sábado, 4 de abril de 2015

Compay, Zaz, Juanica, Chan Chan e o Violão

Compay Segundo sentou na cama. Não conseguiu dormir por mais um segundo sequer. Sonhou com Juanica, com Chan Chan. Estavam numa praia, cada qual com sua enorme peneira na mão, sacudindo montes de areias que pegavam. Era o trabalho de refinar a areia pra construir a casa que faria da vida deles um paraíso. Juanica se remexia pra balançar a peneira devagar. Estava suada. Vestia uma saia ordinária, uma blusa de tecido frágil, surrada, que deixava os bicos dos seios circunscritos, mesmo debaixo do sutiã. Tinha um chapéu de palha enorme na cabeça e uma chinela rasteira, ambos feitos por ela mesma. Chan Chan olhou. Juanica não parava de remexer daquela forma. Os seios moviam pra lá e pra cá delicadamente. Era uma dança inconsciente o que fazia Juanica. Chan Chan sentiu um esmorecimento, uma fraqueza conhecida, uma súbita vontade de morrer. Juanica, inocente, falava sobre a vida na casa nova. Tudo muito bem feito, dos móveis bons, de tudo arrumado, sem parar de se remexer. Estava quente. Juanica estava quente. Chan Chan sentia o calor de Juanica começar a cozinhar seus sentidos. Lembrou de outras horas quentes, suadas, movimentadas. Uma agonia lhe subiu pelas pernas, uma mão invisível o acariciou. Soltou a peneira e resfolegante, tocou Juanica nas ancas. Juanica percebeu o olhar de Chan Chan, parou de se remexer. Jogou a sua peneira no chão. Deixou o trabalho pra depois...


Compay acordou. Quatro notas tocavam na sua cabeça. Ainda podia sentir a agonia de Chan Chan. Podia sentir o calor de Juanica. Sentado, pegou o lápis, o papel e copiou tudo o que viu.

***

Zaz tinha um violão quando era mais moça. Era lindo. Não era um violão de marca. Foi ficando velho e isso, estranhamente, fazia com que as notas saíssem mais fluídas. Zaz cresceu. A moça ficou grande, começou a cantar, a ganhar algum dinheiro. O violão ficou pra trás. Zaz mudou-se pra Paris e, à pedido de sua mãe, levou o violão antigo consigo. Com aquele olhar nostálgico que se dá pras coisas queridas, porém inúteis, deu um breve suspiro e guardou o violão velho num espaço vazio do pequeno guarda-roupa. Como não existe coisa mais triste que um instrumento que não é tocado, o violão chorou. Devia ser o calor ou o frio expandindo ou encolhendo a madeira, mas o certo é que o violão chorou. Um chorado triste, um pedido de resgate. Zaz ouviu o choro e abriu o guarda-roupa imediatamente. Sorriu pro velho companheiro. Assim que o colocou entre os braços e seios, tocou as cordas desafinadas de tanto tempo e soube que ali havia uma música triste. O violão voltou à vida, mesmo de madeira velha, mesmo de cordas desafinadas, mesmo de canções tristes que estavam guardadas em si, só esperando por Zaz.


sexta-feira, 3 de abril de 2015

Não consegui colocar um título

Há dois dias que eu estou em Bacabal. Isso sempre me alegra o coração. É bom vir pra cá, abraçar quem me é querido e me dedicar, sem culpa, à nobre arte da desocupação. Só que sempre que eu venho pra cá, talvez pelo próprio ócio, uma onda de pensamentos bem mais urgentes me invadem. Desde ontem, um pensamento tá fixo na cabeça e hoje, por conta de duas mortes precoces - mas fora do meu círculo íntimo -, se agravou: o pensamento do quanto deve ser difícil ser mãe ou pai de alguém. Enfim, ter a responsabilidade de amar e proteger a outro ser humano, mesmo que ele não tenha sido gerado por si. Coisas acontecendo o tempo todo nesse mundo que me dá cada vez menos esperanças, me dão bastante medo de ter essa responsabilidade, ainda que tudo seja um plano dado quase como certo na minha vida, num futuro a longo prazo.

Pensei no quanto deve ter sido difícil pra minha mãe. Ela não tinha nada pra "dar certo", sabe? Meus avós maternos moravam no interior de um interior, no Maranhão. Pelo pouco de detalhes que sei da vida deles, não tinham más condições até minha avó adoecer e meu vô ter que vender quase tudo que tinha pra arcar com as despesas de um tratamento infrutífero. Acabou que ficaram bem pobres. Sem chance de um estudo mínimo de qualidade, minha mãe foi mandada pra ter o mesmo destino de tantas jovens, até hoje, pelo meu Estado. Teve que morar na casa de alguém que tivesse alguma condição na cidade grande, pra cuidar da casa e dos filhos da patroa, sem receber nada e estar sujeita à toda a sorte de humilhações que se pode ter ideia. Destino esse que, infelizmente, na minha própria casa, anos e anos depois, com eu e meu irmão ainda pequenos, fizemos repetir à outra jovem, saída do mesmo lugar que saiu minha mãe, com a mesma tarefa. Não esqueço disso, jamais. E é uma das coisas que sinto que, se tivesse condições, quereria compensar e pedir perdão.

De toda a maneira, o início de minha mãe foi bem mais complicado do que o meu. Nunca precisei trabalhar por um prato de comida e sempre tive, à duras penas, acesso à educação formal em umas das melhores escolas particulares daqui. Tive apertos, dificuldades, mas nada que realmente tivesse impedido o meu pleno desenvolvimento intelectual e físico. Mas eu estou "perdendo o ponto".

Quando eu nasci, as coisas ainda não estavam, digamos, plenas. Minha mãe tinha a minha idade e já era mãe de um menino de um ano e meio. Meu pai era ainda quem sustentava a casa, confiado que o comércio do mercado central da cidade, onde praticamente todos os meus tios paternos trabalharam, nunca iria decair como decaiu. Não sei em que ano, minha mãe entrou pra Universidade e começou a estudar pra ser professora. Conseguiu. Eu me lembro nitidamente de ir ao seu baile, aos seis anos, com o cabelinho chanel e banguela. E de ser uma espécie de "dama de honra", ao entrar na missa de ação de graças, carregando uma cesta de anéis da pedra azul que iam ser benzidos pelo padre. Depois da minha própria experiência na Universidade, o meu respeito pra com as mulheres que tinham jornadas de trabalho duplas ou triplas e filhos pra cuidar e que se formaram, aumentou consideravelmente. E o respeito E solidariedade pras que não conseguiram, também.

Tudo começou a partir daí. Minha mãe passou em concurso e a ganhar mais que o meu pai. Com mais condições, passou a sustentar a casa, o que, desconfio, foi um golpe terrível à equivocada crença de meu pai de que era "papel do homem" fazê-lo. Eu era pequena e lembro pouco, mas o casamento já estava caindo aos pedaços à época. Pra resguardar uma história que não é só minha, só posso dizer que, nessa parte, tudo mudou... Pra pior. E muito sofrimento isso me custou.

Quando adoeci, foi que vi nos olhos dos meus pais, o quanto era difícil ser o que eles eram pra mim. Passei a depender quase que inteiramente deles, até pra algumas tarefas básicas. Minha coragem era minha, mas não seria nada se eu não tivesse com quem contar. E não tivesse a mais absoluta certeza que, acontecesse o que acontecesse, eles estariam ali, comigo, não desistindo de mim. Que eles queriam absorver todas as dores que eu sentia pra eles. Que eles morreriam pra não me ver definhar.

Esse amor é o que eu procuro me lembrar, quando as coisas caminham pra rumos indesejados. É o perdão, sempre tabu na minha casa, pedido por minha mãe, depois de uma longa conversa sobre as conclusões que tirei sobre o que me causava aquilo tudo, é que eu evoco quando a irracionalidade bate à porta.

Depois de cinco anos morando fora, tudo mudou. O que era complicado e difícil entre nós, ficou discutível, debatível. As paredes da minha casa ainda têm as marcas dos meus pés, porque não foi pouco que eu tive que colocar o pé nelas pra que a realidade fosse outra. O que era impossível se tornou possível. Surgiu cumplicidade entre eu e a minha mãe. Surgiu a possibilidade de conversar entre adultos com o meu pai. Surgiu o diálogo, forçado pela saudade que finalmente fazia com que perguntássemos sobre os nossos dias e que pudéssemos dizer "eu te amo" sem constrangimentos, no final dos telefonemas. Surgiu aceitação, mesmo sem a completa compreensão do que se passava comigo. Surgiu o respeito pela minha individualidade, pelos meus sonhos e pelas minhas opiniões, bastante tóxicas pra mentalidade deles, eu sei. Mas os caminhos foram abertos e eu pretendo seguir por eles. Nada é ideal, já se sabe. Somos imperfeitos demais. Mas eu não perco a esperança de que, pelo menos no que eu posso interferir, podemos mudar ainda mais.

Hoje, quando duas tragédias mencionadas no começo desse texto vieram à tona, quando jovens vida se foram, deixando um rastro terrível de dor nos pais, foi que me veio a certeza mais que absoluta de que eu quero me manter nesse mundo por muito tempo ainda. "Cuando álguien se va/ El que se queda/ Sufre más", você está certa, Shakira. Por amor aos meus pais, é que eles precisam viver menos do que eu e meu irmão. E por amor a mim e a ele, é que precisamos que essa separação só seja daqui a muuuuuito, muuuuuuito tempo.

sábado, 21 de março de 2015

O lugar indomável

"Costumava haver sempre um pouco mais de mim aqui (e em outros lugares adorados). Eu olhava pra isso e percebia um monte de possibilidades que nenhum outro poderia já ter me dado outro dia. Eu entendia os preços que eu poderia pagar, mas haviam as horas derramadas, sempre muito gratas, onde eu poderia conversar de absolutamente tudo. Elas valeram a pena. Parecia um território de sonho, porque a não ser pelas limitações práticas, eu não conseguia ensinar àquele lugar a palavra não. Mesmo que ensinasse, não aprenderia. Era de natureza bastante selvagem. Vinha de partes não exploradas antes, que ainda estavam se acostumando à exposição. Era o avesso do avesso, o que acontecia. Foi o derrame que me curou."


(Eu mesma, não sei quando, não sei nem onde, mas sei sobre o quê.)

segunda-feira, 16 de março de 2015

O quê que dá

Já escrevi bastante sobre a possibilidade de deixar pra lá. Cogitada, buscada, solicitada. Como, mesmo com todos os esforços, isso não aconteceu, procurei ficar em paz com o querer. Querer é querer e eu acho que é daquelas forças muito mais fortes que quaisquer racionalizações. Apesar de saber que sentimentos podem ser gerados e influenciados, ainda há uma grande parte de mim que acredita na não-deliberação, pelo menos plena, deles. Lembrei do trecho de um dos livros da Isabel Allende, que eu não lembro qual, que dizia que o amor era um mal renitente. Alguém havia deixado a janela do quarto aberta e ele entrou com o vento. Depois disso, não havia cura que remisse do mal - palavras da autora. Essa é a impressão que eu tenho sobre alguns sentimentos: que se pode provocar, mas não se pode retirar. Parecem entidades, espíritos que tomam o corpo, que só vão embora quando querem, geralmente depois de terem feito muito estrago.

Hoje em dia, olho pra irracionalidade desse próprio querer. Como, depois de tanto afastamento, distâncias geográficas, problemas e tempo, ele ainda sobrevive e não dá sinais de recuo? Explica-se: eu sou mesmo assim. As constâncias fizeram história, seja pros sentimentos bons ou ruins. O que explica também o fato de eu ser muitíssimo grata e muitíssimo rancorosa. Aquele que tem o meu bom grado, não o deixará de ter. Aquele que me fez mal, dificilmente vai ter um perdão voluntário, apesar da lida empreendida pra tirar alguns pesos que trago no coração que acabam por fazer mal só a mim, que sinto.

Sei que deixar aberto em algum lugar, por mais escondido que seja, a confissão que o querer que tinha lá no começo ainda é o mesmo, é ficar vulnerável. Aos medos, angústias e inseguranças que também podem estar acontecendo do lado de lá. Entender que existem, faz parte. Entender que nada está dado, também faz parte. Saber que deve haver bom senso da sua parte pra se proteger, é necessário. Isso não quer dizer ficar na defensiva, tampouco deixar de fazer os planos e tentar. Significa saber que não há obrigatoriedade. Que, se houver honestidade e a preocupação mútua com os sentimentos, que nos é devida, entre mortos e feridos, sairemos bem. Que a minha felicidade é responsabilidade só minha. Querer é apenas querer. Ponto. É um bichinho incômodo quando não se tem e quando se cogita que pode não se ter, mas ou é um bichinho que você convive com ele, ou ele lhe morde. Presta atenção, pode até devorar. Querer é um bichinho que é disputado diariamente por outros dois: a esperança e o medo. Parece até aqueles desenhos antigos do Tom e Jerry, com um diabinho e um anjinho falando em cada ouvido.

O diacho é só o que o psiquiatra (e hoje, amigo) disse e ficou ecoando na cabeça por ainda muito tempo: "Você precisa parar de pensar!". Foi quase um grito. Ele quis dizer: "Corra riscos. Faça. Voe.", mas também: "Deixe sua cabeça descansar. Apenas pare de ver e rever todas as hipóteses do jogo antes mesmo dele acontecer".

E a ironia desse texto que me fez lembrar desse conselho de cinco anos atrás, em uma situação totalmente diferente desta, é que, com ele, eu estou fazendo justamente o contrário. Hehehe

Certamente como eu teria me enfiado em muita enrascada na vida se eu não fosse assim. Mas tenho consciência do tanto que deixei de viver por ser. O medo levou os meus melhores anos e agora eu corro atrás deles. Sem as ilusões de adolescente, sem o medo infantil, sem o congelamento inicial da vida adulta. Nesse caso, o único que eu posso fazer com o meu querer é submetê-lo à mais essa prova do tempo, do não-palpável. Aquietar e ver no quê é que dá. :)


sexta-feira, 6 de março de 2015

O primeiro dia

Hoje, ao dar os parabéns a um amigo mexicano, procurei uma foto nossa no meio dos arquivos que trouxe da Colômbia. Não fico fazendo isso todas as vezes que eu tenho vontade, porque, querendo ou não, dessensibiliza. Pelo muito amor que eu nutro pelos meus nervos, também não quero me desmanchar em lágrimas todas as vezes que vejo, mas quero que sim, que me invada a doce saudade daquele mês e meio bem aproveitado, que me marcou pra vida.

Lá, além da minha família colombiana, fiquei próxima de um tantão mais de gente. Eu jurava que esses amores todos em períodos pequenos de tempo era coisa de Big Brother querendo voto. Não. Essa parada foi séria mesmo. Não sei se foi porque foi a primeira vez e a primeira vez marca mais mesmo ou se foi aquela áurea de felicidade intransigente que nos revestia a todos. Só sei que o aniversário do meu amigo me fez lembrar das caminhadas. Eram muitas. Em grupos ou só. Pela cidade, pelas viagens, pelas trilhas, pelas praias, por nós mesmos. Caminhamos horrores debaixo daquele sol escaldante que fez a holandesa ir bater no hospital do exército no primeiro dia. Ainda éramos semi desconhecidos. Antes da nossa primeira ida oficial ao batalhão, combinamos de ir ao Museo del Caribe. Era lindo e pra acabar logo com meu coração, tinha um pôster enorme do Gabriel García Márquez dizendo que em todos os lugares se sentia estrangeiro, menos no Caribe. Ainda estava de pouco a morte dele e foda-se: ainda hoje me enche de águas nos olhos. Pegamos o ônibus rumo ao batalhão de dentro da cidade, onde seria o nosso ponto de encontro de todos os dias. O Exército da Colômbia, no primeiro dia, nos deu o mini ônibus deles. Não teve quem pudesse ter sossego dentro daquele troço. Era ensurdecedor. Tinham uns 8 mexicanos e eles eram quem puxavam as músicas. Eu fui ao lado da outra brasileira do projeto nos bancos primeiros. Isso lá é coisa que se faça? Viramos e ficamos de joelhos nas poltronas e começamos a cantar as músicas que eles cantavam, mesmo sem saber. Até que, antes de chegar lá, paramos de gritos e canções e começamos a nos apresentar formalmente. Hi, people! My name is Jamila. (Hiiiii, Jamila!). I'm 24. I'm brazilian and my favourite thing is... uh... I don't know... Let me see...

Sim. Coisa de ensino fundamental mesmo.

Chegamos. Fomos recebidos por duas senhoras evangélicas e um soldado, também evangélico. Nada contra per se. Mas tinham umas 30 pessoas ali de tantos países e religiões diferentes e pessoas sem religião também, como eu. A entidade que nos levou não sabia que aquilo aconteceria. Na verdade, estavam tão chocados quanto nós. As senhorinhas saíram decepcionadas porque ninguém se converteu ao protestantismo. Perdão, senhoras, mas eu já tive a minha cota e a maioria ali nem sequer falava espanhol. ¯\_(ツ)_/¯

O terreno era arenoso e não tinham banheiros femininos em parte alguma. Apenas dentro dos alojamentos, que eram galpões cheinhos de beliches muito bem arrumadas. Nada estava sujo ou fora do lugar. O que estava em péssimas condições eram os banheiros que, afinal de contas, tivemos que usar. Mas nada abate o espírito de quem enfrentou banheiro químico de carnaval de rua.

Foi a primeira vez que vimos aqueles rapazes. Quase a mesma idade que todos nós, a maioria negra e pobre. O serviço militar na Colômbia é obrigatório, mas obrigatório mesmo. Por não compreender muito bem o espanhol extremamente rápido que os costenhos falavam, fiquei sem entender a parte da explicação da minha host sister sobre como se dá a dispensa. Parece que o rapaz tem que pagar uma taxa que não é muito baratinha, não. E, como no Brasil, sem o certificado de que se prestou serviço, ele só se FO-DE. Não dá pra fazer porra nenhuma de prática na sua vida e, uma hora ou outra, você vai ter que fazer, se não tiver o dinheiro pra pagar. E é um ano inteirinho. Parece que se quiser escapar, quando te pegarem, é mais tempo, cumpádi. Um parente da minha família colombiana passou foi 2 anos na mata fechada, por não ter cumprido no tempo certo. Quando falávamos com eles individualmente, diziam as mesmas coisas. A cartilhazinha do bom soldado: era bom o Exército, dava disciplina, amor à pátria amada, salve salve! Mas 3 meses até poder ver a família era ruim. Ir pra selva fechada depois de um tempo e arriscar a vida pra lutar contra as FARC era ruim. Não podia falar isso alto. Não podia embargar a voz. Soldado é macho brabo. ¿Como está la moral? ¡Alta, muy alta! 

Eu só contei isso pra uma só pessoa e agora escrevo: um dia um soldado se acabou de chorar pra mim. Tinha saudades da família, não estava se aguentando mais. Engraçado que nós éramos as pessoas neutras, porém eu sentia um ar de desconfiança da parte deles. Éramos diferentes demais, num nível enorme já entre nós e mais ainda entre eles. Também tememos. Não a eles, mas o que fazer com eles. Como era que chegaríamos aos seus corações? O quê de bom ensinar e aprender com aqueles rapazes, pelo amor de alguma coisa!? Era inevitável que um caminho de comunicação se abrisse e, apesar do tempo perdido com planejamentos infrutíferos, conseguimos. O rapaz que chorou o fez escondido, até me assustou quando me abordou. Eu voltava do banheiro, quando ele se aproximou e começou a falar amenidades, até que tocou no assunto que estávamos conversando no sub-grupo que eu fiquei. Chorou. Talvez quisesse fazê-lo antes, mas tinha que segurar. Eu sabia falar espanhol, entenderia. Ele precisava desatar aquele nó. Sem querer, ajudei a desatá-lo. Por obra da minha cabeça flutuante, não perguntei o seu nome e seu rosto me escapou. Mas ficou aquela pessoa sofrendo nos meus olhos. Falando rápido demais coisas que eu tentava entender, sendo que já entendia. O léxico da saudade é universal. Pela situação, pelo lugar que estávamos, um abraço, por mais que urgisse, não cabia ali. Só podia ajudá-lo com palavras. Espero que outros abraços tenham te confortado, soldado. 

Voltando ao primeiro dia: quando terminamos e voltamos ao ônibus, a uma hora que passamos nele na volta foi pior do que a ida. Os mexicanos quase todos já se conheciam já do México e não teve parêa pra essa galera. Botaram foi todo mundo pra bailar. Chegamos no batalhão, muitos sem saber voltar pra casa (eu). Uma galera pegou táxi, mas eu tinha que aprender a me virar. Fiquei esperando por uma das moças da Aiesec pra ir comigo, porque ela iria pegar o mesmo ônibus que eu e me ensinaria onde descer. Só que a pobre da holandesa desmaiou nos braços de uma mexicana e tivemos que levá-la pro hospital do batalhão. Eu no imbróglio com: 1) holandesa desmaiada; 2) a alemã colega de quarto dela; 3) a menina da Ong e 4) o outro holandês (voador). Agora pense bem aí: eu, a aleatória, na emergência de um hospital do exército, com pessoas que eu não tinha nenhuma intimidade. O legal foi que a moça da Ong teve que sair pra resolver coisas burocráticas na recepção do hospital e eu fiquei traduzindo duas línguas que, apesar de conhecer, não sou nenhuma pica das galáxias nelas. Enquanto a gente tava esperando a moça ficar melhor pra poder ir embora, ainda tentei jogar meu charme malemolente e brasileño no holandês, um belo exemplar dos "sqh" - "Sinceramente, que homem!". Absolutamente sem sucesso. A única conversação que teve foi quando ele me pediu emprestado o carregador do celular e só. Quando a gente saiu do táxi, ele ainda me chamou de Jessie. "Jessie é minha mão na tua cara, rapá!", pensei. Aliás, meu insucesso com os rapazes do mundo de lá foi o que me fez tomar a drástica decisão do uso do Tinder. E o conhecimento que adveio daí, meu senhor do céu...

E esse foi só o primeiro dia. Eu não conseguia sequer dormir na primeira semana que eu cheguei lá. O quartinho simples que fiquei hospedada era quente e pequeno, mas esse não era o problema. O negócio era que estava acontecendo! O coração pesou. Ia dormir, invariavelmente, às 4 da manhã, depois de muito pelejar pra pegar no sono. Acabou, depois desse período e só veio me pegar de novo na hora de partir. Caminhei demais, como disse no começo. Com a russa, com o aniversariante mexicano, com a porto-riquenha, com quem viesse. Fazem falta as caminhadas da estação Joe Arroyo até a casa dos Rivaldo e ouvir da Rubys que "A Jamila le gusta caminar, no?". Parar no parque Surisalcedo e comprar um copão enorme de sorvete a 5 mil pesos, enquanto via as crianças jogando basquete na quadra e os velhos conversando suas velhices. Faz falta sentir aquela completude de se estar no lugar certo, no momento certo, com as pessoas certas, fazendo o que se quer. Quando o vi o mar de Cartagena, chorei. Quando vi o Río Magdalena, chorei. Quando estava no avião, sabendo que tudo aquilo nunca mais se repetiria da mesma maneira, chorei. Compreenda, leitor (?): estive mês e meio de coração distraído e de lágrima fácil.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

"Não adiante seus relógios"

Um dia, não faz muito tempo, eu fui outra pessoa. Meu nome era Jamilinha, mocinha bem comportada e exemplar. Eu era bem mais nova e minhas relações virtuais eram até mais fortes do que são hoje. No finado Orkut, era a Livres-pensadores e as comunidades que orbitavam em volta dela, as comunidades-filhas. A Liga da Justiça LP foi das mais legais, um refúgio para a época em que a LP estava intransitável pra gente que tivesse o mínimo de bom senso. Acabamos construindo esse blog que eu, timidamente, pedi pra postar também. Nada que se aproveitasse, mas eu ainda continuo achando isso pros textos de agora, né? Deu que todo mundo perdeu o tesão pelo blog e eu esqueci dele por muito, muito tempo. Até que me vi sem minhas folhas pautadas e diárias e voltei pra ele, sozinha praticamente, pra não explodir pelas n razões que minha vintolescência tem, precisa nem dizer.

Agora, com a página inicial aberta, fui olhar o blog de um amigo que se tornou indispensável à minha própria felicidade. Sempre admirado pela escrita impecável, pelo cuidado que tinha com cada palavrinha, medida com balanças hiper precisas. Se fazia de judeu mão-de-vaca pra gente, que faltava morrer de rir com as tiradas hilárias, com os floreios que fazia pra que o português escrito fosse igual ao que pretendia representar. Muito tempo depois, quando ficamos íntimos, soube que já tinha sido ator, que cortava o Brasil em diversas apresentações, mas que largou tudo pra uma vida (e uma conta bancária) estável como bancário. Quem diria... 

Nesses tempos, eu ainda era a Jamilinha, lembra? 19 aninhos e caloura de pedagogia em Bacabal, onde gostava de imaginar que estava longe do bem e do mal. E deixava essa parte da minha vida virtual, que teve grandes impactos na minha vida offline, bem escondida de quem quer que fosse. Era o espaço sem filtros, onde ainda dava de falar aqueles pensamentos indiscretos e reprováveis que teimavam em aparecer. Era onde eu podia dizer, sem vergonha nenhuma, que sentia desejos, apesar da virgindade pretendida até o casório, que já era pra ter acontecido aos 24-quase-25 anos da Jamilinha. Dos pensamentos reprimidos sobre a religião sob a qual vivi minha vida toda.

Pulamos anos, uns dois ou três, não lembro direito, pra que todo o contato fosse recobrado com uma intensidade espantosa e uma constância quase religiosa. A diferença de idade de 22 anos simplesmente nunca importou, já que eram nossas mentes que conversavam, apesar de corpos às vezes se quererem implicitamente. Nada poderia se declarar naquela época, pois ainda havia muito de Jamilinha em mim. Mas aproveitamos as horas pras piadas internas, pras risadas, pra todas as besteiras que poderíamos. Uma vez li que mentes podem se encontrar em qualquer idade, ainda que existam as improbabilidades.

Um dia, ainda longe desse ano conversado, ele escreveu algo que postarei sem a autorização e sem dar os créditos, porque confio que não vai se zangar: 

"Domingo, 9 de agosto de 2009

A vida é um dia

Hoje, mais maduro, acho que compreendo o tempo. Imagino seu passar e percebo o meu. Ainda não sei se já é tarde ou noite, não sei da minha hora. Mal vejo meus minutos. Vejo segundos. Aprendi que tudo pode esperar, que mais importante é uma gentileza, que o que urge é o abraço, que o que se foi não se recupera mais. Aprendi também que, se o tempo foi perdido, há sempre de se consertá-lo, de outra maneira, atrasado, mas há de se consertá-lo, ainda que não se possa voltar atrás. Mas essas são as coisas de se pensar. O que se sentir não é tão simples assim.

Não tenho medo da meia-noite, mas já sinto saudades do meio-dia."

Pra mim, foi um alento ler isso, não sei bem dizer o porquê, já que fala de uma sensação ainda distante pra mim. É um texto, se não triste, bem melancólico. À época, ainda muito Jamilinha, falei que ainda esperava pela vida vir. Ainda ansiava pela sensação queimante pelas minhas veias de um meio-dia quente que não haveria de chegar naquele meu lugar, protegida do bem e do mal externo do mundo. Disse-me: "Para você, ainda é manhã, Jamilinha... Não adiante seus relógios..."

De fato, por mais dificultoso que fosse dar freio às ansiedades próprias e inventadas, olhei pro mundo. Sentei mais ao lado de minha avó de 79 anos na calçada e escutei os seus quase 80 anos de histórias. Colocar as coisas em perspectiva funcionou. Ainda teria tempo pra mim. Ainda melhorariam as coisas. O tempo ainda havia de ser grato, ainda que não houvesse nenhuma lógica que me garantisse isso. Fluiu, de fato. Veio uma saraivada de coisas boas e más e, mesmo assim, sigo mantendo-me em pé.

Hoje, especialmente hoje, "não adiantar meus relógios" foi o melhor conselho que alguém poderia ter me dado há cinco anos.

Aliás, que horas são? rs


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O texto entrosado

Ia escrever aqui, mas o texto se perdeu gritantemente. Enveredou-se pelo parapeito da janela do escritório, enquanto eu senti o cheiro da pipoca que fizeram, num segundo bobo de distração. Eu não lembro direito do que se tratava, mas já estava com todo ele pronto, na ponta dos dedos, bem na desdita hora em que me escapou. Observei atentamente por todos os cantos, para ver se tornava, mas apareceu outro, este que se escreve só, sem que haja um esforço real dessa cabeça que se transtorna. Texto idiota, entrosado, ridículo, impertinente, enchedor de saco, que não deveria estar aqui fazendo porra nenhuma! Era sobre o mundo que queria escrever. Da mulher baleada no pescoço pelo ex-marido que agora está paraplégica. Era do juiz que foi afastado do trabalho porque "soltava demais" gente pobre e preta que roubava valores irrisórios, como 6 reais ou dois salames num supermercado e de outro juiz que levou os carros do Eike Batista pra sua garagem. Mas não é sobre eles que estou escrevendo, é um texto totalmente diferente que sai. Já é do sonho que eu tive ontem, onde beijava como nunca alguém que quero há muito e, quando já tirávamos nossas roupas pra consumação de um desejo encrustado, a obra do condomínio me sacode às 6:40 da manhã, um pouco mais tarde do que a mulher do Chico sacode ele. Já é do sonho de hoje, que me jogou numa excursão com membros da minha ex-igreja num lugar montanhoso que mais parecia as fotos que a paixão me mandou, que depois me chamavam praquela conversa "de volta pra Jesus" mais uma vez. Eu dizia: "Gente, vocês não entendem mesmo, né?"
Esse texto vê coisas, está esquizofrênico. Ele imagina como será ou se não será mais a viagem que eu espero há quatro meses. Ele avança no tempo, pra volta, e, na cabeça dele, só existem duas realidades: ou saudade ou frustração. Mas vê também tranquilidade, qualquer que seja o cenário. Ele sabe disso, esse texto maluco. Ainda faltam quinze minutos pro fim do expediente e só o que o texto sabe é que ele poderia muito bem não estar sendo escrito. Que poderia sair em pequenas capsulas de 140 caracteres e que muito mais gente saberia do teor dele. Que o que foi pelo parapeito está ali, do lado de fora, me observando sentada em frente a um notebook escrevendo freneticamente, e me diz: "meu deus, que bom que eu fui embora".

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Daqueles dias

Hoje é um daqueles dias. Onde não dá pra ficar leve, porque o peso das coisas que acontecem ao meu redor é tão grande, que esmaga até o mais bem disposto dos corações (dos que se importam). E a gente fica se perguntando o que faz pra deixar o peso ficar menor. Pra não deixar que aquilo lhe afete ainda mais. Pra que não chegue até uma esfera praticamente inegociável, que você batalha diariamente pra mantê-la à salvo das influências externas e internas.
É difícil. Outro dia eu estava pensando que não há como ser totalmente livre ou totalmente feliz. Há um nível de completude que todos nós podemos alcançar, mas eu, particularmente, nunca vou conseguir me considerar completamente feliz enquanto souber que há quem sofre insuportavelmente. Que não dá pra ser 100% livre, enquanto existirem os que vivem presos. A vida continua, ainda assim. Lemos, abalados em um nível menor ou maior, conforme nossas inclinações e às nossas dores, as notícias banhadas em sangue, a crueldade dos raivosos, a falta de compaixão, a naturalização dos discursos de ódio. E morre um pouco da disposição que temos pra mudar. A luta, cada vez mais uma disputa de sentidos que em algum momento se converte em ação, fica condicionada à sua sanidade mental. E aí, até calar se torna dor.
Preocupe-me com o futuro. Mesmo pra alguém otimista e cheia de esperança como eu, cenários distópicos não estão tão longe da minha imaginação. Pelo contrário, assaltam-me até nos meus sonhos, como no de hoje, que eu acordei suada e com um grito surdo. E o mantra pros dias muda: já não se restringe mais às inseguranças pessoais. "Não vou deixar o medo me dominar" se estende aos outros aspectos. Sobre coisas que eu, individualmente, tenho pouco peso.
Perceber o mundo e ver, dentro das minhas limitações, os seus rumos, me adoece. É um desafio posto o equilíbrio entre as ações que você pode travar e o quanto você pode se doar a elas. Como fazer-se vista e ouvida, em quais cenários isso pode acontecer: no trabalho, dentro do ônibus, nas ruas, na família e até mesmo entre amigos.
É certo que eu vivia menos desses tormentos quando as respostas estavam dadas. Mas quando o mundo se dividiu em antes e depois e as respostas já não eram mais suficientes pras novas perguntas, já não dava mais pra voltar à dormência. Sinceramente, por mais que doa, ainda prefiro sentir essas indignações, mesmo que eu possa não saber o que fazer com elas sempre, do que o nada.

A tela branca

A tela branca. Estive escrevendo textos na minha cabeça desde a hora que acordei, às 6:30 da manhã, com mais zuadas insuportáveis me incomodando o juízo – dessa vez, a obra que o condômino inventou justo uma semana depois de eu ter renovado o contrato de aluguel – e não parei até esse momento em que, finalmente, deixo isso acontecer. A tela branca. A tela branca não é a ideal pra mim. Apesar de eu, modéstia completamente à parte, ser uma ótima prestidigitadora e meus dedos conseguirem compilar os meus pensamentos mais rapidamente, isso nunca superará a folha branca, o movimento de só uma das mãos, o deslizar para a seguinte página com um senso de dever cumprido, de um derramar que não se acaba. Não deixa de me dar prazer o ato de registrar, seja como seja, os pensamentos confusos em uma folha branca. Ou amarela, ou preta, ou de qualquer cor.

E não lembro bem sobre o que escrevi na cabeça esse tempo todo. Alguns assuntos recorrentes, só. Apareceu a solidão, o amor, a espera, a saudade, o reencontro. Lembranças dos dois frenéticos dias que passei em Bacabal e encontrei a minha avó lá, sentada, morta de chique no melhor restaurante da cidade, linda, reluzente, feliz e cercada de gente que é tão louca por ela quanto eu. Foi uma viagem de doido, essa. Eu queria ir pro aniversário dela, que seria no domingo, mas soube que trabalharia no sábado pela manhã. Por uma série de coincidências terríveis, acabei chegando em casa muito mais tarde do que gostaria e deitei morta de cansada na minha cama. Liguei pra casa e soube que o aniversário, mesmo sendo no domingo, iria ser comemorado ainda no sábado. Foi aquela hora que eu me lembrei a idade que ela estava fazendo. Lembrei dos meus planos pro futuro. Lembrei que ela é preciosa demais pra que a minha preguiça me vença. Lembrei, já com lágrimas nos olhos, de que a mulher que eu amo raiando a idealização, não é eterna.

Tomei um banho rápido, botei o indispensável numa bolsa de plástico dessas de evento, encarei a longa viagem de ônibus de casa pra rodoviária e comprei a última passagem do último ônibus com horário viável pra que eu chegasse lá. Comprei e saí desabalada pra plataforma onde o carro já estava só embarcando os últimos passageiros. Fiquei com sede até chegarmos à próxima cidade. O estranho é que, durante a viagem, um rapaz que estava sentado algumas poltronas atrás da minha, não parava de me olhar. E toda vez que descíamos, ele me olhava. A única coisa que me chamou atenção nesse rapaz era que ele era a cópia quase perfeita de alguém que eu já amei muito, durante muitos anos, num amor contundente e firme, mesmo quando os laços já tinham sido desfeitos havia muito. Era como se fosse uma versão bem mais jovem de quando eu o conheci. Incrível como antes isso teria me latanhado o coração, mas os instintos me vieram apenas dessa forma: surpresa pelo parecimento. Graças à Vida, já ocupa outro espaço no coração.

Cheguei lá. A ponta da igreja, a ponte, o rio. Mas também os buracos, a lama, a pobreza. É sempre um misto enorme de coisas que me vêm quando vou pra lá. Sou saudades e revolta, ambas em grande quantidade. Mas, pulando essa parte, fui pra casa, mas não daria tempo pra me arrumar pra chegar ao restaurante. Resolvi ir como estava, de havaianas, cabelos desgrenhados, blusa regata. Mesmo assim, a velha me viu e deu um grito, causando ciúmes nas outras primas. Mas elas não sabem que eu sou parida por esta velha e ela é parida por mim? ¯\_()_/¯ E a ingrata ainda viajou no outro dia, me deixando de coração partido.

Passei só dois dias com ela e nem sei quando nos veremos de novo. Nem o calendário me pertence mais nessa indefinição permanente dos dias. Mas deixe estar... Vou acumulando aqui os cheiros e aprendendo mais músicas em espanhol pra performar pra ela e só pra ela, com toda a sanha de atriz mexicana que eu carrego, que trago de algum lugar inexplicável. Talvez seja dela.

*Escrito há alguns dias atrás, lá pelo dia 5 ou 6 de Fevereiro. Ia postar, cabou a internet. Tá aí. Melhor que nunca. rs

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Ao meu amigo querido

Oi, amigo.

Sei que sofre. Pelo que aconteceu, pelo que já escreveu, pela ausência, por um exercício de imaginação que não é difícil de fazer, sei que sofre. No entanto, ainda sei pouco o que aconteceu. Só que foi um acidente, que agora não tens mais os movimentos das pernas. Não sei quando foi, onde foi, qual foi o contexto. Mas isso nem interessa mais. Uma hora, quando for menos pesado, você me conta. Se não quiser, tudo bem também... Mas me lembro de ter ficado muito assustada quando vi a sua mensagem no Facebook agradecendo aos amigos pelas palavras de força e carinho. Fiquei preocupada, claro. Quis saber o que aconteceu e você me disse, mas sem muitos detalhes. A situação ainda estava indefinida e eu torci, com todas as minhas forças, pra você se recuperar o mais rápido o possível.

A gente, desde que se conheceu, nutre um afeto enorme um pelo outro. Naqueles tempos de pensão, onde era eu que estava ferida, você foi como um oásis de alegria, quando eu não sabia nem se eu ainda seria capaz de confiar em um ser humano novo. Estava abatida, fraca, sem saber pra onde ir. Você estava lá. As conversas eram frequentes, as vezes que a gente ia no shopping fazer nada, os filmes que assistimos e o Donkey Kong que zeramos no notebook fodão que mamãe tinha comprado pra mim. Tinha até controle, tu te lembra? rs
Engraçado. Não achei que fosse rolar uma amizade quando eu te vi. É. Não achei que fosse rolar amizade com ninguém ali, pois, como eu disse, ainda doíam coisas e eu não achava que fosse conseguir tão cedo voltar a confiar em recém-conhecidos. Aí, um dia que eu ia pra Bacabal, você, todo entrosado, chegou perguntando se podia ir também. Eu liguei pro motorista da van e ele disse que, por sorte, ainda havia uma vaga. Você arrumou suas coisas rapidinho e fomos conversando a viagem inteira como se já fôssemos íntimos. E por essa eventualidade, acabamos ficando mesmo.
Depois que você foi embora pra Bacabal, eu senti demais a sua falta. Com quem mais eu iria conversar daquela forma, sem papas na língua, sem frescura nenhuma, naquele lugar meio sombrio, onde eu me sentia pouco à vontade? Acho que tu também sabe, mas tu foi a primeira pessoa a tirar onda com a minha síndrome do pânico. Eram aqueles assuntos proibidos que todo mundo tinha um medo terrível de falar, porque não sabiam dos efeitos à menção. Você não. Parece que reconheceu em mim a pessoa fulera que eu sou e resolveu entrar nesse terreno. Fazia meses que eu não ria daquele jeito, com você imitando como eu ficava quando dava uma crise. Arregalou os olhos, levantou as mãos, entortou a boca, botou a língua pra fora e ficou fazendo umas zuadas nada a ver com a realidade. hahahaha Abestado!
A partir daí, o nosso contato foi ficando esparso, mas não menos feliz. Você passou pra o que você queria em São Luís, e só Deus viu o grito que eu dei de alegria. As conquistas dos nossos amigos são nossas também e nos fazem felizes, certo? Quando não, tem alguma coisa errada, ou na gente, ou na amizade. Não tinha nada de errado conosco. Seria mais difícil da gente se encontrar, eu sabia. Mas os finais de anos obrigatórios nos faziam voltar à nossa cidade e comer os brotinhos à moda do Seu Rose, colocando seis meses de papos atrasados, em dia. E a gente não podia ir na casa um do outro sem levar um pênis drive enorme (hehe) pra fazer aquele senhor raspa nos filmes novos, nas séries, nos vídeos bestas. Todo mundo notava a diferença das besteiras novas que eu falava quando voltava pra Teresina, já que tinha todo um portfólio novo de fuleragens que você me mostrava.
Acho que a última vez que nos vimos foi depois que eu voltei do intercâmbio, será? Lembro de ter de dito das pessoas que conheci lá, dos aperreios, da paixão crescente... 

Hoje, você está num momento delicadíssimo da sua vida. O exercício da imaginação já não é tão mais fácil assim, já que ele é muito mais além do que qualquer ser humano que não esteja na sua exata situação, pode fazer. Não tem pra onde correr, só se sabe verdadeiramente o que se vive. Tenho consciência disso. Você sabe que eu também já passei por momentos devastadores e, por mais que sentisse que algumas pessoas tentavam sinceramente compreender o meu suplício, apenas eu sabia o que se passava comigo.

No entanto, eu preciso te dizer algumas coisas:

A primeira delas é que as pessoas vão errar. Vão, elas vão muito. Elas não conhecem, elas não entendem. Algumas vão tentar acertar, outras serão apenas burras e vão creditar o que se passou contigo a várias coisas, das mais amenas às mais absurdas. Não acredite nelas. Já está sendo o suficientemente difícil pra que você ainda tenha que se sentir culpado pelas coisas que as pessoas, por mais bem intencionadas que estejam, lhe dizem e lhe dirão. Mas perdoe. Não será fácil pra elas, também. Muita gente por aí que tem todo o mundo pra te dar de afeto, mas simplesmente não sabe como expressar. Tudo bem. Uma hora vocês vão encontrar o caminho pra que isso se manifeste.

A segunda é que isso vai passar. Não estou falando da lesão, até porque eu nem sei mesmo em que pé estão as coisas. Mas, seja como for, em algum momento você vai se adaptar a essa vida nova. Meu amor, tenha certeza: é VIDA. Ainda que seja totalmente diferente do que você conheceu até então, mas é vida e ela pode ser plena. Por favor, querido, apenas tenha certeza disso. Que o baque do acontecido vai passar e você se verá entre duas escolhas: entrar num mar de sofrimento por algo que já não está em suas mãos mudar ou se abrir e escolher ser feliz, apesar de qualquer coisa. Não vai ser fácil chegar lá, mas é possível. Lembre-se que o que lhe era de principal, lhe foi poupado: a sua vida. E enquanto ela existir, enquanto sua mente puder decidir, VOCÊ ainda será o principal responsável por ela e pelos seus rumos, acredite em mim. Meu querido, rasgue a razão do desespero. O desconstrua com palavras, com gestos, com mantras, o que seja. Se sua mente sofre, ela precisa ser enganada. Sofrimento é ciclo, mas felicidade também. Não tô aqui dizendo que você agora vai amanhecer cantando com os pássaros. Todo processo de cura é longo, mas você precisa persistir nele. Se possível, procure ajuda profissional de algum psicólogo ou psiquiatra. Eles não são deuses e nem milagrosos, mas vão te ajudar a se levantar, não interessa em que posição física você esteja.

A terceira é que eu tenho sonhado com você frequentemente desde que eu soube disso tudo. Sonho como me lembro de ti: um fogo. O Eduardo Galeano, uma vez escreveu sobre um homem que subiu aos céus e viu as almas das pessoas e viu que todos nós éramos fogos. Alguns de nós somos fogueirinhas pequenas, quase imperceptíveis. Outros somos fogueiras grandes, frondosas, inestimáveis. Mas existem pessoas que têm fogueiras tão reluzentes, que era impossível ao homem que não quisesse chegar e tocar e se deixar "queimar" por aquele fogo interminável e lindo. Era o que ele descreveu de "luminosa forma de vida". Você é uma dessas almas iluminadas. Uma grande e bela fogueira a qual ninguém pode passar incólume. Essa fogueira pode estar um pouco baixa agora, mas ela vai voltar a alumiar a todos nós, que te amamos.

Receba o meu abraço apertado, meu carinho, meu afeto e meu amor, que te darei pessoalmente assim que puder. Que a paz te encontre o mais rápido o possível e faça morada no coração, porque de todas as coisas que temos na vida, ela é a que mais faz falta quando se vai. Desejo que você possa sentir uma calma invadindo a alma, aliviando quaisquer pesos e que uma certeza se plante aí dentro: toda tempestade passa e depois vem a bonança.

Te amo, Marcelo. Estou aqui, querido. 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Não eles

Eles eram novinhos demais e, puta que pariu! Era muito coração ali. Todo dia eram conversas de duas horas e metade dos planos do mundo. Eles eram o que ninguém conseguia deter. Eram vinte e tantos anos coléricos. Eles mochilariam a América do Sul no fim do ano. Eles abririam a própria empresa no ano seguinte. Eles mochilariam na Europa, naquele frio do caralho, no ano seguinte ao da empresa. Não precisa fazer sentido nada. Eles eram aqueles otários que sonharam tanto, que os sonhos verdadeiros já lhes pareciam sem graça. Eles eram os sósias do Michael Jackson. Eles passavam os batons das amigas e botavam saia e saíam caminhando pelo meio do povo, porque tinha que protestar sim contra esses machistas do caralho. Porra, eles dançavam até o suor pingar. Essa gente louca bebia até ser preciso jogar o fígado no mato, fumavam da prensada ou os caretas mais que a Caipora e nem se importavam se a galera da cama ao lado começasse a trepar.
Essa galera fez seus 38 e ainda tinha uma chama no coração deles. Mochilaram mesmo. Teve um que casou e tá aí, morto de feliz com a mulher e as três crias. A outra passou num doutorado, foi embora pra Amsterdã. Té hoje sonha em abrir um barzinho brasileiro por lá, que tenha essas coisas estereotipadas que gringo adora. Teve um que morreu atropelado por uma Ranger. Jesus Maria José, que tristeza que foi aquilo. Teve mais outra que, meu filho, ninguém sabe em que buraco se meteu. Eles acham que ela ficou podre de rica e não quer falar.
Mas era assim mesmo. Todo mundo se separou, um combatente caiu, mas ainda lembravam do outro com um carinho tão forte, sabe? E tinham um sentimento compartilhado sem saber, que era o mundo que tinha mudado demais, não eles.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O mar de pensamentos

Tem sido uma semana difícil. E o que mais foi difícil nessa semana foram muito mais acontecimentos externos que os internos. E quando falo externos, não digo apenas do que foi fora de mim, mas do que foi bem longe de mim. Muitas notícias me abalaram essa semana... Atentado terrorista à Charlie Hebdo, aqueles lixos do Boko Haram matando 2000 na Nigéria, menina de 10 anos sendo usada como bomba humana, um amigo que não vai poder andar mais. Tudo isso me deu o que pensar bastante. E as opiniões que eu tinha a dar, já dei e talvez eu ainda volte a dar, mas eu quero dar um descanso pra minha cabeça. São muitas coisas aí envolvidas. Pensei muito sobre liberdade de expressão, relações de poder, lugares de fala, cultura, etnocentrismo, eurocentrismo, islamofobia, fundamentalismos, opressões internas, opressões externas e mais isso e aquilo e não sei o que mais e... Puta que pariu, calma, menina, senão essa tua cabeça vira um mingau!

Outro dia estava colocando no site sobre as opiniões que damos nas redes sociais sobre as coisas. Ficamos diferentes, vivemos, mudamos, crescemos, evoluímos, mas aquela opinião que você deu fica lá registrada e muito facilmente resgatável a quase todos. E, pensemos nisso ou não, pessoas realmente as consomem, se abalizam, refletem, se guiam, rejeitam e criam sobre nós os estereótipos que nós permitimos, com as áureas que fazemos de nós mesmos. Outro dia me disseram no trabalho que eu pareço uma menina que passa o fim de semana "debulhando terço". Porra! Nem como se usa um terço, eu sei. Se essa galera soubesse o tanto de palavrão que eu fico falando sozinha aqui nesse apartamentico e achando graça, ainda por cima... Mas não. Lá no trabalho, pra eles, eu sou a moça "respeitável" (eu seria de qualquer forma, apenas por ser alguém), que só sai de casa pro trabalho e do trabalho pra casa, com uma parada pra comprar coisa pra comer no supermercado da esquina. Só. Pra outro grupo de amigos, eu sou a doida boca-suja que passa o dia falando besteira e escrevendo errado de propósito no site; aquela que fica bêbada com duas cervejas e passa o número de cervejas que tomou, de dias de ressaca, se reclamando da vida. O caso é que a gente acaba sendo tanta coisa... É difícil fazer um panorama geral das representações que os outros fazem de nós e o quanto de responsabilidade nós temos nisso.

Ainda tem o diabo dessa paixão que não me laaaaarga, essa bandida. Sim, nesses termos. Não me agrada o pensamento de que há algo apenas unilateral. E vamos supor que ele esteja, nesse momento, chamando meu nome numa sarjeta, com uma garrafa de vinho na mão. Eu nunca saberia, se a gente se perdeu entre tanta coisa da vida e nosso contato é cada vez mais esparso e superficial. Como falei em outro escrito: esse tipo de relação é coisa estranha, porque não há mais nada a se agarrar do que as palavras. E se não existem palavras, não há como mensurar coisa alguma, mesmo que, do lado de lá, exista algo arrebatador. Há tanta coisa que nos impede de falar, né? Sei disso. Mas já aprendemos à duras penas que silêncio também é mensagem e faz um barulho ensurdecedor. Não tô dizendo aqui que agora esse homem me odeia, me despreza, não quer mais nem saber de mim. Não é isso. Creio eu que há, no mínimo, algum carinho nutrido por mim. Aí já não sei em que nível. E aí eu, sentindo uma falta absurda das palavras dele, da voz dele, dele, me pego imaginando tanta coisa... Mesmo dizendo não às expectativas e lidando o que melhor já lidei com a ausência, sem dores lancinantes me perpassando o corpo, sinto sim uma dosezinha de tristeza pelo que já não é mais.

Eu já não sei o que o futuro reserva. Aliás, nunca soube, seria pretensão demais. Mas imaginei muita coisa, fiz mesmo um monte de expectativas, porque a gente não deixa de ser quem é porque se apaixona. Elas, claro, não eram gratuitas, porque eu também não me apaixonei sozinha. Os planos que foram feito por mim, ainda estão de pé, pra esse futuro mais próximo do que eu acho. Ainda vou ao outro extremo desse país continental e me lançar ao desconhecido, de qualquer forma. A segunda parte do plano, por ele, pra ele e pra mim, é que eu não sei mais. Me faz uma valeta de sangue na cara, mas não me bota pra pressionar ninguém. Vai ser necessário perguntar, mais pra perto, eu sei. Mas não quero que se sinta pressionado a nada, porque não quero sentir isso. Mas quero que queira, entendeu, estimado leitor? Porque eu o quero e cada dia que passa, parece que quero mais. Dar os abraços que eu senti tantas vezes, quase físicos aqui. Afastei 24 anos de medos do meu caminho e vou ao que eu quero. Se não me quiser, vai ser doído, mas eu vou voltar com o coração aliviado por ter tentado. E, tenho certeza, com muito mais medos dominados. Eles simplesmente não fazem mais sentido pra mim. Ainda que apareçam e queiram se instalar, é muito mais fácil não dar guarida hoje em dia, já que posso, com mais ou menos esforço, quebrar a lógica de qualquer desespero oportunista. O coração é bobo, como disse Alceu Valença. A gente se ilude, dizendo: "já não há mais coração" e ó ele bem aqui todinho, pulando feito doido todo o tempo!

Há muito mais a se saber dessa viagem, no entanto. Vai ser a hora de olhar aquela cidade e perguntar: "é isso que eu quero pra mim?". Avaliar as minhas chances reais sobre o mestrado lá e assentar os meus dois pezinhos na realidade, economicamente, academicamente e psicologicamente, pra não me arrepender nunca das minhas escolhas e não me colocar em nenhuma situação degradante, longe da família e amigos. Apesar de ter alguém especial por lá, essa é uma decisão muito grande e importante pra eu colocar a responsabilidade dela em cima de quem quer que seja. Se eu for, será por mim, pelos meus sonhos, pelo que eu quero. Só posso deliberar sobre a minha vida, então é baseada nela que eu irei ou não.

Pensei muito sobre a leveza por esses tempos, item mais que necessário pra essa cabeça imersa nesse mar de pensamentos menos leves. Mas pensei também nos furacões que se instalam na alma, fazendo transbordar esse mesmo mar.

Deixa fluir.



domingo, 28 de dezembro de 2014

Dois perdões

Hoje eu estava atinando que eu sempre precisei de refúgios. São sempre coisas, pessoas, lugares, caminhos e atos. Pra uma garota que nunca viveu em um estado oficial de guerra, tive que ter refúgios demais. O corpo pedia, pra recuperar um Animus que andava perdido por aí e voltar à ativa. Esse ano foi tanta coisa, tanta Vida que correu, que eu ainda não tive coragem pra revisar. Dentre as coisas loucas que aconteceram, duas merecem destaque, por serem contrárias, mas iguais.

Esse ano eu perdoei e fui perdoada.

"O coração tem mais quartos que hotel de putas", disse o Gabriel. E o meu sempre foi um hotel grande, onde habitou muita gente. Algumas pessoas passaram pouco tempo, outras se apropriaram do quarto sem qualquer permissão. Continuam morando pelo usucapião. Tudo bem, deixa assim como está. O quarto que moram é diferente agora.

Duas histórias habitaram meu coração, em um lapso de alguns anos. Na primeira delas, eu ainda era o próprio medo. Machucada que estava, ainda não podia viver o que queria. Silenciei, escapei, fugi sem dar nenhuma explicação e carreguei esse arrependimento por muito tempo. Outras possibilidades de contato vieram e só acompanhava a vida de longe, alegrando com as conquistas, prestando atenção na vida e pensando comigo mesma: "O que teria acontecido se eu não tivesse fugido?" Sem respostas. Foram cinco anos de mutismo.

A segunda delas, era a realização. A tão esperada concretização dos meus desejos, vindo inesperada, quando eu pensei que aquelas coisas ainda estavam muito longe de acontecer. Dessa vez, foi a história que saiu de mim. Saiu em paz por um tempo, até que uma notícia abalou os meus nervos até a extensão mais longínqua deles. Foi difícil. Passei muito mais tempo do que eu queria admitir, dolorida. E sentia no ar o cheiro da injustiça que aquilo era contra mim. Não o ato que me despertou aquilo tudo, mas aquilo tudo. Por que EU tinha que sentir uma dor tão lancinante, durante tanto tempo e sem possibilidade de melhora? Claro, tentei seguir minha vida como pude, mas o que eu reprimia apagando qualquer resquício da história, vinha em sonhos, em mal-estares à mera menção do nome, ao choque terrível apenas com a visão da pessoa. Eu fui dor durante muito tempo, mesmo que não quisesse, mesmo que tentasse que não. Foi um ano assim.

Viajei. Conheci o que eu queria conhecer. Fiz o que eu achava que não seria capaz nunca de fazer e lá, naquele lugar que eu imaginei tanto, eu soube que podia saber da segunda história. Vi, com alguma melancolia, a história já com outra, a que lhe pertencia. Naquele momento, eu não senti raiva, eu não senti ódio, nem tristeza. Também não fui indiferente. Uma frase escreveu-se sozinha na cabeça: "Que seja feliz". Daí em diante, com esse perdão liberado quase sem querer, eu pude abrir essa espaço naquele hotel e deixar, verdadeiramente, aquilo ir. Foi uma libertação sem tamanho não reprimir mais as referências apenas temporais daquela época, usando o seu nome. Não deixar de contar coisas engraçadas que aconteceram. Pra ele, quando o vi, apenas entendi que não éramos e que não íamos. Compreendi suas limitações, suas inseguranças e perdoei. Parei de me culpar. Soube quem era eu e do meu caráter e, orgulhosa de mim, olhei pra frente.

Uns meses depois, quando estou explodindo de ódio, depois que li diversas manifestações xenofóbicas contra o Nordeste depois do primeiro turno das eleições, escrevi um desabafo ainda bem educado no Facebook. A primeira história se manifestou. Parece que lhe doeu que os seus pensassem assim e quis manifestar textualmente que não engrossava aquele coro. Um susto. Como quebrou um silêncio de cinco anos? Naquela mesma hora, conversamos longamente e eu, finalmente, pude pedir o perdão que estava entalado na garganta e travado entre os dedos durante tanto tempo. Aquilo refrescou a minha alma como um banho de chuva correndo, porque eu já tinha desistido de qualquer possibilidade de aproximação há muitos anos e aceitado que essa era uma das vergonhas que eu fiz e que tinha me custado um amigo, antes de qualquer coisa. Apesar de ter sofrido bastante por isso, à época, também já havia deixado de sofrer, porque entendi que não sumi do dia pra noite por ser alguém má. O que eu tinha era muito mais pesado e eu não pude dar conta desse peso. Uma coisa que eu me martirizei muito (porque, né? Eu não sou filha da puta), mas serviu pra nunca mais fazer isso de novo. Era melhor ser honesta e sentir um pequeno desconforto do que um mundo de sofrimento por uma mentira ou silenciamento.

Um amigo recuperado quando não se havia mais esperança e outro que ganhou o desejo de que seja feliz. Bagagem pesadas jogadas fora do meu coração, já tão cheio de coisa... Tá abarrotado ainda. Têm, ainda, monte de perdão pra dar, outros montes a receber. Vou deixando mais leve aqui, pra que fique cabendo só o que interessa. Desses perdões, indo e vindo de surpresa, eu só pude ser grata.

PS.: Que o moço tenha paz. Que o seu espírito descanse. Que ache refúgios pro coração pesado. Que pare de doer o que quer que esteja doendo. Que sinta o meu abraço apertado.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O antídoto



Engraçado como são as coisas. O lugar que me deixa mais em paz em Teresina foi justamente o que aconteceu o assalto. Eu sei que essas coisas acontecem em qualquer lugar e que, enfim... A gente não tinha como prever, mesmo sabendo que a vida é perigosa. Não foi violento como poderia ser, mas ainda assim tem uma coisinha me incomodando bastante. Eu consegui dormir depois de um bom tempo recitando, na minha cabeça, as frases que eu não posso me esquecer jamais: “Não vou deixar meu medo me dominar” e “Não vou deixar meu ódio me dominar”. Talvez esses dois sejam os sentimentos mais danosos pra mim, desde sempre. O medo é o pior, eu acho. Os dois são extremamente ruins, porque me tiram coisas das quais eu não posso viver sem. O medo me paralisa, o ódio me cega. Ação e visão são imprescindíveis e eu não vou me abster delas.

Ontem, quando eu e meu irmão fomos dormir num apartamento emprestado de um amigo, já que não tínhamos como abrir o meu, o sono e o cansaço já tinham chegado, mas quando eu fechava os olhos, as únicas coisas que vinham na minha cabeça eram pensamentos absurdos. Era eu imaginando vários outros desfechos pro episódio, mas não um que coisas piores aconteciam comigo, mas com os ladrões. Eu imaginava que tinha algum tipo de conhecimento enorme em artes marciais ou então que tinha alguma arma que pudesse fazer deles picadinho. Sim, isso mesmo. Eu imaginava que fatiava os caras com uma espada, tão facilmente como se corta uma banana, como se carne, ossos, órgãos, não fossem nada. A cólera me fazia palpitar o coração como um louco e dizer coisas enquanto tentava apagar. Estava cega. A única coisa que eu queria era ter ferido os dois assaltantes. Eu já havia sentido isso antes, por outras pessoas, que me fizeram um mal muito maior e muito mais durável do que o minuto que durou o assalto. 

Parece que veio essa parte sombria de mim novamente. Não me orgulho disso, não gosto disso, não acho isso legal. E mesmo pra alguém como eu, que teve que enfrentar vários desafios pra enganar a própria cabeça e sair da merda, ainda continua difícil desviar os pensamentos pra algo menos nocivo pra mim mesma. Não vou deixar meu medo me dominar. É o quarto assalto que eu sofro aqui em Teresina. Os prejuízos aconteceram, mas tudo pode ser recuperado. Da primeira vez, assim que cheguei na cidade, não conseguiram roubar nada, mas eu quebrei o pé, porque me assustei e corri. Tinha um declive na calçada e eu caí com tudo no chão. Não consegui me levantar. Olhei pra cima, o assaltante estava praticamente em cima de mim, pronto pra fazer qualquer coisa de muito mal e, dessa vez, eu não tinha como correr. Quando eu já me preparava pra, no mínimo, uma bofetada, ele saiu correndo. Quando eu olhei pra minha frente, entendi o porquê: na segunda pensão onde morei, todos os rapazes saíram pra jantar fora, de uma vez. Eles me viram e ainda tentaram pegar o cara, mas ele já tinha montado na moto e saído. Levaram-me pra dentro da pensão e eu achei que aquilo tinha sido só uma torção leve, que se colocasse bastante gelo, logo desincharia. No outro dia, pela manhã, tive que ir ao médico. Não era perto, mas eu não tinha dinheiro algum e fui caminhando por um caminho que eu tampouco conhecia. Não me lembro de ter me sentido mais desgraçada da minha sorte do que nesse dia. Eu tinha plano de saúde e o médico mandou colocar o gesso. Voltei caminhando, com o gesso ainda molhado, pelo mesmo caminho que eu fiz, sem muleta, sem nada. Parando a cada cinco minutos, porque foi metade do caminho pulando de um pé só e a outra metade, arrastando o gesso no chão. Não tinha como ligar, não tinha a quem pedir ajuda. Eu não sei nem porque eu tô escrevendo esse dia triste aqui. Talvez seja pra me lembrar que as coisas já foram bem mais difíceis e eu realizei muitos dos meus sonhos mesmo assim. Ainda tenho tantos outros a realizar... O tempo está só começando e eu tenho todo o resto da minha vida pela frente, enfrentando o que tiver que enfrentar, saltando obstáculos, dando o melhor de mim.

Não vou deixar meu ódio me dominar. Esses pensamentos que ainda estão aqui me incomodando, vão sair. Cedo ou tarde, eles vão, porque não há espaço pra eles. Não vou deixar meu ódio me dominar, porque ele já tomou muito mais de mim do que deveria e, dessa vez, não vou dar guarida.

Outra coisa que eu senti bem forte foi falta dele. Eu não sei por que ele parou de falar comigo (ou se ele se pergunta a mesma coisa), mas senti uma vontade absurda de ter ele aqui, perto, comigo, pra me cuidar e me abraçar. Não tinha mais o seu número, mas queria ligar, ouvir a voz que ouvi poucas vezes, me confortar dizendo que ia ficar tudo bem. A “ida” dele da minha vida não está lancinante como eu achei que seria. Talvez eu tenha aprendido uma ou outra coisa com o decorrer do tempo e até as possibilidades que se abriram, não excluem a da não realização do que teríamos de pendente entre nós. Tudo isso frustra, entristece, mas tudo está bem. É preciso deixar voar quem quer voar, quem já voou. Afinal, se somos dois passarinhos que se conheceram em outras correntes de ar, essa é a nossa natureza. Queria que voássemos juntos, mas não há como deliberar quereres. A história do outro, ao outro pertence. Só quero não sentir essa falta tão forte assim, nem nesses momentos. Se o que já foi, não é mais, que eu sinta sim o amor que eu sinto, mas que fique só a parte da gratidão e carinho, “ojalá que el deseo se vaya trás de ti”. Assim, não há porque acabar o sentimento porque não haverá peso em levá-lo no meu coração.

“- Vamos - disse Monte-Cristo, arrancando com esforço um sorriso do peito opresso. - Vamos, basta de veneno, e agora que o meu coração está cheio dele, vamos procurar o antídoto.”

O Conde disse e é verdade: o coração está cheio de veneno, há que se procurar o antídoto. Vou revestir-me de paz.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A herança

Uma de minhas avós banhava os mortos das famílias dos vizinhos, quando os seus não tinham coragem. Não só deles, de quem mandasse chamar. A outra avó dizia que na casa da esquina da rua onde mora há mais de 40 anos, as cadeiras e outros móveis se batiam sozinhos e que esse era um fenômeno observável, mas que, de sua casa, só o seu marido teve coragem de olhar. O único bisavô que conheci, já muito velho, contava histórias inverossímeis de difícil compreensão por causa da dificuldade ao falar, dos seus tempos de moço no interior, do dia que o avião passou pela primeira vez em cima do vilarejo e todas as casas frágeis balançaram com o mover dos ares, o que fez com que uma vizinha confessasse ao marido que dos cinco filhos, apenas dois eram dele, pra depois desmentir tudo quando o avião passou e tudo se pôs no lugar. Outro bisavô, que morreu muito antes de eu nascer, tinha aversão à água. Sabia uma reza em que colocava um chapéu de palha na cabeça e ele e quem ele quisesse, não se molhavam, mesmo que estivessem debaixo de chuva grossa. Cresci escutando essas histórias e acreditando em cada uma delas, por que sempre tive um fraco por esses assuntos. Mesmo quando os questionamentos de várias ordens chegaram, elas ficaram guardadas no lugar do inquestionável, porque não interessava se eram verdadeiras ou não. Ontem, todo esse passado veio à memória de uma só vez, na madrugada quente, no infinito de um quarto, não me deixando dormir. E eu olhei pra elas, algumas histórias já centenárias que ainda chegaram a me alcançar, que foram feitas pelos meus antepassados e que também os fizeram, e tantas outras que não cito por não lembrar mais dos detalhes, outras por não saber como encaixá-las neste texto. E atinei que, desde os fundamentos, a vida da gente é um conglomerado extenso de improbabilidades que, de algum modo, se fazem possíveis.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

"Não há mais vida, não há..."



"No hay más vida, no hay
No hay más vida, no hay
No hay más lluvia, no hay
No hay más brisa, no hay
No hay más risa, no hay
No hay más llanto, no hay
No hay más miedo, no hay
No hay más canto, no hay (...)"


Não há mais nada. A morte levou tudo. O riso, a alegria, até o choro, a tristeza, o pranto. Essa música é da Shakira, feita pra trilha sonora do filme "O amor nos tempos do cólera", obra homônima do livro do Gabo.

Era segunda, já noite, nem tava tão tarde assim. Eu estava numa lanchonete perto de casa, revendo amigos que não via fazia muito, rindo das histórias e fazendo-os rir com outras. Deixa celular de mão, ele não é mais tão prazeroso assim... Mas quando olha, tá lá uma notificaçãozinha do grupo de amigos, dando uma notícia péssima: uma moça com a qual estudei no 1º período da Universidade, veio a falecer, depois da tentativa de suicídio, há um pouco mais de 40 dias.

Que fique claro: não éramos íntimas, os contatos que tínhamos eram apenas virtuais e muito esparsos. Não vou dizer que estou sentindo a sua morte como sentiria a de qualquer de meus amigos chegados, mas desde segunda estou com uma coisa estranha na garganta. Um marejar constante nos olhos, que eu reconheço de outras vezes em que outros que não eram ou já não eram tão meus assim, encontraram a inevitável. As especificidades desse caso, talvez, que me deixaram mais atenta. Era uma moça que eu me lembro de ser extremamente expansiva, efusiva, mais do que eu, até. Alguém que falava alto e tinha uma risada bonita. São poucas as lembranças, lamento. Mas ao ler os quatro posts enormes que ela escreveu antes da tentativa, às quatro da manhã de um outro dia de semana, doeu alguma coisa adormecida em mim. Era muita dor, não havia como não se abalar com aquilo. Uma mente que estava doente e que dava o último grito de socorro. Quem pode te julgar se não deu mais, querida?

Lembrei, é claro, dos dias maus. Mas em favor da minha própria saúde mental, coloquei esse assunto numa pastinha oculta do meu cérebro e toquei a vida em frente. A família conseguiu o acesso ao perfil e por lá eu sabia alguma coisa aqui, acolá. Não avançava. Continuava internada em coma na UTI, apenas estável. Faleceu. Por mais que eu esteja evitando pensar nisso, é algo que está pertinente na minha cabeça. "Mas, moça, você nem tinha mais contato com ela!". Eu sei! Por isso não me permito entrar em tristezas maiores.

Outras coisas também têm me tomado o juízo nesses últimos dias. Preocupações próprias da vida adulta, projetos novos, sonhos antigos, pressões e expectativas sobre o futuro... E a espera. Nem sempre é fácil e nem eu acho que tenha mesmo que ser. Sair da menoridade dói. E na  tempestade em copo de pensamentos etéreis, chega o recado bem dado, reafirmado tantas vezes, de que ainda não inventaram coisa mais necessária que a paz de espírito.

Eu sei que é só uma dessas coincidências sem sentido, mas estou quase pra terminar o livro do Gabo de novo. Já o li há não sei quantas vezes e as músicas do filme vão me acompanhando durante a leitura. "La despedida" é uma delas, das mais tristes que eu tenho na memória. E parece que não há maneira: todas as vezes que alguém se vai, ela me vem. Acho que por causa da certeza de que a tristeza da despedida, ainda que nós nos neguemos a ela, é traduzida perfeitamente nos versos: 

"Cuándo álguien se va/
El que se queda/
Sufre más..."

Que haja paz, pra que ainda haja vida.