando. Ela cresceu com sequelas e falou pra alguém, que falou pra minha tia, que nos falou: "Parece que eu nasci só pra sofrer".

Eu era criança também, quando escutei essa história. Ficou, como milhares de outras, rondando a minha cabeça. Não sentava mais em lugar nenhum se não visse que estava minimamente limpo. Fiquei com medo, até que alguém me disse que eu estaria protegida, porque confiava em Deus. Algo me pareceu injusto nessa história: mas a menina também não confiava?

Percebo em mim uma desesperança crescente, que tem toda a razão de ser, alimentada diariamente com os espantos de quem já deveria estar mais que acostumada com sangue. Apesar de entendê-la e justificá-la, não a queria em mim.

A maldade está no homem, a bondade também. Somos a desgraça e a salvação. A justiça além de nós não existe e só o que nos resta é não deixar que a mediocridade se alastre nas nossas tentativas únicas de existência. Que em paz descansem em suas camas, protegidos pelo amor e pela paz, os meninos que não foram tragados pela doença, pela guerra, pelo terror e pela morte. E que - Deus! - não sejam!

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pra não dizer que eu te abandonei, Liga.

Não tenho escrito aqui. Mais uma vez, o tanto monstro de vida que já aconteceu. Desde "A grosseria", onde pus pra fora aquelas metáforas bem verdadeiras, tenho escrito muito mas, como disse, não aqui. O caso é que arrumei um emprego. Muito mais corrido do que jamais imaginei. Se antes eu tinha tempo e não tinha dinheiro pra nada, agora não tenho tempo e nem dinheiro. Ainda não recebi o primeiro salário e meus amigos já me fizeram prometer metade dele em cervejas pra comemorar o trabalho novo.
Depois de tanto tempo e com uma cobrança muito forte (externa e interna), verguei. A ansiedade quase me abateu. Lembrei daqueles dias, naquele jornal, onde acumulava funções acadêmicas e no estágio e ainda era bem menos resistente do que sou hoje. Com pouquíssimo tempo, desisti. Tadinha de mim, mas eu realmente não podia naquela época lidar com aquilo tudo. Hoje eu posso. Hoje eu consegui. Já estou de volta à normalidade, que eu sabia que voltaria.
Nesse meio-tempo, milhares de pensamentos à noite. Zilhares de tuítes, de escritos internos, de pensamentos de chamar. Mas o que mandou em mim foram as saudades. Ahhh, as saudades.
Acabo de chorar, na verdade. Hoje são três meses que o meu amor inventou de ir-se de mim. Três meses de choros convulsivos, que ainda hoje (como acabei de provar), ainda me tomam, mesmo que o mais frequente sejam só pequenas lágrimas ou o marejar dos olhos. Às vezes eu me esqueço que ela se foi. Em ocasiões como essa, onde eu arrumei um emprego e fiquei super feliz e depois fiquei super mal por causa da ansiedade, eu sabia que deveria ligar e contar a novidade pra ela. Aí me lembrava. Aí, óbvio, doía de novo. Ferida aberta, ainda. Só coberta com um pano. Se mexer, claro que vai doer.
Outras saudades também me invadem. Apesar de os anos longe de casa terem endurecido o meu coração, estive várias vezes à beira de ligar pra minha mãe e pedir socorro. Aquela parada de querer o colo mesmo. De lembrar do tempo em que meu coração pesava (meu coração sempre pesou, mesmo criança. Incrível.) e eu sabia que a única solução viável era contar pros meus pais. Eles iriam tomar conta de tudo. Puta que pariu. Como será que é ter essa responsabilidade na vida de alguém, hein? Não. Não liguei pra nenhum dos dois. Não pedi ajuda, nem socorro. Aguentei. Segurei minha onda. Chamei os amigos, escrevi no twitter, pedi abraços e os recebi. Faz alguns dias, senti a normalidade voltar à minha pele. Espero manter-me assim. Ir, mas ter a certeza de voltar: é o único jeito que eu posso.
Também tenho mais saudades que essas descritas. E, nessa parte, também não tenho o que fazer. Andei sonhando umas coisas que me machucariam, se fossem verdade. Vai ver até são, né? Não sei. Não sei de mais nada. Mas sonhar e ter a consciência de que me machucariam, mesmo eu achando que não, me preocupou bastante. Ontem, conversando com amigos a respeito desses sonhos despropositais, me falaram aquilo que eu sei ser verdade: a gente não esquece alguém assim, por querer ou vontade, com o simples uso da razão, com a mera decisão dos pensamentos. E acaba que o que me resta é saber o que sei, o mantra final que me ajuda a continuar na vida, mesmo sabendo que ela pode ser (e na maioria das vezes é mesmo) muito escrota: isso também vai passar. Em alguma hora, vai passar. As coisas vão mudar sorrateiramente de status e, quando eu parar de pensar nisso, vou atinar que o mundo terá mudado. Mais uma vez. Vai ocupar outro espaço no coração. E estaremos todos bem assim.
22:57 e eu já deveria estar dormindo há uma hora. Parece que o jogo virou, não é mesmo, insônia?
A boa noite aos que carregam bons corações.