terça-feira, 6 de outubro de 2015

"...Mas eu sei que alguma coisa aconteceu"

Eu não lembro mais de tudo, então pode ser que algumas coisas se completem com a imaginação. Eu sonhei que estava em Curitiba (a sensação de um frio do caralho era BEM real). Eu não lembro de como foi que eu fui parar lá, nem o porquê. Só sei que eu conseguia me infiltrar num show que tava tendo da Cássia Eller. Da mesma forma com que sonho com a galera que já morreu: todo mundo sabia que ela já tinha morrido, mas era completamente plausível que ela estivesse lá.

Cantou "Por enquanto" e eu me arrepio de novo, só pela lembrança de como essa música pareceu pra mim no sonho. Ela tava naquele mesmo visual hominho de sempre. Ela falava um monte de coisas massas, que eu não me lembro mais, por não ter anotado assim que acordei.

Por que eu estava em Curitiba? Já fazem tantos anos que eu fui lá e, apesar de ter amado aquela cidade linda, não sinto essa falta toda que outras viagens me fizeram sentir. Inclusive essa viagem foi uma das aventuras mais loucas que eu já me meti, mas isso fica pra outro post.

Hoje, com a lembrança dessa parte do sonho ainda bem nítida na minha cabeça (já são 21:33 e ainda tá, né?), passei o dia lacrimejando. Não é incomum que isso aconteça. Vem um sonho qualquer e PÁ, quebra minhas pernas, me deixando vulnerável e com tudo à flor da pele. Não acredito que meus sonhos tenham qualquer poder revelatório, mas acredito que eles sejam parâmetros pras fases novas da minha vida. A regra não teve exceção até hoje: só pude viver tranquilamente uma coisa, quando sonhei primeiro que a vivia.

Beijei na boca "tarde". Estudava num colégio evangélico e se tinha uma pessoa que andava na linha era eu. Por medo, por vaidade, por um monte de coisas. Quinze anos e nada. Até as mais quietinhas da minha sala já tinham dado seus beijinhos e eu, sem um pingo de puberdade que pudesse atrair os carinhas que eu queria, ficava lá só de butuca no mundo. Se as quietinhas já davam seus beijinhos, tu imagina as danadinhas, o quê que já não andavam fazendo... 

Minhas amigas entraram com um plano maligno de me fazer beijar na boca à fina força e nem que desse na canela. Acabaram bolando um plano, que era de sair me oferecendo pros rapazes que eu manifestasse o mínimo interesse e se eles topassem... Tudo feito. Sem que eu notasse, é claro. Havia um rapaz na rua, com o qual eu nunca tinha falado, nunca tinha notado, nunca nada. O contrário, sim. Minhas amigas me disseram que ele estava interessado, que ele já sabia que eu era bv e que ele adoraria ser o "primeiro". haha

Muito mais por pressão do que por vontade, fui ao encontro mais estranho da minha vida. A sala da casa onde dei meu primeiro beijo era a espécie de um sótão. Não tinha lâmpada e, mesmo de dia, estava muito escura. Eu não sabia o que fazer e abracei o rapaz! Assim, como quem abraça um amigo. Ele gentilmente me afastou pra que pudesse me beijar. Quando não ouviram mais barulho, minhas amigas começaram a gritar feito loucas, na outra sala, comemorando esse marco! 

E, olha, não soube classificar aquele beijo. Talvez hoje, tivessse aproveitado. Mas aquela língua entrando e rodando na minha boca foi pra mim uma coisa super anti-higiênica. Foi tão estranho que eu fiquei com vergonha e nunca mais falei com o rapaz. Nunca mais mesmo. Eu me mudei pra rua paralela à das minhas amigas e vejo esse rapaz toda hora. Olho pra ele e penso: "puta que pariu, foi meu primeiro beijo! Que louco!" e sigo reto, com uma vergonhazinha de ter partilhado um momento que eu sempre esperei que fosse mágico, com um completo estranho.

Depois disso, demorou muito pra que eu beijasse de novo. O velho problema: ninguém se interessava declaradamente por mim. E, se eu percebesse que tinha um cara me dando mole, já começava a porra da ansiedade tomar conta. Evitava qualquer situação em que pudéssemos estar próximos. Evitava contato e se eu visse que o cabra tava determinado mesmo, cortava relações. Assim mesmo. Sem dó nem piedade. Meu medo era maior que qualquer consideração.

Fiz dezesseis e aí foi que o caldo entornou mesmo. Crises, infernos, melhoras, crises de novo. Acho que se você tá lendo esse blog, é porque eu não preciso mais explicar o que houve, né? Atalhando a história: só fui beijar de novo com dezoito anos, com um cara que me aperriou o tanto que ele pôde. Mandava recados pelos amigos em comum. Aparecia na Universidade que eu fazia lá na cidade, "do nada". O cara tava, como se diz por aqui, arriado. Esse cara mereceu o prêmio "Persistência 2008", por que meu amigo... Ali foi trabalho por um beijo, viu? E pôxa, esse eu gostei. Tinham sido três anos roubados, da flor da minha adolescência. Um hiato enorme em que eu fui impedida de viver o que todos estavam vivendo e vivendo e vivendo e vivendo. Eu era uma represa prestes a estourar. Mas nem o gostar do beijo me fez gostar do rapaz e muito menos querer beijá-lo de novo. Quando ele se reaproximava, começava o festival de vômito, de crise, de frio na espinha, de tudo o que não presta. Dei o fora rapidinho. Sumi de verdade. Até que um dia não deu e eu, sentindo o que se sente, expliquei pro rapaz que ou ele desistia, ou eu iria adoecer de verdade. O rapaz sumiu.

E eu fiz isso tantas vezes... Deixei pessoas maravilhosas irem. Deixei de viver paixões que eu sentia doerem dentro de mim, por não aguentar.

Até que eu sonhei.

Beijei o rapaz mais aleatório da turma do meu terceiro ano, nesse sonho. E foi quando não senti incômodos antes ou depois. Só o durante importou. Depois disso, beijos não foram mais problemas pra mim.

E a história do beijo, por mais bobinha que tenha sido, é só uma. Muitas outras barreiras precisaram ser superadas e algumas ainda estão aqui. Não sei porque sonho tanto ou se sonho tanto porque minha cabeça é de doido mesmo, mas confio no que meus sonhos têm a dizer. Só queria que a linguagem fosse mais literal. Que não houvessem tantas mensagens cifradas ou tamanho realismo neles. Que eu não sentisse tanto frio, nos frios sonhados, nem tanto calor, nos calores imaginados. Que os amores que sonho e os beijos que me beijo não me deixassem a pele dolorida, sedenta durante o dia. Que eu não falasse durante a noite. Que eu não chorasse, nos sonhos maus. Que eu não caminhasse, nem desse ataques de sonambulismo, principalmente quando durmo na casa dos pais. Deixa aí os sonhos engraçadinhos de contar, de quando eu faço o download de uma pessoa (!), ou me transformo em uma régua (!!), ou encontro a torre Eiffell em plena Bacabal (!!!). Deixa aí os sonhos que eu alço voo, mais alto que o super-homem, ou de quando eu simplesmente decido que vou levitar e sinto uma pressão enorme, uma espécie de energia, envolvendo meu corpo inteiro. 

De todas as minhas sinestesias oníricas, a que me mais me marcou foi a do dia que sonhei com o nada, na noite que a Terra explodiu. Tudo ficou tão escuro e vazio, que a sensação não pôde perdurar por muito tempo. A Terra teve que se reconstruir e eu via o começo das horas.

Lembrei também do que não se esconde. Lembrei do poder da comunicação, que o Galeano diz no livro dos abraços, com tantos exemplos. Lembrei que nada se esconde pra sempre. E o que a gente cala aqui, vai pra onde estamos proibidos de dizer não. E fala com voz forte e alta. Em resposta a uma pergunta que me foi feita há anos, por um amigo: Não. A mente não conserta o que o corpo deseja.


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Os velhos da vida

Que dia estranho. Passei todo ele sentindo uma tranquilidade terrível. É assim que eu consigo definir: tranquilidade terrível. Apesar de, como todos os dias, o trabalho não ter dado folga, o cumpri com toda a tranquilidade que pude. Tomei as pausas necessárias. Ninguém me apressou. Ninguém se estressou. Fiz tudo ao meu ritmo e fiz tudo o que se pôde fazer, sem horas extras, que eu sempre esqueço de enviar à administração pra acrescerem ao meu banco de horas.

De toda maneira, foi terrível.

Hoje é o dia internacional ou nacional (ninguém descobriu por certeza) do idoso. Da melhor idade, da terceira idade... Aqueles eufemismos lá que a gente usa pra encobrir o fato de que temos um dia pra comemorar o velho. O bom e velho velho. Porque todos os velhos, na minha cabeça, quando esta era velha, eram bons.

Nova, tinha a cabeça velha. Tão aí meus cabelos no chão que não me deixam mentir. E, em meio ao trabalho de agradecer a quem construiu a história daqueles lugares que já me parecem íntimos, com palavras que me foram fáceis, senti que fui ficando terrível. Que os olhos acompanhavam as linhas, e que a cabeça tinha muito mais a escrever. Com a hora adiantando, a imagem daqueles velhos correu de um extremo a outro da minha mente, me escurecendo um pouco os pensamentos. Lembrei, óbvio, de quem eu havia de lembrar. De quem não consigo esquecer.

E foi tranquilo e terrível por isso. Depois foi tranquilo de novo. Como sempre é.

***

Há menos de uma semana, um priminho nasceu. Filho de primo, eu creio que seja meu primo de segundo grau. É um bebêzinho lindo, fruto de uma relação inter-racial entre meu primo (branco) e sua esposa (negra). Não entendo muito bem de genética, mas achava que eram bem maiores as chances do bebê nascer negro, não? Estava torcendo pra isso. Na minha família por parte de pai, não temos negros, infelizmente. Temos pardos, como eu; temos brancos, como meu primo; mas negro mesmo, não temos nenhum. Aí o menino pega e me nasce branco. hahaha Bebê, como eu queria te apertar agora (não pode, eu sei. Sua moleira ainda tá mole).

Ver as fotos desse bebêzinho lindo me fez lembrar muito da Lulu. Fizeram 4 meses desde que ela veio com essa história besta e sem rumo de dar o fora disso aqui. Ai, Lulu. Sério, gata? Tu perdeu o filhinho do teu neto, mulher? Querida, e o meus, hein? Como é que, um dia, eu vou botar um comedorzinho de rapadura no mundo, sem que ele tenha a barra da tua saia pra quando eu quiser brigar com ele, hein? Os que virão, da tua descendência, saberão de ti, é claro. Quem é o doido que não vai te contar? Te perpetuar nesse mundo doido?

Tu ficou sabendo, né? Tatuei teu nome. Minha filha, foi o maior bafafá. Até aquela tia lá, tua cria, que eu te dizia que me enchia o saco com essa história de eu voltar a ser crente, disse que gostou e só não faria uma por falta de coragem. A única que não gostou declaradamente foi a mãe mesmo. A gata se enfezou legal, disse umas coisas fortes pra mim, pesadas. Doeu, mas eu fiz. Ela não entendeu, Lulu. Nunca foi sobre ela. Nunca foi sobre ninguém, a não ser nós duas. E se teve uma decisão acertada na minha vida, foi ter colocado o teu nome, com tua letra, na minha pele.

****

Lembrei da minha relação com alguns velhos. Eu não lembro direito qual era a minha idade mas só podia ser nove ou dez, no máximo, supondo isso pela idade atual da minha prima. Quando ela era um bebêzinho, de não mais que dois anos, eu passava umas férias em São Luís. A mãe dela, minha tia, tinha um casamento conturbadíssimo com o pai dela. Era uma manhã ventilada e tínhamos que ir ao pediatra da bebê. Eu ia junto, claro, fazendo o papel de babá que sempre me delegaram. Os pais dela haviam brigado muito e minha tia dirigia chorando até o caminho do consultório. Só lembro da briga ter sido bem feia.

Lá, com todo mundo mais calmo, eu estava sentada na cadeira, comportadíssima, enquanto minha tia estava no consultório com a bebê. Havia um velho, bem velho, sentado na cadeira ao meu lado. É incrível como ele tinha um cheiro diferente. E não era cheiro de perfume de homem, destoando das colônias infantis: era de velho. Mas um velho limpo. Ele desenhava alguma coisa e eu não resisti. Deitei os olhos em cima, com toda a má educação inocente que eu tinha. O velho olhou pra mim e perguntou se eu queria ver o que ele desenhava. Eu respondi que sim. Ele tinha um papel em branco, dobrado ao meio, e me ensinou a desenhar uma rosa. Primeiro eu desenhei como sabia, depois ele foi me dizendo o que havia de errado. Não era simples desenhar aquela rosa. O caule tinha que ser elaborado. As folhas não poderiam ser grudadas ao caule. As pétalas precisavam delinear-se uma das outras. Ao final, ficou uma rosa horrível, mas uma rosa crível. O velho me disse que, se eu estudasse, faria rosas melhores. Disse-me o papel a usar, me disse o lápis certo a comprar, disse que eu poderia.

Conversamos muito. Aquele velho não era como os outros adultos que me tratavam conforme o humor. Ele me respeitou. Ele sabia que estava conversando com outro ser humano, cheio de coisas na cabeça. Uma criança que estava quieta, sozinha e com cara de assustada. Falou comigo e me deu uma aula que até agora eu nunca esqueci. E o que aquele velho fazia ali, naquele ambiente com crianças, babás e mães? Não sei. Era alto, branco, totalmente grisalho e aparentava estar desacompanhado. Talvez quisesse achar um lugar pra desenhar em paz e talvez ter conversas interessantes com quem ainda não havia sido contaminado pelo mundo. Talvez estava esperando alguém sair do consultório, como eu.

Outros velhos estavam no meu caminho. E com eles, desenvolvi relações fortíssimas, porque não me via e nem os via diferentes ou superiores a mim. Adultos eram os que eu tinha que obedecer, podiam me castigar, humilhar, fazer mal. Os velhos não. Os velhos eram pra conversar, abraçar e ser amigo. Desde o bisavô, que contava histórias inverossímeis, de tecedores de almas que utilizavam algodões e do fim do mundo com a chegada do avião, até o vizinho da Lulu, que sentava na sua porta e eu ia lá, conversar com ele, perguntar da vida, saber como era quando ele era novo. Que ficava dizendo que eu era neta dele e eu falava que não. "Neta, não. O senhor é meu amigo", enquanto ele se acabava de rir e passava a mão na minha cabeça.

Eu não consigo olhar pra um velho e perceber qualquer coisa diferente nele. E todo esse papo de melhor idade me parece ridículo, sempre. Vi dores que não passavam por dias. Vi o caminhar diminuir com o tempo. Vi as palavras ficarem de difícil compreensão. Vi o pôr-do-sol. Vi vários fins e todos eles me doeram. Alguns me latanharam menos, outros bem, bem mais. Mas todos os meus velhos seguem intactos na minha memória. Não reduzidos à velhice ou às pequenas histórias que insisto em contar, mas permanecem fartos de toda a complexidade humana, com defeitos, amores, paixões e tudo o mais que tem no pacote.

Tenho escrito em meus diários o nome do primeiro amor de minha avó. O homem que ela suspirou mesmo depois de casada. Tenho na lembrança o dizer do vizinho da Lulu, de como ele sofreu quando sua mulher faleceu. Tenho na lembrança o dizer do bisavô, de como foi difícil conquistar sua mulher sendo pobre. Tenho na lembrança a minha outra avó, condoída de tanta coisa, dizer que tudo pra ela tinha sido muito difícil. Não sei. Desde cedo, eu sei que a vida não é uma coisa fácil. Talvez eu sou grata a esses velhos por terem me ensinado que era possível.

sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre o "vai passar"

Há alguns dias, uma realidade me bateu. Bater no sentido de porrada mesmo. Passei uns dois dias sem conseguir desviar o pensamento, nem com o montante de trabalho enorme que eu tinha (tenho) pra fazer. Comecei a pensar na consequência dos meus atos. No que as minhas palavras impactam as pessoas, apesar da minha boa intenção. Eu estou falando dos meus amigos que estão doentes emocional ou fisicamente.

Pela manhã de um dia da semana passada, logo ao acordar, fiz o que faço sempre: tiro o celular do carregador e acesso minhas redes sociais. Além do vício em uma em específico, tem o fato de que é a única coisa que vai me impedir de ser tragada pelo sono novamente. Moro só e não tenho quem me acorde. Se não tem tu, vai tu mesmo. No Facebook, um querido havia postado o texto de um rapaz que tem depressão. Esse meu amigo está passando por isso e por outras coisas mais. Nós havíamos falado pelo whatsapp na noite anterior, sobre. Esse texto já tinha chegado a mim, mas eu ainda não o havia lido. Com os olhos fechando, resolvi lê-lo.

Basicamente, o texto é mais um que versa sobre o que é, como se sente e como agir com alguém que está passando por uma depressão. Na parte do "como agir", ou melhor, "como NÃO agir" foi que a porrada veio.

Confesso, envergonhada, que existe uma pretensão enorme de minha parte sobre a maneira como agir ou o que falar com pessoas que estão em sofrimento psíquico. Por já ter passado por um problema bem pauleira e ainda hoje, às vezes, me ver acometida por ele, tento, de coração, ajudar as pessoas. Isso não é errado, apesar da pretensão. Não é por isso que eu escrevo o texto. Não, não estou me elogiando com uma pseudo-crítica. A questão é: e quando eu não sou capaz?

Existe o tal do "exercício da imaginação". Cada transtorno emocional está dentro do espectro de sensações ou sintomas comuns. Inclusive é o que faz o problema x ser diagnosticado como problema "x", e não problema "y". Ainda assim, ele está dentro de um outro espectro muito mais importante, que é a individualidade das pessoas em que ele se manifesta. Por mais que nós sejamos empáticos com os problemas alheios, existem várias camadas em que somos incapazes de adentrar ou de entender, até pros profissionais de saúde mental. Não tem jeito, por mais que você se ponha no lugar de alguém, quem está no lugar de alguém é só o alguém mesmo. "Só quem calça o sapato é que sabe onde ele aperta", e é isso mesmo. Isso me frustrava muito, no começo. "Você está chorando por mim, mas não está sentindo o que eu estou".

Vários amigos queridos sofrem, no momento. Estão passando por dores lancinantes, diferentes das minhas e até as mais ou menos iguais. Isso me assusta. Impressionante o quanto todos nós estamos sendo tragados por um mundo que produz doentes em série. Por amá-los, me disponho a ajudá-los. E, apesar de ter a consciência de que é um processo desgastante, como sei ou como posso, lanço minhas palavras a eles. Nem sempre eu acerto. A porrada foi justamente nas comparações. Não é raro que eu converse com as pessoas e diga: "Eu também estive aí e já não estou mais". O sentido disso é: "É possível sair dessa situação escrota que você tá. Você vai, em algum momento."

Lendo o texto do rapaz, entendi que não cabe ficar comparando as situações. Minha história foi outra. Eu fui outra. As coisas que eu me apeguei pra melhorar podem não funcionar pra outras pessoas. Os incômodos foram muitos: comecei a lembrar de textos que escrevi, também pretensamente (como o da felicidade) ou de conversas em alta madrugada. Claro, já lidei com situações mais extremas, por mais de uma vez, de pessoas que me ligaram prestes a cometer suicídio ou com medidas já tomadas pra isso. Aí é lançar mão das coisas que você tem. E, às vezes, eu só tenho a minha história mesmo ou só consigo me lembrar dela. Sei que não há coisa mais poderosa pra influenciar as pessoas que o exemplo, mas em que medida eu estava usando isso? Não é nada legal estar na bad e vir alguém do diabo que o carregue te dizer: "Ah, também foi escroto comigo e eu não tô sofrendo mais." Alguém aí entende o que eu quero dizer? Posso usar o exemplo, mas corro o risco de parecer pedante ou de parecer que cobro uma atitude de alguém que, se está passando pelo que está, é por que ainda não conseguiu internalizar alguns conceitos que eu já (mais pedantismo, hã?).

Ainda há mais que isso. Sempre há. Até quando se pode desculpar alguém por sua condição? Há alguns dias, um amigo me fez mal. Fui posta em uma sinuca de bico terrível, por uma coisa que, em nosso grupo de amizade, sempre foi comum. Uma coisa que até nos define como amigos: conversamos, fazemos "cobrice" uns com os outros, mas nos amamos e estamos ali pro que der e vier. A maneira em que desenvolvemos a relação nesses cinco anos, foi revelando o que era permitido ou não e nós entendemos a dinâmica e a aceitamos. Bom, até aquele momento. O pacto foi quebrado. Fui posta em problemas. Fui a vilã, a má, a que teve seus atos comparados ao que havia de pior. Isso, óbvio, me deu muita raiva. E, desde então, estamos sem trocar palavra, mesmo já tendo nos encontrado por aí.

Estranho isso. Como alguém que foi tão íntimo, que sabia dos meus segredos, se tornou alguém que eu não reconheço mais? E aí a pergunta: em que conta eu devo colocar os atos? Os de antigamente e os de agora, depois que todos sabemos (e nos preocupamos) com o problema? O que eu devo fazer com a raiva que ainda me dá, quando lembro?

Não entendo. Simplesmente não entendo. Não dessa vez. Não já de outras vezes.

De novo a pergunta que me repito há um tempão: em que medida as pessoas podem ser perdoadas pelos seus atos, pelos problemas que passam? Já perdoei coisas fortes, mas que tinham ficado muito claras pra mim em que conta colocar. O problema é todo esse: agora não estão. E mesmo não sabendo nada de contas (pois de humanas), ainda assim, seria capaz de perdoar. Mas e quando não há pedido nenhum de perdão? E quando eu sinto o cheiro da injustiça?

Right in the feels. Há a culpa de me afastar de uma pessoa que me machucou, mesmo que eu a ame. Há a culpa de não saber associar direito os seus atos. Mas a há a consciência de que nem sempre eu posso. Nem sempre eu consigo, por mais que eu me importe e queira que essas dores passem. Não sei o que fazer, somente.

Tudo bem também. Vai passar.


quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Os meninos

Está terrível, o mundo. Foi, continua, será. Em dias de meninos que morrem (o de Teresina que tinha só 19 anos e o da Síria, um bebêzinho afogado no mar), a gente aglutina as dores alheias e graças ao resto de empatia que ainda há no mundo, se dói também.

Hoje, como nessas horas, eu pensei sobre deus. Sim, no minúsculo. A cada dia mais eu deixo de ver sentido na existência de um ser divino, que olha por nós e para nós, vigia nossos passos e nos acalenta na hora de dormir. Durante um tempo, isso realmente me tirou o sono. Não foi um processo fácil deixar de acreditar em tudo o que eu já acreditei durante essa minha curta vida. Tanto é que, apesar de já ter isso claro pra mim mesma há muito tempo, ainda não tinha tido coragem de escrever sobre isso de forma pública. E quando o faço, ainda faço num blog completamente sem audiência, que sub-existe pela minha tenaz necessidade de conforto em palavras.

Minha família ficaria abalada. Ficará, em algum momento. Se não exponho publicamente ao seu escrutínio, é porque sei o quanto é pesado pra eles me ver nessa nova fase. Em todas as minhas (drásticas) mudanças, eles foram remoldando a maneira que me viam enquanto pessoa. Hoje, com uma revelação do tipo, a mudança da visão sobre mim seria extremamente negativa. Eu conheço os meus. Mas sei que a minha própria personalidade não manterá isso em segredo por muito tempo. 

Talvez contar aqui, calma e passivamente, seja alguma das tentativas de me revelar.

Voltando aos meninos: as notícias abalam a qualquer um que se importe, eu sei. Por um lado, penso que preciso me manter distante do terror que era tão distante e minimizado pelas distâncias ou mesmo por um senso de não-pertencimento do mundo. Eu era daquela cidade pequena. "As coisas não chegavam pra mim, em Bacabal". Foi brincando que eu disse pros amigos, mas virou bordão e é verdade. Não chegavam. E eu me sentia protegida e segura, ao mesmo tempo que só e abandonada, distante do bem e do mal do mundo. Chacinas não ocorriam, os afogamentos eram porque foram banhar no Mearim depois de ingerir álcool e os jovens não morriam antes de seus pais. Ontem, o bebêzinho morto na praia me fez chorar. Encheu os meus olhos e os de milhões de pessoas pelo mundo todo. E antes dele, o rapaz de 19 anos que cuidava sozinho de 8 irmãos (entre eles, bebêzinhos também), que teve a mãe assassinada pelo companheiro no ano passado, simplesmente descobre que tem leucemia. Da esperança de ontem, a morte de hoje. Porra! Porra mesmo!

Lembro bem do que me diziam naquela igreja lotada nas noites de domingo: "Nada ocorre sem a permissão de Deus. Nem uma folha da árvore cai, sem que ele permita". E aí eu me pergunto: o quê caralhos esse rapaz fez pra ver sua vida se esvair, depois de tanto sofrimento? Que pecado mortal tinha aquele bebê e o seu irmãozinho, pra merecerem que seus corpinhos sem vida fossem arrastados pelas ondas até à beira da praia?

Uma vez na calçada, uma tia falava pra Lulu e pra mim, o caso de uma mulher que, logo criança, pegou uma doença venérea que a fez amargar muito durante a vida. E ela pegou essa doença, porque, criança que era, só andava nua no interior do Maranhão. Algum idiota se masturbou numa cadeira e deixou o sêmen lá. Ela era criança. Ela sentou na cadeira. Pegou uma doença venérea. Uma criança. Sem tratamento adequado, sem saberem o que era, foi só piorando. Ela cresceu com sequelas e falou pra alguém, que falou pra minha tia, que nos falou: "Parece que eu nasci só pra sofrer".

Eu era criança também, quando escutei essa história. Ficou, como milhares de outras, rondando a minha cabeça. Não sentava mais em lugar nenhum se não visse que estava minimamente limpo. Fiquei com medo, até que alguém me disse que eu estaria protegida, porque confiava em Deus. Algo me pareceu injusto nessa história: mas a menina também não confiava?

Percebo em mim uma desesperança crescente, que tem toda a razão de ser, alimentada diariamente com os espantos de quem já deveria estar mais que acostumada com sangue. Apesar de entendê-la e justificá-la, não a queria em mim.

A maldade está no homem, a bondade também. Somos a desgraça e a salvação. A justiça além de nós não existe e só o que nos resta é não deixar que a mediocridade se alastre nas nossas tentativas únicas de existência. Que em paz descansem em suas camas, protegidos pelo amor e pela paz, os meninos que não foram tragados pela doença, pela guerra, pelo terror e pela morte. E que - Deus! - não sejam!

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pra não dizer que eu te abandonei, Liga.

Não tenho escrito aqui. Mais uma vez, o tanto monstro de vida que já aconteceu. Desde "A grosseria", onde pus pra fora aquelas metáforas bem verdadeiras, tenho escrito muito mas, como disse, não aqui. O caso é que arrumei um emprego. Muito mais corrido do que jamais imaginei. Se antes eu tinha tempo e não tinha dinheiro pra nada, agora não tenho tempo e nem dinheiro. Ainda não recebi o primeiro salário e meus amigos já me fizeram prometer metade dele em cervejas pra comemorar o trabalho novo.
Depois de tanto tempo e com uma cobrança muito forte (externa e interna), verguei. A ansiedade quase me abateu. Lembrei daqueles dias, naquele jornal, onde acumulava funções acadêmicas e no estágio e ainda era bem menos resistente do que sou hoje. Com pouquíssimo tempo, desisti. Tadinha de mim, mas eu realmente não podia naquela época lidar com aquilo tudo. Hoje eu posso. Hoje eu consegui. Já estou de volta à normalidade, que eu sabia que voltaria.
Nesse meio-tempo, milhares de pensamentos à noite. Zilhares de tuítes, de escritos internos, de pensamentos de chamar. Mas o que mandou em mim foram as saudades. Ahhh, as saudades.
Acabo de chorar, na verdade. Hoje são três meses que o meu amor inventou de ir-se de mim. Três meses de choros convulsivos, que ainda hoje (como acabei de provar), ainda me tomam, mesmo que o mais frequente sejam só pequenas lágrimas ou o marejar dos olhos. Às vezes eu me esqueço que ela se foi. Em ocasiões como essa, onde eu arrumei um emprego e fiquei super feliz e depois fiquei super mal por causa da ansiedade, eu sabia que deveria ligar e contar a novidade pra ela. Aí me lembrava. Aí, óbvio, doía de novo. Ferida aberta, ainda. Só coberta com um pano. Se mexer, claro que vai doer.
Outras saudades também me invadem. Apesar de os anos longe de casa terem endurecido o meu coração, estive várias vezes à beira de ligar pra minha mãe e pedir socorro. Aquela parada de querer o colo mesmo. De lembrar do tempo em que meu coração pesava (meu coração sempre pesou, mesmo criança. Incrível.) e eu sabia que a única solução viável era contar pros meus pais. Eles iriam tomar conta de tudo. Puta que pariu. Como será que é ter essa responsabilidade na vida de alguém, hein? Não. Não liguei pra nenhum dos dois. Não pedi ajuda, nem socorro. Aguentei. Segurei minha onda. Chamei os amigos, escrevi no twitter, pedi abraços e os recebi. Faz alguns dias, senti a normalidade voltar à minha pele. Espero manter-me assim. Ir, mas ter a certeza de voltar: é o único jeito que eu posso.
Também tenho mais saudades que essas descritas. E, nessa parte, também não tenho o que fazer. Andei sonhando umas coisas que me machucariam, se fossem verdade. Vai ver até são, né? Não sei. Não sei de mais nada. Mas sonhar e ter a consciência de que me machucariam, mesmo eu achando que não, me preocupou bastante. Ontem, conversando com amigos a respeito desses sonhos despropositais, me falaram aquilo que eu sei ser verdade: a gente não esquece alguém assim, por querer ou vontade, com o simples uso da razão, com a mera decisão dos pensamentos. E acaba que o que me resta é saber o que sei, o mantra final que me ajuda a continuar na vida, mesmo sabendo que ela pode ser (e na maioria das vezes é mesmo) muito escrota: isso também vai passar. Em alguma hora, vai passar. As coisas vão mudar sorrateiramente de status e, quando eu parar de pensar nisso, vou atinar que o mundo terá mudado. Mais uma vez. Vai ocupar outro espaço no coração. E estaremos todos bem assim.
22:57 e eu já deveria estar dormindo há uma hora. Parece que o jogo virou, não é mesmo, insônia?
A boa noite aos que carregam bons corações.

domingo, 2 de agosto de 2015

A grosseria

Deixei teu nome na cabeceira, antes de dormir
Coloquei-o embaixo da pia, ao lavar a louça
Fechei a porta do banheiro pra ele, quando entrei
Escondi-o dentro da última gaveta do guarda-roupa
Abandonei entre uns papéis velhos do armário

Deixei na lavanderia de molho durante dias
Varri, passei o rodo nele, pano de chão com desinfetante
Joguei pela janela do apartamento
Ficou na gaveta vazia de legumes da geladeira
Não paguei a passagem pro teu nome no ônibus
Botei a vassoura detrás da porta

Teu nome ficou lá
Triste, jogado pras cobras, abandonado
Me olhando com cara de cachorro molhado.

E depois de tantos maus-tratos
Creio, teu nome uma hora sairá pela porta
Mas apesar de todos os esforços
De toda a má-educação
Toda a grosseria e impolidez
Ainda não quero que vá.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Antes de Morfeu chegar, o que chega

"Minha querida, acorde que meu braço não tem mais uma gota de sangue!"

Mais uma vez, dormi muito mal. Não que isso seja uma novidade. Já há muito tempo que eu não sei mais do que se trata esse fenômeno que acontece geralmente à noite com as pessoas, chamado pelos cientistas de "dormir". Ou demoro um tempo ridículo ou durmo e vou acordando sucessivas vezes durante a noite. Geralmente, quando a primeira coisa acontece, aí é tentar ficar de boa, já que já já que aparece uma lapada de pensamentos e eu faço a coisa que eu fui feita pra fazer: pensar até rachar meu cérebro. Eu dava certinho sendo aqueles gregos que não faziam porra nenhuma da vida, não davam um prego numa barra de sabão pra passar o dia todinho pensando nas grandes questões filosóficas. Porra, Platão, apaga esse sol que eu quero continuar dormindo na caverna, caralho!

A parte boa, talvez, é que sai muito texto. Crônicas, contos, uma poesia aqui e ali e vá lá, até canções. E desobedecendo todos os meus elétrons, nêutrons e prótons que gritam pra que eu levante e vá anotar tudo o que o overthinking traz, tento me concentrar no sono, até que os textos param de se completar sozinhos, até que eu não consiga mais distinguir ideias, até que eu mergulhe sorrateiramente no mundo de Morfeu.

A sorte, então, é quando no outro dia, ainda consigo me lembrar de parte daquele mundo que eu pensei. O tema dessa noite girou em torno da minha felicidade e de como as pessoas ao meu redor me percebem e se apercebem dela. Começou isso com uma lembrança: o dia em que o pastor da minha ex-igreja foi falar um assunto com minha mãe, na minha casa, e a sua esposa foi junto. Eu já tinha saído da religião já fazia tempo e como um pacto não falado, no meio daquele turbilhão de culpa e pressão externa, não saia de jeito nenhum pra festas ou qualquer outro evento social. Por isso mesmo, muita gente nem imaginava que eu tivesse deixado de ser evangélica. Bom, os pastores sabiam. E nesse dia, a pastora falou algo que ficou bem marcado pra mim. Eis o diálogo mais ou menos fidedigno:

" - Irmã, tudo bem contigo? (Ela sabia do monte de merda que eu tinha passado um tempinho antes).
- Tá sim e com a senhora?
- Ótima. Você tá feliz, irmã?
- Estou sim, graças a Deus!
- Não, irmã. Não está! Só é feliz quem tem Jesus e a irmã não tem mais."

Obviamente que aquela conversa me constrangeu, bem ali, no raro sossego do meu lar, com alguém que estava fora dele. Não teria atrevimento o suficiente pra responder à pastora como eu deveria e escapei da situação com sorrisos amarelos, mesmo vendo o sorriso verdadeiro dela. Não era um disparate o que me dizia, na sua percepção. Não interessava que eu tivesse respondido com toda a sinceridade da minha alma que estava feliz. As coisas tinham começado a se estabilizar, eu tinha voltado a fazer planos a médio e longo prazo e apesar de muitas questões, sentia que melhorava a cada dia e que rumava firme à vida que eu queria e estava pronta pra viver, como de fato foi. Mas não, eu não sabia de nada. Jovem e tola. "Como alguém pode ser feliz se não for desse jeito?"

Hoje, no entanto, sei que felicidade é algo que incomoda ou que, no mínimo, traz alguns questionamentos. Não foi pouco que eu ouvi perguntas sinceras, de pessoas que não estavam com inveja, mas realmente curiosas do porquê de eu ser feliz. "Menina, porque tu é assim, hein?". Não me incomodam, a não ser que eu sinta inveja, recalque, qualquer coisa do tipo no questionamento. Mas eu sempre fico pensativa depois de uma questão dessa. Sempre há um tom de que aquela felicidade, alegria ou seja lá o que se chame, é uma coisa inerente. Eu sou assim, talvez tenha nascido com isso e depois de alguns percalços no caminho, desfruto. Olha, não é bem assim.

Pra eu dizer hoje que sou feliz, sem aquela dúvida pairando no ar, sem questionar pra mim mesma a legitimidade disso, demorou, amizade. Forcei a barra pra caramba e doeu muito, muito mesmo. Foi uma coisa conquistada, uma decisão diária. Lembro bem das vezes que eu tive que dizer pra mim mesma: "Você vai fazer isso nem que tenham que te apagar com sossega-leão depois". E, olha só, apagaram mesmo. Lembro das noites que chorei até dormir (sdds dormir), sentindo algo estarrecedor e lancinante, sofrendo calada, sem chamar ninguém. Era uma das técnicas pra não piorar, pois eu sabia que se chamasse por socorro, era caixão e vela preta, morreu Maria-preá sem choro, era tchau e bença. Chamar por alguém era sinônimo de parar de lutar, era deixar aquilo tomar conta e aí sim era a merda muita, por que eu saía da realidade e parava, mesmo que momentaneamente, de ter o controle sobre minhas ações, pensamentos e percepção do mundo. Era por isso que eu tinha que resistir.

Não sei, quando você passa por um tipo de sofrimento tão intenso quanto esse, as mínimas coisas são comemoradas. Imagina aí como eu fiquei no dia que eu consegui contornar pela primeira vez uma crise? Ou o dia que eu fui pra escola depois de 3 meses sem pisar lá? A normalidade se tornou um prêmio pra mim. Enquanto todo mundo voltava pra casa fatigado, resmungando, eu olhava pras pessoas e ria comigo mesma, satisfeita por não estar sentindo nada.

É, realmente, tudo se perspectivou. Tudo o que me desse o mínimo de prazer era supervalorizado. Isso foi até um problema durante um período, por que eu já não via sentido em "perder meu tempo" em coisas como estudar, por exemplo. Quase reprovo no último ano do ensino médio, por que chutei mesmo o pau da barraca. O que era ficar horas estudando naquele ritmo frenético quando eu podia me ocupar com atividades mais agradáveis? Eu lembro de sempre cabular na cara-dura os horários antes e depois do intervalo, com a complacência de professores e do diretor, que até vinha bater um papo às vezes. Todos se interessavam pelo que eu tinha dizer e eu, compreensivelmente, me sentia como uma heroína que tinha derrotado o chefão da última fase.

Mas, para o bem da verdade, tudo mudou mesmo quando eu internalizei de que eu era a responsável por mim. Exorcizar meus demônios, ficar em paz com meu passado, olhar pro futuro e seguir adiante, não importasse o que viesse. Não é fácil e continua não sendo. Ser feliz, pra mim, não veio de graça. Deu trabalho, mas o esforço agora é no automático e a lida compensa bastante. Hoje estou mais calma, mais resiliente aos percalços (sempre muitos!) mas tem horas que eu me sinto absolutamente cansada. É a hora de lembrar: vale à pena me cansar de lutar por mim, já que eu sou a única pessoa que pode fazer isso. Não canso, porém, de repetir: minha felicidade é racional! Não me desumaniza, não me torna melhor que ninguém, não me idiotiza nem robotiza. Não sou a Mary Poppins nem a Pollyanna. E é por isso mesmo que essa decisão precisa ser lembrada constantemente. Keep swimming. :)

PS: Senti incômodos depois que publiquei esse texto. Principalmente por ter rasgado no Facebook, coisa que não costumo fazer. Quem é leitor do blog (!) ou me conhece um pouco mais que superficialmente, pode entender melhor o que eu queria falar. A questão toda do texto era que, pelo menos na minha experiência, a felicidade é algo a ser trabalhado diariamente de maneira racional. Não é você simplesmente pesar os fatos que acontecem na vida e decidir que, por eles, você pode ser feliz. Se for por aí - se eu fosse por aí - teria muito mais motivos pra estar triste do que alegre, pra falar a verdade. Talvez seja preciso que você tenha que se enganar, rasgar a razão do desespero e ressignificar as coisas pra poder ter um pouco de paz.

Também me incomodei por não ter citado em momento algum que essa conquista de hoje não foi um esforço puramente pessoal. Depois que fui acometida pela síndrome do pânico, o processo de cura foi longo, custoso e principalmente doloroso. Mas eu não estava sozinha. Felizmente, a minha família, amigos e dois profissionais excelentes vieram em meu socorro. Aos trancos e barrancos, investimos dinheiro, tempo e paciência e pudemos ver os frutos da minha melhora. Obviamente que nem o melhor psiquiatra ou psicólogo do mundo poderia fazer um bom trabalho se, em primeiro lugar, eu não estivesse mais do que disposta a levar um tratamento à sério. Estava. E essa foi a minha parte da decisão de parar de sofrer daquela forma. Sei que falar disso é um assunto complicado. Tenho absoluta empatia por quem sofre de qualquer sofrimento psíquico e sei que a minha experiência não é universal. Muita gente sofre de mais de um transtorno e as dificuldades são enormes de acesso a um tratamento adequado. Dinheiro, apoio emocional, distâncias geográficas (eu, que morava no interior, tinha que me deslocar toda semana pra capital, longe, pra fazer as sessões) e profissionais verdadeiramente competentes (me meti em umas duas enrascadas antes de achar). Isso fora todo o estigma posto em cima de quem sofre, mesmo que esses tipos de doenças sejam cada vez mais comuns em pessoas cada vez mais jovens, como no meu caso. Aparecem pessoas muito bem intencionadas, mas elas estão submersas no senso comum. De repente, a tua doença é culpa tua. "Tenha força de vontade!", "Se você tivesse um pouco mais de fé...", dentre outras bobagens que nos dizem. Pra mim, a religião em que eu estava passou a me fazer mal. Meu transtorno foi atribuído a alguma espécie de possessão e eu fui submetida a coisas que é melhor pra minha sanidade nem lembrar, por pessoas - friso! - muito bem intencionadas (ou não, né? Quero crer que sim.)

Agora com algumas questões pontuadas, volto a repetir: minha felicidade foi conquista. Sentir-me bem com a minha existência hoje e já há algum tempo deu trabalho, mas valeu à pena. Não serei leviana com a minha história de não me sentir orgulhosa disso. Se pra outras pessoas, essa satisfação sempre foi uma coisa que rolou, ótimo. Ótimo mesmo. Tenho arrepios em pensar numa sociedade onde todos fôssemos doentes e incapazes de experienciar isso desde cedo.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A procura


Teu nome é do tamanho de um suspiro. Tão delicado quanto uma flor. Teu nome é a luz que me clareia. Teus olhos, tão lindos, estão nos meus, me chamando de meu bem. Teus olhos chamam. Entro no teu coração, o culpado, pra ficar lá, quieta, esperando tu chegar. Os pensamentos de chamar te chamam, te gritam. Quantos pensamentos de chamar já não te lancei? Não há como escapar do teu encanto. E eu jamais quis fugir dele, meu amor.

Tu é a fogueira. Tu é o fogo. Tu é um estado. Tu é a tua mão. Uma grande metonímia humana. O todo pela parte, a parte pelo todo: tu era teu coração e teu coração era tu. Não se cala. Teimosa, não se cala. Nunca o fez. Jorrou em mim sua vida como quem esquece dos seus efeitos. Feiticeira nata, das que jogam feitiços sem saber. Meu nariz deteriora sem cheirar teu cheiro, por que foi feitiço forte, conjurado desde a pedra fundamental da Terra, de que teu olor me faria voltar pra ti, mesmo que eu andasse e percorresse todos os confins desse planeta. E eu feneço a cada dia que sei que tu, ingrata, foi embora de mim.

Há algo no firmamento estranho hoje. O céu esteve mais azul do que antes e ventou como não costuma. Sentindo tu, mulher, em meus sentidos, respirei daquele ar, te absorvendo, enchendo meus pulmões de ti, procurando desesperadamente o teu cheiro. Só enquanto eu respirar, vou procurar por ti. Eu sempre vou procurar por ti. E mesmo achando teu cheiro só nos ventos que não costumam, resisto ao teu conjuro e torno a viver.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Pensamentos de fim

Esse 2015 não tá de brincadeira comigo. Falei com uma amiga que ele estava sendo, talvez, o oposto exato do que me aconteceu em 2014. Aquele ano das realizações, do imprevisível, da cura, dos sonhos concretizados. Esse ano, mesmo que ele tivesse sido maravilhoso em todas as áreas da minha vida, fez a terrível falta de levar a pessoa que eu mais tinha conexão no mundo. Aí não precisa falar mais nada, basta ver meus dois últimos textos nesse blog pra saber o quanto foi algo devastador. E ao leitor assíduo, que creio não possuir (não por falsa modéstia), é só lembrar das várias menções que fiz à minha avó nesse tempo todo em que me derramei, nesse blog.
Nesse dia mau, na madrugada, tremia da cabeça aos pés, com celular na mão, tentando escrever alguma coisa, me informar melhor sobre o que tinha acontecido. Felizmente uma outra amiga dormia comigo e dizia aos amigos mais próximos sobre o ocorrido. Minha mãe tinha pedido a ela que perguntasse qual deles poderia me levar à minha cidade de carro. Já previa o quão doloroso seria a viagem, aquelas cinco horas inesquecíveis, dentro de um ônibus cheio de gente, aparentemente indiferentes aos meus choros abafados, aos gritos calados que eu dava, àquela dor lancinante que ia comigo. Quis me poupar, mais uma vez. Eu te entendo, mãe. Obrigada.
A minha amiga mais chegada, uma das irmãs que eu fiz aqui, me disse algo que eu vou demorar a esquecer, ainda durante a madrugada: "Escreve." Vaza a tua dor, menina. Enquanto eu ainda tremia, tentava comunicar aos meus amigos o que se passava. Inútil. Quando abri umas três conversas pra comunicar e gritar por socorro, nem a coordenação motora, nem as lágrimas me deixaram escrever algo que tivesse nexo. Sem conseguir dormir até a hora de viajar pra cidade e bem mais calma, mandei uma mensagem pra alguém que me importo muito. Foi só aí que eu consegui fazer o que minha amiga, que me conhece muito, me aconselhou. E nos dois dias que se passaram lá, vivendo um de meus piores pesadelos, quase sem forças físicas, era só pra essa pessoa que eu conseguia colocar pra fora. Obrigada. Serei grata pra sempre, tenha certeza.

A gente parece que tenta se enganar. A gente se repete umas coisas que tão se vendo que são mentiras, a gente só não quer admitir. "Nem sei porque tô te mandando isso". Mentira, clara mentira. Sabe sim, sempre sabe. Era pra pedir o socorro e ter o alento. Era pra dizer que algo muito mais importante tinha acontecido. Era pra deixar claro que, mais do que nunca, eu precisava do meu lado. E as pessoas que eu lembrei, foram as que eu queria ter ao meu lado. Que segurassem minha mão. Pelo horário do acontecido e pela distância e outras impossibilidades, os abraços dos queridos ficaram retidos por alguns dias.

Outra mentira que eu sustentava pra mim era a de que eu estava bem. Não estava. Passei um mês entre uma sensação de normalidade que me era (e ainda me é) estranha e a tristeza profunda, acompanhada de sonhos tristes em que acordava chorando. As coisas não se escondem. Se está em nós e nós calamos, vão sempre pra onde podem falar. E esse mês, falei, claro, mas muito pouco do que eu tenho a dizer. E me afundava em silêncios de dias inteiros, onde não abria a boca, mas o coração sangrava palavras e mais palavras que não se atreviam a ganhar forma. O meu novo estado veio à tona: a não-convicção do que está além desse plano me fazia olhar aquela situação de um modo incômodo. Incomodei-me com a violência simbólica que tinha perdido a sutilidade, justo naquela hora em que estava emocionalmente devastada. Tive que segurar a minha raiva pra não dizer grosserias a quem também estava sofrendo. Mas até que ponto era justo pra mim, ainda ter que passar por mais isso? Essa raiva ainda me persegue. Em sonhos, nas lembranças, nas menções. Sou pessoa difícil de deixar pra lá. Cheguei a sentir inveja da fé das pessoas. Quis, como quis, acreditar que ainda teria oportunidade de vê-la em mais outro lugar, assim como todas aquelas pessoas. Depois, mais calma, deixei de invejar aquela fé. Soube, do fundo do meu coração, que também teria consolo. A nossa história de vida regada de amor me curaria e que a existência dela tinha sido o mais importante, mais até do que seu fim, mais até do que qualquer expectativa sobre o futuro.

Ao chegar nessa cidade, um grande amigo me resgatou de casa e fomos passear, pra conversar. Ainda tinha que falar tanta coisa pra ele. Tinha acontecido tanto e a gente ainda não tinha tido tempo pra conversar direito sobre as coisas. E uma das conclusões da conversa, era a de que a fé era algo que ajuda muito as pessoas, mas, em compensação, seria um desserviço, caso outra morte ou algo trágico em outra ocasião acontecesse. A minha morte, por exemplo. Depois que a vida jogou todo o peso do mundo em minhas costas, ainda bem cedo, eu compreendi que eu estava sujeita a tudo. E não é mais impensável pra mim que a qualquer momento, por uma coisinha de nada, a minha vida se acabe. Infelizmente, eu tenho a sensação de que muitos dos que me amam, por causa da fé, cometeriam a injustiça de desconsiderar toda a minha vida, história e felicidade, apenas por que eu não me encaixo mais nas coisas que eles acreditam. Será se meu pai e minha mãe acreditam que eu iria diretamente pro inferno? Sim, muito provavelmente. Queria dizer a eles que não. Não pretendo morrer tão cedo, mas se acontecer, não, meus pais. Não, família. Eu vou apenas parar de existir e a minha existência foi boa, eu fui feliz. Alegrem-se por isso. Mas será um assunto que ainda manterei calado por um tempo. Coisa sensível demais pra pai e mãe.

Esse texto está triste demais, eu sei. É mais um daqueles escritos longos, de desabafo. Um dos motivos de eu não divulgar mais fortemente esse blog, já que quero mantê-lo como refúgio. Mas "a boca fala do que o coração está cheio". Ainda não consigo pôr só o que é e tem de bom pra fora. Ando muito triste com o rumo das coisas, em âmbitos muito maiores do que essa vidinha que eu levo que, colocando tudo na balança, é bem boa e confortável. O que me salva, talvez, é que eu sou uma criatura muito cheia de esperança. Enquanto eu tiver isso, vou conseguir olhar pra frente sem medo.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

15 dias de palavras acumuladas

Pensei. Pensei não, tive a certeza. Iria me afogar num mar de palavras não jorradas. Eu nem sei direito desde quando estou com elas represadas, mas já aconteceu de TANTA coisa, que fica difícil até colocar pra fora e tentar organizá-las na ordem em que elas devem vir.
A mulher minha tão amada, o meu coração em outro corpo. Ela caiu, sangrou no banheiro da capital. Eu fiquei no escuro por dois dias, até que minha mãe chega com a notícia que me gela toda a espinha dorsal, sem clemência. Vou atrás de saber o que houve, sem muito sucesso. Fico com as parcas coisas que minha mãe também sabia. Escorregou não se sabe como, caiu no chão do banheiro frio, bateu com a testa em algo que eu não sei o que é, abriu o buraco na cabeça dela. 84 anos. Osteoporose. Era capaz de ter quebrado um osso importante, ou desimportante que fosse... Ia ser mais difícil. Disseram que teve momentos de confusão, que não reconheceu as pessoas por alguns momentos. Depois voltava à rotineira lucidez. O meu coração sentiu uma dor tardia e bem familiar, sentida alguns dias antes, quando ela estava doente nas minhas mãos. Dessa vez, o conforto da presença era impossível. O amor, no entanto, estava lá com ela e continua, enquanto se recupera firmemente, muito mais resistente do que todos nós imaginamos. Vai sair dessa, ela.

(Era uma quinta, ao meio dia, que ela me disse dela.)

***

Um dia depois, foi um dia ocupado. Mesmo com os pensamentos direcionados a ela, o coração estava ansioso pelo que eu estava esperando desde novembro do ano passado, quando, em um dos meus famosos rompantes, comprei as passagens na promoção. Só era pra março do ano seguinte, mas eu estava disposta a esperar. Não deu pra março, por que a vida não deixou. Seria pra maio, show do Buena Vista Social Club e meu aniversário no fim, antes da partida. Mas nem nas mais loucas das minhas alucinações, eu poderia prever o que estava prestes a acontecer. Por um descuido terrível, quem iria me abrigar nessa cidade fria, longe de casa e totalmente desconhecida pra mim, se esqueceu que iria fazê-lo. E o pior: viajou pra outra cidade no mesmo dia da minha chegada e sequer me deu opções, ou me ajudou a procurar um plano B. Eu acho que eu nunca escrevi um "Tá bom" tão cheio de decepção na minha vida. Apenas por um desencargo de consciência, poucas horas da viagem, eu pensei, no shopping: "Droga! Não passei pra ele o itinerário... Como é que ele vai me buscar sem saber que horas eu chego?". Pra, já na sala de embarque, depois de não ter mais volta, eu ver a mensagem de que nem sequer estaria aqui.
Felizmente, eles ainda não pesam as pessoas antes de embarcá-las. Eu não pagaria excesso de peso, por que eles nem deixariam eu entrar. Como o avião subiria ao ar, se só o meu coração pesava mais que ele próprio? Era um contrassenso físico, a minha presença ali. Com uma resiliência que eu jamais achei que fosse ter numa situação dessas, embarquei, sem ter a certeza se o plano b que eu procurara rapidamente, antes da confirmação de que não me receberia, realmente se concretizaria.
Se tem algo que é constante na minha vida, é que eu sou muito friorenta. Mas sempre aparece, do nada, um cobertor pras friagens. Numa coincidência incrível, uma conhecida embarcou também e pedimos pra sentar juntas. Aquela moça não sabe o bem que me fez, ao estar lá conversando comigo e não me deixando sozinha com meus próprios pensamentos, que eram difíceis demais na hora. Ao mesmo tempo em que também deitei ela no meu peito, acalmando, porque o seu medo das decolagens e aterrissagens eram de cortar o coração. Nos ajudamos e nos fizemos companhia. Conversamos muito e o tempo pôde passar mais rápido e, por alguns instantes, aquela lembrança de que algo estava errado, parava de me incomodar um pouco.
Felizmente, a mão amiga veio em socorro a tempo. Claro, não dormiria na rua, mesmo que não houvesse essa mão, mas iria ser mais complicado me manter durante 10 dias aqui, sem ter feito uma programação financeira que incluísse também a hospedagem. Ligações precisariam ser feitas e, claro, eu ia escutar muita, mas muita coisa nelas.
Durante muitas ocasiões na minha vida, eu deixei que coisas passassem batidas. E eu aprendi que uma porrada de revide tem o seu prazo de validade. Depois da oportunidade perdida, você pode até ainda querer dar, mas ela nunca terá o mesmo efeito. Parecia que não tava acontecendo, apenas. Que era algo inventado pela minha imaginação novelesca. Eu lia as mensagens que me mandava e quando falou que iríamos nos ver durante a semana, pensei em dizer "Não precisa... Deixa pra lá. Não vale mais à pena". E meus dedos ainda escreveram, pra depois apagarem, arrependidos. Não é assim. Não sou assim. Vim de tão longe pra vê-lo e eu sabia que merecia uma explicação pessoal. Que, se quisesse, se tivesse coragem de me enfrentar, eu estaria disposta a deixá-lo se explicar e, talvez, até perdoar.
Mas a grande verdade é que eu queria perdoar. Eu não entendi porque tinha agido tão displicentemente comigo. Parecia que tinha apenas aberto uma janelinha no seu cérebro e me jogado pra fora dele. Parecia que tinha pensado: "Não vou lidar com isso agora. Foda-se". Quando me pediu desculpas por mensagens, depois de uma pequena alfinetada minha, entendi que as barreiras linguísticas estavam presentes: aprendi na terrinha que não se pede desculpas pra coisas grandes. Desculpas são pras coisas pequenas. Pras coisas grandes, o que se pede é perdão. rs Também entendi que aquilo não condizia com o seu próprio caráter, que algo muito maior deveria estar acontecendo pra ter agido daquela forma. E, por mais que eu pensasse que é pelo muito afeto que nutro, que iria querer perdoar de qualquer forma, sabia que não estava enganada.
Desci as escadas do prédio do meu novo abrigo, com um coração que novamente não cabia em mim. Lá estava ele. O mesmo casaco vermelho que usava nas fotos de perfis. Não havia o que tirar nem pôr do que se mostrava. Nos sorrimos e nos abraçamos. E, já no abraço, eu senti aquele peso saindo todo das costas. Já no abraço, eu entendi que aquilo seria resolvido, de alguma forma, já que teve coragem de vir até mim, coisa que eu temi que talvez não tivesse. Coisa que eu, no passado, já não tive.
Caminhamos e eu fui escutando muitos pedidos de desculpas. Mas ainda precisava falar algumas coisas que ainda tinha. Do fundo do coração, o objetivo não era castigá-lo mais, - por que era visível o quanto estava derrotado pela culpa - mas deixá-lo ciente de possibilidades que eu acho que não lhe passaram. Antes de tudo, eu queria entender, pra perdoar direito, de coração, de todo.
Eu tremia de frio. Ele falava de coisas que eu não sabia e eu imediatamente reconheci naquela história, uma outra, bem longa e antiga, que já tinha sido minha há anos atrás e que ainda não tinha deixado totalmente de ser. Não foi preciso mais nada. Estava perdoado. Não tinha como compreender mais o que estava acontecendo. E se havia algum resquício de mágoa, também se foi. Voltou aquela vontade esmagadora de enchê-lo de beijos, de dizer que tava tudo bem, de abraçar, de cometer um atentado ao pudor naquela lanchonete. hahaha
Uma hora, depois de eu ter falado como se eu soubesse que perderia a voz no outro dia, ele me fez um elogio e eu parei o movimento pra colocar o casaco na cadeira bem no meio. Fui, com velocidade, dar o beijo que guardava na vontade há um tempo irracional. Segurava a mão dele, tentava me aquecer. Era o nervosismo, sei lá. Como era bom o beijo dele... E eu temia tanto de não dar certo, sabe? De não bater os santos beijoqueiros... Mas não. Se eu pudesse, passaria esses dez dias beijando e muitos outros mais.

Voltamos os dois, nervosos, de braços dados, no frio (pra mim). Nos abordou um cara pedindo moedas pra completar a passagem e eu não senti um pingo de medo. Chegando no meu prédio, não resisti: agarrei, puxei pra parede e ficamos lá, como dois adolescentes, dando amassos no muro do prédio perto de onde a moça estava.

(Era segunda à noite. 14º e eu usava luvas.)

***

Puta que pariu. Era show do Buena Vista Social Club. O único e o último que eu teria oportunidade de ver na vida, já que era a Adiós Tour, passando por algumas capitais brasileiras. Lembro de ter visto no feed de notícias, o moço confirmando a presença no evento e de ter planejado a viagem justamente pra coincidir com a data. Sem grana, deixei pra lá a oportunidade de comprar o ingresso pela internet e, quando eu fui atrás no sério, já tinham esgotado todos. Fiquei triste. Mas, por uma sorte sem fim, consegui comprar um dos últimos ingressos. Chorei, dancei, gritei, me acabei. Enchem os olhos só de lembrar. Tinha hora que eu ficava só lá, parada, embasbacada, contemplando. Absolutamente sem acreditar. Que noite linda. Que noite linda.

(Era uma quarta à noite.)

***

Carinhos, mãos, línguas e dedos. A própria pele. Mamilos, cabelos, saliva e até suor, mesmo no frio. Fluídos. Era inacreditável. Eu disse. Era nervosismo, ansiedade, era o novo, tão esperado. Foi descanso, foi carinho, foi orelha que não se aguentava, foi abraço, foi conversa. Foi tudo. Foi um. Foi pouco.

Foi muito.

(Era quinta, numa manhã de manifestos.)

***

Danei a falar. Mas é que passava tanto tempo calada ou conversando só comigo mesma, nas andanças intermináveis ao centro, que parecia que nunca mais eu iria ter esse poder de novo e tinha que aproveitar os últimos momentos. A estrada era tão linda. Vieram histórias, avós (a minha e a alheia, que eu aproveitei por uns dias), avôs e outras amenidades. Veio tanta coisa a ser lembrada. Não sei. Era como se não fosse dar tempo pra contar tudo o que eu tenho pra contar. É, eu estava certa. Não deu. Mas eu sei que nem se fosse um mês de contatos ininterruptos, também não daria. Devo ter enchido o saco de tanto falar, mas não conseguia me segurar. Talvez fosse de novo o nervosismo ou talvez me achasse muito à vontade ao seu lado. Uma mistura dos dois.
Pegamos a estrada pra uma viagem curta, bonita. No começo dela, as urgências, as provocações. Também não deu pra segurar. Não con-se-gui. Não estava em nenhuma prova de resistência... rs
Não fazia tanto frio como eu imaginei. Nenhum dos dois casacos pros diferentes frios foi necessário. Ficamos vendo as cidades que dava pra ver da Serra, depois de um almoço faraônico, onde eu pouco comi, com esse meu estômago de passarinho. O moço sentia dores físicas. Eu pouco podia ajudar.
Voltamos. Passamos pela cidade onde morou maior parte da vida. Pegamos a estrada de volta e só o que eu sabia era falar. Meu deus... Que perversidade. Que bom que, pelo menos, o moço disfarçou a encheção de saco que aquela falação toda se tornou. :D

Chegamos. Estava mal. Conversamos. Ia ficar tudo bem. Não precisa nem pedir pra compreender. Já estava compreendido há muito tempo, desde que eu soube.

(Sábado à noite. Fazia frio, mas o coração batia quente.)

***

Meu aniversário. Saí de casa com uma coisa tão boa nos sentidos. A cidade foi tão boa comigo esse dia, que eu mal acreditava na impossibilidade de estar ali, justo nessa data que eu gosto tanto. Fui, mais uma vez, direto ao centro. Mesmo num curto período de tempo, já sabia onde eram meus refúgios: o Mercado Público, a Casa de Cultura, o banco da praça e o próprio caminhar. Depois de umas confusões, peguei um barco pra cidadezinha do lado. Coisa mais fofa, aquela orla. O vento era frio, mas fazia sol e eu tinha a agradável sensação de estar sendo presenteada pelo tempo. Não foram poucos os pensamentos olhando praquele rio, nem poucos os sorrisos que meus amigos e familiares próximos, mesmo de longe, me provocaram. Estava tão sozinha, mas ao mesmo tempo, tão completa... Naquele momento, eu me bastei. Sentei num dos bancos de uma estrutura que havia e passei um tempo imprudente com aquela sensação, entregue a mim mesma, me sentindo feliz. Esqueci de tudo por não só um instante. Fechei os olhos e senti a leveza de estar, ser e continuar sozinha o resto da minha vida, no sentido mais primeiro da solidão, mas ser o suficiente.
Havia um restaurante pequeno, mas muito acolhedor na orla do rio. Entrei, me sentindo confiante. Era relativamente chique pros meus padrões, que não costumo frequentar esses lugares assim, pela simples ordem da vontade. Era meu dia, eu podia tudo! Alguém que parecia ser o dono ou o gerente do lugar me atendeu e anotou meu pedido. Eu expliquei como queria o ponto da carne e acho que devo ter falado demais, já que ele falou, já meio irritado: "Entendi, entendi!"
Logo após, um garçom muito amável me atendeu. Ria pra mim com um sorriso bonito, sincero. Fez-me sentir como alguém que era querida ali. E não, ele não estava dando em cima de mim. Estava tão somente me tratando bem, com amabilidade. Deve ser um bom anfitrião, esse senhor.
Voltei à cidade, no mesmo barquinho. Olhando para o rio (era rio mesmo?) e percebendo que eu tinha uma sorte danada de estar ali, onde eu queria estar, fazendo o que eu queria fazer.

Mas ainda não era o suficiente. Eu ainda o queria. Três encontros esparsos, poucos, que não me mataram uma vontade desgraçada que eu carregava pra onde eu ia. Tinha se tornado inerente, a vontade. Esperei, esperei, esperei... Nada. Queria o abraço esmagador que tinha me prometido, mas não só ele. Quis muito, acabei ficando sem nada. E o mais louco é que eu fui explorar a cidade à noite, mesmo com o meu medo provinciano. Vesti um vestido lindo, me pintei, botei o salto e saí no meio do mundo, atrás de alguma diversão no trecho boêmio da capital. Olhei praquele lugar, a única parte que me pareceu agradável foi uma livraria, onde me comprei um livro do Galeano. A atendente me indicou um barzinho legal, mas tava fechado... Acabei entrando num que, aparentemente, estava vazio. Não estava. Assim que sentei, o garçom veio me dizer que, nos fundos, estava tendo um grupo de samba sem couvert (sei lá como se escreve). Mais gente, mais animado. Já que tá no inferno, dá logo um abraço no capeta. Fui lá. Chamei a atenção. Talvez muito mais por ser uma mulher sozinha do que por quaisquer de meus atributos. Claro, tinha o fato de eu ser diferente de todas as mulheres que estavam por lá. Todas as poucas seguiam o padrão da mulher branca, loira e de olhos claros. À parte do resto, havia um grupo de umas dez pessoas que comemorava o aniversário de um deles, também. Inclusive, cantaram parabéns pra ele e eu lá, fazendo de conta que era pra mim, também. Sambava lá, só. Não me lembro de já ter feito isso. Estava estranhamente feliz. Era como se eu tivesse um segredo muito legal. Não estava bêbada, tampouco estava sóbria. Alguns chopps e eu, sabendo da minha pouca resistência, resolvi parar. Afinal, ainda era cidade desconhecida, eu ainda estava sozinha, ainda teria que voltar pra casa em um estado apresentável.
Até que se manifestou e eu, depois da raiva inicial, entendi. Falei isso: entendia. Entendia. Puta que pariu, como que eu poderia não entender? Queria ter lhe dado um abraço naquela hora. Não o mesmo, das outras vontades.
Foi quando eu joguei logo a farofa no ventilador, disse que amava mesmo, tava nem aí. Mas que também sabia o que era aquilo. E eu tinha plena consciência, mesmo ébria, que tudo o que foi possível viver ali, teria sido impossível se dependesse de mim, se estivesse ainda acometida. Por isso sabia que ele era corajoso. Por isso disse que tudo estava bem, porque realmente estava. Por isso que sabia que precisava dar um freio à paixão, mas não ao amor.

Quem tem pressa é a paixão.

(Era segunda, foi dia e noite. Completava meu primeiro quarto de século.)

***

Pela manhã, depois da noite parcialmente dormida, decidi não sair de casa. Tinha a mala pra organizar e não lembrava de ter algo que eu realmente gostaria de fazer, que ainda não tinha feito, na cidade. Se sobrou, fica pra próxima. O voo seria à tardezinha, no crepúsculo. Lembrei que ele nem sabia e me despedi, sem pensar que ainda haveria qualquer possibilidade de encontro naquele dia. Saio hora tal, chego hora tal. Beijo. A gente ainda vai se ver... Etc. O susto quando disse que daria tempo. Eu não criaria expectativa, já que dependia de outros fatores, como o transporte intermunicipal. Se desse, seria ótimo. Se não desse, tudo bem.

Deu. Ainda bem que deu. Eu já tinha estourado o horário do embarque. Já tinha despachado mala, feito check-in, tudo no mundo. Mas aquela viagem ainda me devia um beijo de despedida. Meu coração batia descompassado. Ao mesmo tempo que queria demais vê-lo, se eu perdesse o voo, eu estaria só com as roupas do corpo numa cidade de frio insalubre pra mim. Chegou e eu tive que segurar minha onda. Beijei, mesmo com todo aquele papo de deixar paixão pra lá. Eu sou uma sem palavra mesmo! E não foi só um, foram vários! Hahahaha
Subi no avião da volta com uma sensação que poderia ser considerada oposta completa da da ida. Se o coração estava pesado, voltou leve. Voltou feliz. Voltou sabendo que fez o que tinha que fazer.

(Terça, dia do pôr-do-sol mais lindo da vida.)

***

Esse escrito já é de muito tempo, dado a tudo o que já aconteceu depois. A mulher dos primeiros parágrafos, se foi. Esperou que eu chegasse, pra não atrapalhar essa viagem, eu acho. Olho todos os dias pra ela, em uma fotinha mental e me declaro como sempre, como sei. Quanto ao moço, sua mão estava longe quando tudo isso aconteceu, mas senti ela segurando a minha, como várias outras que seguraram também de longe.

Não tinha intenção de publicar esse escrito. Tem demais. Poderia deixá-lo guardado, pra mim, em algum lugar secreto. Mas esse lugar é um dos meus lugares-abrigos. Sempre me senti livre aqui, neste blog. Não queria fugir à regra logo agora, depois que coisas importantes me foram negadas, como a presença. rs Acabaram entrando muito mais do que 15 dias de palavras acumuladas, eu sei. Mas mantenho o título original, escrito ainda no frio, quando tentava colocar pra fora toda a minha perplexidade diante de tudo. E não é que tudo terminou bem?

Sou eu aqui, mas não definitiva. E que venha o melhor!

(Quinta. Sentindo o calor que eu não costumo sentir, na minha terra, no meu aconchego.)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A repetição


Interessante. Eu estou pra morrer de palavras há mais de mês. Por um infortúnio dos diabos, acabei ficando sem um dos meus únicos derrames sérios: este blog, por conta de uma queda que eu dei no meu notebook, há um tempinho, já. Sem perceber, fui escrevendo muito na cabeça. Fazia, todas as noites, como que para copiar aquela época sabida, um ritual de sentar numa cadeira de plástico (que eu não tenho), em frente a uma penteadeira que servisse de escrivaninha (que também não possuo) e despejar letras e letras no caderno de número 6, que foi onde interrompeu-se a narrativa bruscamente.
Interessante porque me demorou a sair esse primeiro parágrafo. E não há texto meu que pode conter o tanto de vida que tenho vivido de maio pra cá. Infelizmente, não só o bom. Houve o choque, a incerteza, a angústia, a dor terrível, o mutismo, a preocupação. Mas também houve a sorte, o acolhimento, a felicidade, o êxtase, as saudades boas, amigos e muito amor. Não. Nenhum texto pode me contar. Nenhuma escrita, por mais fidedigna que seja, não me cabe. Os dias passam e parece que expando em três, mas nem essas duas moças extras dão conta da quantidade absurda de alma que está aqui.

Mas a necessidade obriga.

Ontem, uma conta ruim se fez: um mês sem ela. Estou aqui na minha cidade e fiz o que seria impossível se ela estivesse aqui. Já é o terceiro dia que eu estou e ainda não pisei na casa dela. Ainda não fui lá. Não sei direito. Dói, né, porra? Dói que avimaria. Desmantela mesmo. Como, por tudo quanto for sagrado, eu vou entrar naquela casa sem gritar uma esculhambação pra ela, que me receberia dando um pulo da cadeira, bem alto, dizendo: "Ah, vaca prenha..."?

Quando eu escrevo sobre ela, parece que eu estou me repetindo. Parece que eu estou gritando aos quatro cantos o quanto eu a amo, sendo que isso é sabido e notório até por quem me conhece superficialmente. E não só para quem porventura me lê. Por estar escrevendo na cabeça freneticamente, quase sem me dar descanso, tenho a impressão de estar me repetindo nas linhas, nas ideias, nas comparações. Parece que eu já sonhei chorando e, se eu chorar na realidade, não seria o choro original.

Além de tudo, estou temerosa pelos meus planos. Confusa, na verdade. E sei que já está mais do que na hora de trabalhar pra alcançá-los verdadeiramente e não ficar apenas na divagação que, segundo um amigo, é coisa que eu faço demais. Uma coisa inesperada nesse âmbito já me aconteceu que me fez acreditar um pouco mais. Apesar do meu temperamento, muito mais resiliente do que nunca antes, estou evitando algumas coisas. Pode ser que seja só o luto. Pode ser que eu tenha envelhecido um pouquinho mais, sem que tenha sido só pelo meu aniversário. Sofrimento verga a gente mesmo, né?

Dentro em pouco, talvez eu tenha que passar por mais uma coisa que eu juro: não queria. Ter conviver com alguém que eu amo demais, mas que é uma fonte de estresse e de descompasso pro equilíbrio que eu alcancei na minha vida fora de casa, em cidade estranha. É mexer numa logística já muito bem acertada e, pelas condições ainda adversas pra mim, me privar de algo que prezo como quase inegociável: minha liberdade.

Sei que ainda a tenho e que o meu poder de decisões ainda está aqui. Não foi e nunca será tirado de mim. Minha felicidade, certamente, não vai ser menor por isso, porque eu não vou deixar. Vamos atrás das respostas pras novas perguntas. Vamos sonhar mais e ir atrás. Vamos arrancar toda a medida que ainda me paira.

sábado, 30 de maio de 2015

O amor

Quando se pensa em amor, qual é a primeira ideia que vem à sua cabeça? Não, ideia é ideia... Divagação. A pergunta tem que ser mais direcionada: quando você pensa em amor, qual é a primeira pessoa que vem à sua cabeça?

A minha resposta se foi. Um tipo de amor que, talvez, a gente só experimente poucas vezes nessa vida, já não está mais aqui, nesse mundo. A Lulu, a mulher minha muito amada (roubando a frase de Neruda), o deixou na madrugada de um domingo que tinha começado pra mim, inocente e distante da situação, bem feliz. Deixou, por que o seu coração carregava 84 anos de vida. E já tinha sido tanta e tão alegre, que mesmo leve, pesou. Acho que distribuiu tanto amor e afeição, que os músculos que o sustentavam, meio que cansaram de bombear tanto, sabe?

E as lágrimas que quase não me deixam digitar esse texto, me dizem que essa é uma falta que ainda vai se fazer presente por ainda muito, muito tempo. O mais provável é que seja pra sempre. E eu sinto que, a qualquer momento, posso explodir e sufocar de tantas palavras por sair e de tantas lembranças por lembrar. E, de ontem pra cá, quantas vezes não já explodimos, todos?

Há quatro anos atrás, na estrondosa comemoração dos seus 80 anos, nós, como família, pudemos estar todos juntos e celebrar a sua vida, o seu exemplo e o seu amor. Na ocasião, pude falar o quanto ela era - e é! - peça central e insubstituível na minha vida. Veio choro de cá, coisa difícil de sair assim, e veio o seu, bem mais fácil e torrencial, mas ainda assim delicado. O abraço, tão saudoso abraço, chegou. Era só pra dizer: "É tudo verdade. É tudo mais que verdade." Ontem, na viagem mais pesada da vida, eu não tinha dimensão do que ainda estava por enfrentar. Mas tinha. Tinha que te chorar, Lulu, todos tínhamos. Por que a dor não se cabia e precisava extravasar e ainda bem mesmo que extravasou.

Pouco a pouco, vamos todos nós organizando a mente. Filtrando todos os risos, selecionando as melhores gaitadas, ajeitando aqui e ali, tudo o que representa pra nós, como família e tudo o que representa individualmente. Tu era uma pessoa-refúgio. Tu era um lugar, Lulu. Tu era um bálsamo. Tu era mais do que a matrona bondosa de 84 anos. Tu era a minha amiga mais íntima, mais besta pra me rir, a melhor plateia que jamais existirá. A gente não tinha isso de idade quando tava junta. Passei minha adolescência dormindo contigo, na tarefa doce de ser tua companhia e a tua bengala, de acordar às 5 pra desligar o ar-condicionado no palitinho, porque o controle tinha quebrado. Morria de raiva de acordar contigo cantando a música da mulher preguiçosa que, pensando bem, era só verdades. "Mulher preguiçosa/ Não cose, nem fia/ Se deita na cama/ Se acorda mei-dia..." Só verdades mesmo. rs

E, olha, não foi pouco que essa gata me escatitou. E era coisa que nem dá pra sair rasgando em público não, viu? haha Fora as hilariantes tiradas, num humor tão leve e tão faceiro... Outro dia, a gente sentada na calçada, fofocando horrores da vida alheia (sim), passa um menino de bicicleta, o pneu dele derrapa e ele desvia em direção a uma moto que vinha no sentido contrário. Quase acontece um acidente feio. Depois do grito fino que ela deu, assustada que só ela, gritou pra ele: "- Ei, menino, tu quer que a gente vá tomar café com peta na tua casa, é?" hahahaha E, claro, a gente ficou lá se acabando de rir. E a risada dela tá ecoando na mente, no peito, na alma ferida.

"Tu tem que viver". Ela disse, depois que eu falei um episódio dolorido que tinha acontecido recentemente, à época. Ela sabia que, dizendo isso, estaria passando por cima de todas as convenções, alheias e próprias. Mas ela sabia o que era melhor pra mim. Tive que viver mesmo, absoluta verdade. E a vida se mostrou muito maior do que eu tinha imaginado. Ela me entendia. Ela sabia que podia ser livre. Ela não me julgava e eu retribuía o favor.

Vou sentir falta, vó. Lucila, de luz. Lulu, de amor. Estou mais do que certa de que a senhora teve a vida que quis. E realizou o desejo, o mais profundo e guardado de todos os corações humanos: teve a certeza de que amou e foi amada intensamente. E todo o legado que deixou por onde passou, se explica: era desses casos raros de pessoas que viviam o que acreditavam.

Vou continuar, ainda sem saber como, por que tenho e por que foi o que tu sempre fez. Não serão as últimas lágrimas que derramo por ti, nem as últimas palavras a escrever, nem as últimas músicas em espanhol a cantar. 

"O mundo pode mudar ainda mais, o tempo pode passar, nós próprias podemos mudar, mas a senhora sempre me terá por inteiro. Te amo de todo, por que de todo tu é perfeita. Perfeita até mesmo nas imperfeições. Te amo de todo não por que compartilhamos o mesmo sangue, mas por que a senhora já faz parte da minha própria estrutura. Está dentro de mim, assim como as estrelas estão no firmamento.
O meu amor é teu pra sempre."

Sempre. O amor, esse absurdo de amor, que vai curar.

"Como é que você pôde se perder de mim?"

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Identidade

Sou alma. Matéria
Sou espessa, sou nascer
Sou ideia
Sou abrigo
Contigo. Florescer.

Sou bandeira
Sou amado
Sou culpado
Desmorrer.

Sou a peça
Sou o nado
Sou calhado
Sou querer.

(18/05/15)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Pollyanna adulta

A vida de desempregada não é legal. Não precisa ser nenhum mestre Yoda pra saber disso. Talvez, a única vantagem, seja o tempo que se tem pra fazer as coisas que você gosta, mas nem isso é bem aproveitado se você está constantemente preocupada com as contas, com o rico dinheiro que você não receberá no quinto dia útil. Fora que fica uma sensação terrível de culpa. Sim, de culpa. "O que foi que eu fiz de errado no meu último emprego?" "Eu não deveria estar assim, estando prestes a completar meu primeiro quarto de século de vida." E é sim a primeira vez na vida, desde que me entendo por gente, que eu não tenho obrigação de nada. Eram sempre os anos do maternal, depois o ensino fundamental, ensino médio, a vida dividida em períodos da Universidade... Pra depois alguns trabalhos esparsos e agora, o terrível fantasma do nada. E olha que eu estudo por conta própria, mas ainda não consegui demover essa sensação de culpa e o pior, de incerteza.
Depois desse primeiro parágrafo pessimista, o leitor (?) pode pensar que eu estou me sentindo terrivelmente mal, certo? Verdade, não é legal mesmo. Mas ainda assim não consigo não sentir uma esperança de que as coisas vão se ajeitar. Eu lembro muito bem da época em que meus sonhos eram impossíveis de verdade. E, olha que coisa, está tudo consumado. E o que eu fiz foi sonhar sonhos dentro de sonhos. E, me desculpe a vida real, mas é no mundo onírico que eu quero caminhar. Pior que eu e ela somos íntimas. Nos conhecemos a fundo. Estamos sempre de mãos dadas. Então, desde sempre, estou caminhando do jeito que as coisas devem ser, afinal de contas: os pés no chão e a cabeça nas nuvens.
Mas minha esperança não me faz patética. Nem minha felicidade, nem a alegria de viver e muito menos a liberdade. Tudo isso foi conquistado à suor e sangue, com batalhas que eu travei comigo e com os outros desde muito nova pra poder alcançar o que eu alcancei. Eu não sou nenhuma Pollyanna idiotizada. Eu não estou cantando com os pássaros o tempo todo, nem agradecendo ao sagrado pela brisa da manhã. Problemas e questões de todas as espécies parecem me rondar, sempre com um pretexto ridículo pra aparecerem. A questão é: posso desistir? Posso. Irei? Não. Não dá, cara.
Nada é muito fácil, mas eu tenho plena consciência de que, mesmo com todas as adversidades, continuo sendo infinitamente privilegiada nessa sociedade que desmoronou e continua desmoronando, pedaço por pedaço, gente por gente.
Por fim, a esperança cumpre o seu papel. Acalma o meu coração, com o aviso da Pollyanna já adulta pra si mesma: "De pior você já passou".

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Elenice

"Que merda de dúvida do caralho, cara!", falou Elenice. Gostava tão pouco do que tinha no prato, mas sentia uma fome tão descomunal que, mesmo em dúvida, não teve outro procedimento a não ser comer o que lhe era oferecido. Falar isso, no entanto, lhe custou uma noite trancada no quarto. Nesse tempo ninguém tinha celular. Não tinha TV. Não tinha nem a porra dum livro naquela desgraça de quarto trancado que ela pudesse ler. Pra quem mesmo que ela ia pedir ajuda quando tivesse a oportunidade? Ela elencou várias pessoas que pudessem ser úteis em algum momento, mas deixou tudo de lado. Um monte de paspalhos que não teriam colhões suficientes pra lhe ajudar como precisava. Não conseguia dormir porque fazia muito calor e não tiveram a decência de reparar que o ventilador estava quebrado. Tirou toda a roupa, não ficou nem de calcinha. Procurou em algum lugar a água que tinham lhe dado pra uma eventual sede durante a noite e, cuidadosamente, sem deixar derramar nenhuma gota, ia colocando na mão em forma de concha. Esse pouquinho de água, passou de um lado e outro do pescoço suado, mesmo com o cabelo preso. O suor pingava e descia pelas pontas de seus seios. Era inevitável.

Olhou a barriga, já despontava. O pai da criança foi o babaca mais babaca de todos os babacas que ela teve o azar de se apaixonar. No fim das contas, isso nem importava mais. Quando ela chegou em casa e disse que queria fazer um pronunciamento, a família achou que fosse uma das brincadeiras dela. Não, cara. Elenice falava seríssimo. Era pronunciamento mais importante que o que o Presidente tinha dado na quarta passada. Era coisa mais feia que bater em mãe. Era coisa mais séria que pedir empréstimo pra gerente de banco usando havaianas. Não deram nem as horas pra ela, claro. Continuou todo mundo a comer a refeição sem graça do dia, na hora que ela se levantou e colocou uma das mãos na barriga. A mãe sentiu uma agonia ruim no peito. O pai, um esfriamento do espinhaço. O irmão, um arregalamento de olhos. Elenice só disse as seguintes palavras: "Vocês não vão ouvir, não?! Eu tô grávida, porra!"

Essa menina não sabia falar sem xingar. Era mal dela. Tudo quanto foi professor, desde quando ela era pequenininha, reclamava pra mãe, pro pai, pra santa caridade, mas não tinha jeito. O satanás que se apossou dos couros dessa criatura não tinha piedade. Quando ela foi ficando grande, todo mundo já tinha desistido. As outras meninas da rua levavam surras às 10 da noite, quando voltavam pra casa pra dormir, porque já tinham sido advertidas pra não andar com essa filhote de besta-fera. Elenice foi ficando mais moça, interessou-se por caras. A maioria não a queria. Era boca-quente demais, essa mulher. "O cara pra namorar Elenice tem que saber que uma hora é ela que come ele", um inventou o dito que se espalhou mais rápido que fogo na caatinga. Elenice achava era graça desses ridículos que achavam que ela ia mesmo querer alguma coisa com qualquer um deles. Os alvos dela eram outros. Eram os professores que davam as menores notas pra ela. Eram os que diziam xingamentos muito piores dos que ela sabia, só pra provocá-la. Eram os que jamais diriam que nunca namorariam com ela por esse ou aquele motivo. Pelo contrário, ela queria quem tinha coragem pra dizer: "Elenice, se tu tirasse metade dessa tua cara de mau, tu ia saber o que tem de gostoso no mundo". 

Um dia, decidiu que aquela virgindade já tinha passado do tempo. Tinha 18 anos recém-completados e tinha ouvido falar duma senhora idosa que vivia só no final da rua e que se espalhou a conversa que tinha morrido virgem. Achou aquela coisa toda tão triste que, quando na sentinela da velha, olhou pro cadáver inviolado e jurou pra si mesma: "Mas antes morrer puta velha do que moça velha".

Parece que o diabo sempre fica atento a essas determinações ditas em voz alta (ou mesmo em voz baixas, em enterros de senhoras virgens). Duas semanas depois, se mudou pra rua paralela um rapaz cabeludo, cheio de brinco. Ele não era mais legal por ser assim. Os outros achavam que aquilo era coisa de viado e ele teve que demonstrar mais de uma vez que o lance dele não era aquele. Elenice andava com a ideia fixa na cabeça, quando viu o rapaz. Ela soube que seria ele, pelo raio que sentiu nas carnes quando o viu, diferente de tudo o que já tinha sentido até então. E, como nem pra nascer esperou sua mãe fazer força, foi ao ataque, disposta a entregar a um desconhecido o fardo que para si se tornou a sua virgindade. Não foi difícil, como se pode imaginar de um rapaz que está tentando provar sua masculinidade entre o bando.

Ninguém sabe como aconteceu. Ele colocou a camisinha direito, já tinha usado uma antes, sabia como é que era. Não sabiam se tinha rasgado, se tinha saído, se alguma mão com algum fluído tinha ido onde não era pra ir, mas não tinha mais pra onde correr. Elenice estava definitivamente grávida e desconsolada, mas ainda mantendo a pose de forte sob a qual viveu a vida toda. O rapaz correu e ela desejou do fundo do coração que o raio que a atingiu quando o viu tivesse lhe feito o favor de a ter matado de uma vez.

***

Era tarde da noite no quarto quente. Elenice vivia agora sob o mutismo da família e a inexistência social. Todo mundo sabia que estava grávida. As amigas tinham pena, os pais das amigas tinham raiva e medo. Os próprios pais mal lhe dirigiam a palavra. O irmão que ainda tentava falar algumas coisas pra animar. Tudo isso veio na cabeça de Elenice de uma vez, vergando o pescoço da moça pra frente. Nua, grávida, vulnerável, triste, raivosa e trancada. Ninguém teria pena de Elenice. Ninguém mostraria compaixão com a moça da boca suja. Um grito terrível se formou e no meio de lágrimas e cabelos na cara, se libertou, acordando a casa toda. Correram pra acudir. Elenice sentia dores. Levaram pro hospital. Elenice chorava, segurando a barriga. Perdia muito sangue. Elenice lembrou do raio. Lembrou do velório. Lembrou da senhora velha. Lembrou da promessa daquele dia. Elenice tinha tomado remédio pra abortar. Elenice tinha tudo pra conseguir, mas não deu, pessoal. Elenice soltou as mãos do mundo pelo seu sangue, que corria como rio de dentro de suas pernas. 

sábado, 11 de abril de 2015

Ela

Entre mortos e feridos, lá estava ela. Em pé. Como sempre esteve a vida inteira.
Carregou tanta coisa na cabeça, que eu realmente não sei como ela conseguiu manter-se de pé a vida toda. Hoje, é muito o que ela carrega. A vida foi-se entrando e permaneceu tanto que agora, há muito pra sustentar. Ela sustenta. Há tanta graça nela. Tanta flor, tanto amor, tanto amor, meu deus. E eu, abestalhada, olho pra ela como se ela fosse de outro mundo. Mas não como se fosse algo desconhecido ou estranho. Mas como ela é: é outro mundo feito de abraços.
Ela passou por tantas dores nessa vida. Eu, daqui, nem posso me lembrar de todas. Perdeu os pais logo cedo, foi humilhada por tanta gente, casou com um homem que muito a fez sofrer, assistiu alguns de seus filhos serem levados pela morte. Depois que o Tempo, esse senhor implacável, veio, não sei se houve algum alívio. Sempre era alguma coisa a ocupar esse coração generoso. E eu sei que eu já fui e talvez ainda seja, um dos pesos. O que mais me surpreende é que ela é feliz. Sua capacidade de sorrir se manteve e eu gosto de pensar que eu herdei isso.
A memória já lhe falha. O ficar "em pé" já não é mais uma afirmação literal na vida dela. Ela tosse. Ela sente dores. Ela espera.
Estar longe dela é uma dor. A última noite, passamos nós duas de mãos dadas. Ela, na sua rede. Eu, na cama. Ela não conseguia dormir. Eu não podia. Deitei de maneira que pudesse vigiá-la, velar seu sono, segurar sua mão, ficar alerta a qualquer coisa. Lágrimas desceram quando vi aqueles dois olhinhos se fechando lentamente, pra pegar no sono, enquanto eu prendia até a respiração, morta de medo que qualquer de meus movimentos pudesse impedir de isso acontecer.
É difícil testemunhar o crepúsculo de uma vida tão amada. Vê-la perder-se em confusões tão simplórias. Mas não há o que se fazer. A cada engano, o riso natural. O abraço sempre dirá: "Não interessa o que aconteça, meu amor, encoste aqui o seu coração no meu, que tudo vai ficar bem".
"Não sofra antecipadamente", me disseram. Não. Não mais. Eu imagino, é claro. Ela mesma fala disso. Ela sabe. Nós sabemos. Mas meu coração está sereno, apesar de tudo. Eu só quero cantar pra ela o máximo que eu puder, dar todos os beijos e abraços que eu puder e dizer pra ela o quanto eu puder, que eu a amo. Segurar na mão do refúgio e dizer que ele sempre o será. :)

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A caçada

É muito difícil olhar pra como a irracionalidade se manifesta. Já a vi tantas vezes, mas ao contrário do que eu pensei, o olhar nunca se acostumou. É preciso olhar mais além. Ver onde está o amor. Procurar, procurar bem fundo, ainda que ele se esconda. Agarrar-se nele pra poder seguir adiante. É ver a humilhação, a frustração que gera essa irracionalidade. O ódio de todos os planos de vida idos por água abaixo. No momento, depois da confusão, nós três estamos nessa mesa, sentados, confusos, irritados. Três cabeças baixas. Eu, escrevendo esse texto no bloco de notas do celular. Meu pai, humilhado pelo que dissemos a ele, depois da vergonha que nos fez passar. Meu irmão, lendo a bíblia. Temos pouca coisa em comum. Por isso é que é preciso procurar o amor no mais profundo, onde quer que esteja. Perscrutar, cavar como se procura por água quando se está com sede. Não há saída. Ou se faz isso ou todos nós afundaremos no abismo sem fim da solidão.

sábado, 4 de abril de 2015

Compay, Zaz, Juanica, Chan Chan e o Violão

Compay Segundo sentou na cama. Não conseguiu dormir por mais um segundo sequer. Sonhou com Juanica, com Chan Chan. Estavam numa praia, cada qual com sua enorme peneira na mão, sacudindo montes de areias que pegavam. Era o trabalho de refinar a areia pra construir a casa que faria da vida deles um paraíso. Juanica se remexia pra balançar a peneira devagar. Estava suada. Vestia uma saia ordinária, uma blusa de tecido frágil, surrada, que deixava os bicos dos seios circunscritos, mesmo debaixo do sutiã. Tinha um chapéu de palha enorme na cabeça e uma chinela rasteira, ambos feitos por ela mesma. Chan Chan olhou. Juanica não parava de remexer daquela forma. Os seios moviam pra lá e pra cá delicadamente. Era uma dança inconsciente o que fazia Juanica. Chan Chan sentiu um esmorecimento, uma fraqueza conhecida, uma súbita vontade de morrer. Juanica, inocente, falava sobre a vida na casa nova. Tudo muito bem feito, dos móveis bons, de tudo arrumado, sem parar de se remexer. Estava quente. Juanica estava quente. Chan Chan sentia o calor de Juanica começar a cozinhar seus sentidos. Lembrou de outras horas quentes, suadas, movimentadas. Uma agonia lhe subiu pelas pernas, uma mão invisível o acariciou. Soltou a peneira e resfolegante, tocou Juanica nas ancas. Juanica percebeu o olhar de Chan Chan, parou de se remexer. Jogou a sua peneira no chão. Deixou o trabalho pra depois...


Compay acordou. Quatro notas tocavam na sua cabeça. Ainda podia sentir a agonia de Chan Chan. Podia sentir o calor de Juanica. Sentado, pegou o lápis, o papel e copiou tudo o que viu.

***

Zaz tinha um violão quando era mais moça. Era lindo. Não era um violão de marca. Foi ficando velho e isso, estranhamente, fazia com que as notas saíssem mais fluídas. Zaz cresceu. A moça ficou grande, começou a cantar, a ganhar algum dinheiro. O violão ficou pra trás. Zaz mudou-se pra Paris e, à pedido de sua mãe, levou o violão antigo consigo. Com aquele olhar nostálgico que se dá pras coisas queridas, porém inúteis, deu um breve suspiro e guardou o violão velho num espaço vazio do pequeno guarda-roupa. Como não existe coisa mais triste que um instrumento que não é tocado, o violão chorou. Devia ser o calor ou o frio expandindo ou encolhendo a madeira, mas o certo é que o violão chorou. Um chorado triste, um pedido de resgate. Zaz ouviu o choro e abriu o guarda-roupa imediatamente. Sorriu pro velho companheiro. Assim que o colocou entre os braços e seios, tocou as cordas desafinadas de tanto tempo e soube que ali havia uma música triste. O violão voltou à vida, mesmo de madeira velha, mesmo de cordas desafinadas, mesmo de canções tristes que estavam guardadas em si, só esperando por Zaz.